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Indigenista desaparecido deixou Funai para defender o Vale do Javari: "Luta como um indígena"

Exonerado por Moro a pedido de ruralistas, servidor fala línguas indígenas e é considerado o maior conhecedor da região

Brasil de Fato | Lábrea (AM) |

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Bruno Pereira em expedição com indígenas no Vale Javari - Divulgação/Funai

Todas as evidências indicam que a defesa intransigente dos povos originários colocou Bruno Araújo Pereira, indigenista da Funai, na mira de criminosos ambientais. O servidor e o jornalista britânico Dom Phillips navegavam juntos pelo Vale do Javari (AM), onde desapareceram no dia 5 de junho.

Bruno estava na região por convite da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Entre os indígenas, era considerado um competente defensor da região, saqueada intensamente por uma rede de pescadores e caçadores ilegais que se conecta ao tráfico internacional drogas.  

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Na Funai desde 2010, o servidor atuou como coordenador do órgão no Vale do Javari, lar da maior concentração de povos isolados do planeta. Pelos povos locais, é considerado o não indígena que melhor conhece a área. 

Lá conquistou a confiança dos povos Marubo, Matis, Matsés, Kanamari, Kulina, que hoje navegam os rios Ituí e Itaquaí em busca dos desaparecidos.

"Bruno é um grande guerreiro que luta igualmente como um indígena Kanamari. Estamos lutando para defender o nosso território. Só temos ajuda dos nossos indigenistas que morrem lutando junto com nós", diz Tamakuri Kanamari, presidente da Associação dos Kanamari do Vale do Javari (Akajava).

Demitido pelos ruralistas 

Em 2016, Bruno deixou o cargo após um delicado conflito entre indígenas, durante o qual foi feito refém, sob a mira de arcos e flechas.

Dois anos depois, ocupou em Brasília o posto de coordenador de departamento de indígenas isolados e de recente contato. O cargo de chefia o permitiu empregar todos os recursos disponíveis na proteção do território.

Em 2019, liderou uma tensa expedição de contato com os Korubo do Coari, grupo até então em isolamento. O objetivo era diminuir a chance de conflitos entre os isolados e os Matis, os mesmos que haviam protestado contra a Funai em 2016. 

Ainda em 2019, o indigenista participou da maior operação contra o garimpo feita naquele ano, que destruiu 60 balsas e expulsou centenas de garimpeiros do Javari. Mas para o governo de Jair Bolsonaro, defensor da mineração ilegal, Bruno havia passado dos limites. Os ruralistas infiltrado na Funai exigiram sua substituição.

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A pressão partiu principalmente de parlamentares ligados ao agronegócio do Mato Grosso. O indigenista era considerado um entrave à exploração ilegal de madeira na Terra Indígena Piripkura (MT), que estava sob restrição de uso. O então Ministro da Justiça, Sérgio Moro, assinou em outubro de 2019 a exoneração de Bruno Pereira da chefia do setor de isolados

Sem qualquer respaldo da Funai, ele percebeu que a única maneira de proteger os indígenas seria atuar fora da Funai, longe da perseguição dos ruralistas. Foi contratado então como consultor técnico da Univaja, que, abandonada pelas autoridades federais, foi obrigada a fazer a vigilância do território por conta própria. 

Denúncias em vão 

Relatos detalhados dos crimes ambientais flagrados por Bruno - e também das ameaças de morte - eram repassadas formalmente a Funai, Ministério Público Federal (MPF), Polícia Federal (PF) e ao governo do Amazonas. Autoridades federais e estaduais sabiam, portanto, do risco corrido pelos envolvidos.

Entre 2020 e 2022, essas instituições receberam inúmeras denúncias: desmatamento no município de Ipixuna, instalação da linha de transmissão de energia irregular em uma terra indígena vizinha; presença de narcotraficantes que assediavam os Kanamari e Mayoruna; e a chegada de balsas de garimpo nos rios Jutaí e Curuena.  

A base Canoão, de onde Bruno e e Dom partiram antes de desaparecerem, era apenas uma das múltiplas frentes de atuação. Ao lado dos indígenas, vivia uma rotina de tensão permanente. "Nós decidimos não nos afastar um do outro nem para ir ao banheiro. Todo o cuidado era pouco", disse um membro da equipe ao Brasil de Fato.

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Com a consultoria de Bruno, os indígenas passaram a usar drones e GPS para documentar as invasões. A intenção era munir as autoridades de evidências e viabilizar operações que devolvessem o território aos verdadeiros donos.  

Mas o reforço esperado nunca chegou ao Vale do Javari. Na verdade, só foi enviado após o desaparecimento. Ainda assim com um atraso que, segundo a Univaja, pode ter impedido a localização da dupla nos primeiros dias, que são sempre os momentos mais cruciais em casos de desaparecimento na mata.  

A falta de Bruno

Falante de quatro línguas indígenas, Bruno conhece a região como a palma da mão. A Univaja contabiliza que ele realizou mais de 10 longas expedições pelo território nos últimos 11 anos, além de ter participado de situações de contato com grupos isolados. 

Em nota, a organização indígena já escreveu que o servidor tem "reputação ilibada", "goza de extrema confiança das lideranças" e é a "maior referência indigenista em atividade" em assuntos relacionados ao Vale do Javari.   

Com o indigenista, pode ter desaparecido também uma maneira única de compreender o Vale do Javari. "Bruno por nós é considerado a maior autoridade no assunto e não visualizamos a realização da mesma atