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Elisa Lucinda lança 19º livro e se prepara para "reconstruir o país da sua hora mais dura"

Com "Quem me leva para passear", atriz e escritora da voz a fluxo de pensamentos sobre o Brasil contemporâneo

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Atriz e escritora está lançando "Quem me leva pra passear" pela editora Malê, seu 19º livro. - Divulgação
Quem lê meu livro, encontra essa da entrevista, quem vê um filme, encontra essa da entrevista

Tomar um lado na polarização política do país se tornou uma premissa, ainda mais para aqueles que têm sua vida pública exposta diariamente. Esse é o caso de Elisa Lucinda, atriz e escritora que, ao contrário de muitos ilustres, nunca deixou de se posicionar como uma ativista do movimento negro. Mas a escolha de não ser apenas uma espectadora da vida pública brasileira, explica, Lucinda, "tem um preço". Sua impressão é a de que seus posicionamentos já lhe custaram trabalhos. 

“Umas eu desconfiei, outras eu nunca soube. É isso, paciência. Tem coisas que não são negociáveis”, aponta Lucinda, convidada desta semana no BDF Entrevista

Lucinda, que está lançando Quem me leva pra passear - seu 19º livro e a segunda parte do Livro do Avesso, o Pensamento de Edith - explica que, apesar de algumas portas se fecharem pelo caminho, “muitas se abriram”.

Eu não me arrependo. Eu gosto de ser encontrada nessa entrevista, no meu livro. Quem lê meu livro, encontra essa da entrevista, quem vê um filme, encontra essa da entrevista”, diz. 

“Quem me leva pra passear” segue os pensamentos da chef de cozinha Edith, que transita entre visitas a celebridades e reflexões ao lado dos vizinhos e anônimos, sobre os dramas contemporâneos da sociedade. 

“A minha poesia, a minha peça de teatro, o meu cinema, a minha arte, se ela não se relacionar, de alguma maneira, com o meu tempo, ela não tem porque existir. A melhor notícia que eu tenho hoje, do ponto de vista profissional, é saber que meu público está rejuvenescendo”, explica Lucinda. 

“Isso significa que eu estou falando para o meu tempo, senão eles não saberiam de mim. Eu sou ativista no meu pensar, no meu viver, então isso está no livro e a Edith é uma mulher negra, não sou só eu. Ela é uma mulher negra, é uma mulher cozinheira, chefe de cozinha, ela tem a sabedoria da culinária. Ela está em vários lugares”. 

Na conversa, Lucinda ainda fala sobre TV, a perda de Milton Gonçalves, com quem atuou em papéis para o cinema e sobre política.

“O Brasil está vivendo sob ataque. Quando você ataca a ciência de um país, ataca o povo de um país, a comida de um país, a saúde, a ecologia de um país, a educação de um país, a cultura de um país, você está matando o país”. 

“[Mas], o Brasil de agora não é o Brasil de 2018. Eu tenho muita esperança que a gente ganhe no primeiro turno. Todos nós estamos nos preparando para reconstruir o país da sua hora mais dura, uma hora em que o Brasil expôs sua face mais tenebrosa, de estuprador, torturador, é uma face ruim, mas é melhor sair de dentro da gente e a gente curar, do que ficar disfarçado de cordial”. 

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Elisa, você está lançando o livro Quem me leva para passear, pela editora Malê. Essa é a segunda parte do Livro do Avesso, o Pensamento de Edith e seu 19º livro, entre poesias e outros gêneros. Esse livro é composto de fragmentos, de pensamentos da personagem. Como foi compor essa colcha de retalhos? 

Elisa Lucinda: É muito interessante o ofício do escritor, porque, na verdade, eu me sinto uma tradutora como escritora, tradutora do que vejo. Eu acho que, a rigor, todo artista é tradutor. Traduz em escultura, pintura, literatura uma realidade com as suas camadas, interpretações, seus olhares, suas versões. 

Mas eu, no caso da Edith, meu trabalho principal foi dar conta desse pensamento solto, desse fluxo de consciência, que inclusive é um gênero literário e conseguir traduzir isso que eu chamo de dinâmica que o pensamento. Quantas vezes eu tenho um pensamento e volto para a raiz de onde ele veio. 

E nunca imaginei que, daquela raiz, fosse sair aquela copa de árvore, aquele tronco, aquele galho. Então, eu queria preservar no livro essa liberdade, tanto que eu não coloquei um nome nos pensamentos, eu numerei. Não queria que o leitor soubesse qual é o próximo pensamento. Eu preciso que ele seja imprevisível, como o pensamento é. 

Tanto que, muitas vezes, ela fala: “o que que meu pensamento está fazendo aqui? Como é que eu vim parar aqui?”. É essa liberdade que me interessa nessa ficção, que é também uma maneira de preservar meu país de liberdade dentro de mim. Esse ninguém mexe, está intacto. Esse ninguém vai dar golpe. Nesse, têm eleições que eu acho confiáveis. Limpas e democráticas. 

E para me libertar dela, eu acho que eu vou ter que criar um outro romance, outra ficção, porque ela é muito… tem um lugar muito dela. Tanto que o primeiro livro, o Livro do Avesso, acabou e ela não acabou, ela continuou. Foi mantido o pensamento dela. Eu sei identificar o pensamento que é de Edith. 

O livro é super atual, você começa tocando em uma série de pontos importantíssimos para o debate contemporâneo: a intimidade feminina, racismo, a eleição de 2018, religião. Esses registros são muito importantes como obras do nosso tempo, não é? 

A minha poesia, a minha peça de teatro, o meu cinema, a minha arte, se ela não se relacionar, de alguma maneira, com o meu tempo, ela não tem porque existir. A melhor notícia que eu tenho hoje, do ponto de vista profissional, é saber que meu público está rejuvenescendo. 

Meninas de 16 anos, com piercing no nariz, dizendo que me adoram, me leem desde criança. Vou em um show do Emicida, um show de rap no Circo Voador e encontro com um monte de fãs e fãs de minha literatura, do meu pensamento. Então isso significa que eu estou falando para o meu tempo, senão eles não saberiam de mim. 

Isso para mim é o que eu estou chamando de saúde. Saúde política, uma saúde histórica também. Eu sou ativista no meu pensar, no meu viver, então isso está no livro e a Edith é uma mulher negra, não sou só eu. Ela é uma mulher negra, é uma mulher cozinheira, chefe de cozinha, ela tem a sabedoria da culinária. Ela está em vários lugares…vai na casa de [Barack] Obama, ela está em várias tribos, ela circula em várias camadas da sociedade. 

Como é que foi esse processo? Como é essa sensação de ser reconhecida mais pela tua literatura, hoje, e menos pelos teus trabalhos no cinema e na TV? 

Eu não sei se eu fiz essa mudança. Eu acho que eu sempre toquei esses instrumentos. Eu, quando lançava um livro, no meu primeiro livro, eu já fiz isso. Eu lancei um CD de poesia junto, que hoje está no Spotify para quem quiser ver, ou [plataformas] semelhantes. Eu te amo e suas estréias, são dois livros que estão lá, gravados com vozes incríveis: Zeca Baleiro, Miguel Falabella, Marília Pêra, Zezé Polessa, Paulo José. 

E tem espetáculos teatrais também de poesia, não é? 

Exatamente. E, junto com esses livros, eu lancei espetáculos. Então, eu sempre entrelacei essas artes, eu sempre quis ser multimídia, na verdade, que a minha obra fosse multimídia. Sempre achei que o livro era audiovisual. Hoje eu sei nomear, dar teoria a isso, mas o tratamento que eu sempre dei a um lançamento de livro, foi o do barulho, pra ele não ficar quietinho aqui dentro, dele sair de casa e encantar. Eu acho que criei isso. 

Durante o tempo que eu fiz televisão, ou quando estou fazendo televisão ou outras coisas, nunca paro de viajar, fazer, trabalhar, conhecer, me apresentar no Brasil inteiro. Eu estou sempre com o espetáculo em cartaz. E aí veio a internet, que pega isso tudo que a gente faz e mostra. O cara sabe que eu estou em cartaz, sabe o que eu estou fazendo um filme, sabe que estou publicando um livro. 

Começou a ter fã que ainda não me viu ao vivo na sua cidade. Eu chego lá: “ah, eu te sigo, era doida para te ver”. Quem me segue, segue meu pensamento, que minha página tem opiniões, meu trabalho, opiniões políticas, crônicas, poesias. 

A TV é um ponto importante na vida de todo ator, por conta da alta exposição. Você esteve em diversas novelas exibidas em horário nobre. É complexo lidar com toda essa exposição que a TV traz? 

Isso é muito pessoal. No meu caso, por exemplo, se você me perguntar a coisa mais preciosa que tenho na minha vida, que conquistei, vou dizer que é a minha liberdade. Eu cuido da minha carreira - tem uma equipe, mas eu cuido da minha carreira. Não fico à mercê de nada.  

Quero estar livre para, amanhã, se quiser ir a Cabo Verde, me chamarem para fazer uma aula magna na Universidade, eu vou. Não tenho que pedir permissão a ninguém e isso eu gosto muito na minha carreira. Eu sempre tentei fazer esse caminho independente e acho que consegui. Portanto, a minha liberdade é inegociável.
 
Eu não quero viver uma vida que eu não possa ir no Maracanã, no samba, nas noites do Brasil. Onde eu vou, eu vou no samba, onde eu vou, eu vou num fervo. Tem organização de gente preta que me chama, eu vou. É uma sorte do ponto de vista político e de utopia. Para mim é uma sorte ter uma profissão que me leva às cidades e posso conhecer os grupos culturais de lá e somar minha força nacional a esses grupos que são maravilhosos, me ensinam cada coisa. 

Quem está dirigindo um trabalho sobre a minha vida é uma menina que mora em Cachoeira, lá na Bahia, que é a Glenda Nicácio, que dirigiu o Café com Canela uma premiadíssima e jovem diretora, fruto do sistema de cotas das universidades, no tempo do Lula. 

Eu quero dizer que, eu vou ao samba, eu saio sozinha, não preciso sair sempre com alguém. Estou casada, mas eu não crio uma estrutura em que não possa caminhar no meio do público. 

A gente perdeu, infelizmente, o ator Milton Gonçalves, com quem você compartilhou alguns trabalhos. Aí, aproveito para falar sobre o protagonismo negro na TV. O sucesso que você e o Milton tiveram não se repete com tanta frequência. Talvez hoje em dia, isso tenha se alterado um pouco mais, mas sempre houve uma batalha para que os personagens que vocês interpretavam fugissem do racismo estrutural, dos estereótipos impostos. Você e o Milton conversavam muito sobre isso? 

Olha, nós nos encontramos algumas vezes, em alguns trabalhos, temos dois filmes juntos e já desfilamos na mesma escola. Encontrei ele em várias situações, nos nossos aquilombamentos. Mas o Milton é um lorde, um rei, um príncipe, um bonito, sedutor, sempre arrumando as palavras. Um cara muito alinhado e sempre com as palavras muito bem colocadas, gostava de falar bem. 

Falava inglês, falava português maravilhosamente bem, claro, nossa língua, mas dominava bem. E ele era um cara que lutou pelo nosso protagonismo. Ele quis que a gente tivesse papéis melhores. Ele mesmo quebrou barreiras o tempo inteiro e foi, inclusive, pioneiro ao ser contratado pela Globo. E um pioneiro diretor negro ali. Dirigiu Irmãos Coragem, dirigiu Você Decide e outras novelas, que ele botou o seu olhar de diretor, que é uma parada que a gente não conhece, praticamente, diretores negros de TV. 

A gente tem o Luiz Antônio Pilar, o Jeferson De, mas é meio recente também. Então, o que eu quero dizer com isso é que ele foi muito pioneiro. Eu fiz o papel que está até reprisando agora, de doutora Selma, em Páginas da Vida e quando eu fiz aquela médica, lembrei que Milton foi o primeiro médico negro que eu vi na TV, o doutor Percival, em Pecado Capital

E eu adorei, porque eu queria me ver, porque eu tenho primas médicas, irmã médica, tia e eu nunca tinha visto na televisão um preto médico, a representação da minha família. E aquilo, para mim, foi muito significativo. Ele era um mestre, estava sempre nos ensinando, conhecia muito da história recente brasileira, da política - ele era progressista - e da nossa história, de colonizados oprimidos. 

Para além de todas as tuas manifestações artísticas, você nunca deixou de se posicionar politicamente, em defesa da democracia e dos direitos. Hoje tem sido mais comum o posicionamento de artistas, até exigido por parte do público de determinados artistas. Se colocar em um espectro político pode fechar portas para o artista? 

Eu espero que não, mas deve ter fechado. 

Você já teve portas fechadas por isso? 

Com certeza, eu devo ter tido. Umas eu desconfiei, outras eu nunca soube, mas faz sentido, porque tem um preço mesmo, as escolhas. É isso, paciência. Tem coisas que não são negociáveis. Claro, a gente não precisa…para que você vai se expor de uma maneira heróica, só pra ser um alvo fácil? Isso também é burrice, de estratégia, mas tem que ter um limite, de coerência, entende? 

Eu, por exemplo, sou contra matar. Eu e muita gente. Ok… Se alguém falar para mim assim: “eu te dou 2 milhões para você matar uma pessoa”. Eu falo: “não quero”. “Então, eu te dou 20 milhões”. Mas a questão não é a quantidade, é que eu não quero matar. É isso que eu acho que a gente não pode perder de vista, quem é a gente no meio da enxurrada. 

Imagina, depois disso, acabou minha vida. Como que dorme? Então, não sei, meus fãs gostam muito de mim, óbvio, mas as pessoas que me escutam, eu recebo muito carinho. A minha página não é uma página pesada, é uma página que não tem parada de ódio e eu gosto de que seja assim. É uma página sincera politicamente.

Eu não fujo da raia, não. Eu sei que pode fechar portas, mas a gente não pode deixar de ser quem a gente é. Construí uma vida para ser essa artista, para o meu pensamento ter a proteção de minha parte de ser livre e eu acho que estou indo bem, porque mesmo que alguma porta tenha se fechado, muitas se abriram, exatamente por isso. 

E cada vez mais, porque as pessoas querem o serviço que, eu acho, minha arte faz. É uma sinuca, porque é igual ao mundo, que está precisando de preto e do que o preto e do que o indígena ensinam, porque senão, não vai conseguir sobreviver. 

Eu fui muitas vezes ingênua, lutei sozinha, falei do racismo em uma hora que as pessoas não estavam prontas para ouvir, como agora. Muitas vezes, alguém falava: “meu Deus, já vem…tudo a Elisa bota racismo”. Eu que boto? O racismo é que está em todo lugar. 

Eu não me arrependo, claro, tem coisas que eu me arrependo, mas eu digo assim: eu gosto de ser encontrada nessa entrevista, no meu livro. Quem lê meu livro, encontra essa da entrevista, quem vê um filme, encontra essa da entrevista. 

Como você está vendo esse cenário eleitoral? A gente falou, no começo da conversa, sobre eleições meladas. Você tem receio de que isso aconteça, ou em 2023, a gente vai virar a chave e o Brasil voltará a ter esperança de novo? 

O Brasil está vivendo sob ataque. Quando você ataca a ciência de um país, ataca o povo de um país, a comida de um país, a saúde, a ecologia de um país, a educação de um país, a cultura de um país, você está matando o país. O Brasil está sob ataque. É uma guerra violentíssima, desnutrindo as universidades. Tem universidade sem restaurante universitário, a universidade pública... É impressionante a quantidade de crimes deste governo. 

Eu esperava, inclusive, uma sanção mais definida, do ponto de vista do Supremo [Tribunal Federal], quando ele convocou as pessoas a irem armadas… eu acho muito grave um presidente convocar a população a ir armada para a eleição. Isso não pode ser abafado, isso tem que ser combatido. 

Aconteceu uma coisa comigo, em um município em que eu fui me apresentar, e eu perguntei se a vida fosse um jogo de palavras, que palavras você colocaria no jogo de agora, da vida? Aí um diz: “respeito”; “amor” e na plateia alguém falou: “Fora Bolsonaro”. E eu fiz um L. Aí veio uma mulher furiosa, do fundo da plateia. 

“Você não vem ser apartidária na minha cidade!”. Ainda me chamou de apartidária. Sabia nem o que estava falando. E uma fúria comigo, os olhos furiosos. Era um monstro, tinha bebido, tudo bem, estava alterada, mas de qualquer maneira, era ela que atravessou ali. Mas a boa notícia: ela estava sozinha. E a plateia toda [gritou] “fora”. 

Esse é o Brasil que a gente nunca tinha visto, porque foram plantadas essas mudas de ódio. Mas eu estou vendo uma coisa, eu viajo muito, vejo o Brasil e eu não vejo manifestação a favor de Bolsonaro em nenhum show, não só meu, de todos os que eu conheço, inclusive de gente que era meio a favor do governo e que levou um susto quando viu a sua plateia que gritando. Vai fazer o quê?. 

Gente que não se posicionava muito, nem pensou em se posicionar, mas a plateia... Eu estou vendo isso. Eu não vejo nenhum grupo bolsonarista em um desses shows. Nunca soube dessa notícia. Estão sempre reunidos naquelas - parece um nicho - lanchiatas, motociatas, carreatas…é gente que tem carro, lancha, moto. 

O Brasil de agora não é o Brasil de 2018. Então, eu tenho muita esperança que a gente ganhe no primeiro turno. Todos nós estamos nos preparando para reconstruir o país da sua hora mais dura, uma hora em que o Brasil expôs sua face mais tenebrosa, de estuprador, torturador, é uma face ruim, mas é melhor sair de dentro da gente e a gente curar, do que ficar disfarçado de cordial. 

Eu acredito, estou confiante que nossa democracia amadurece com esse processo duro. Sai escalpelada, mas está aqui.

Edição: Rodrigo Durão Coelho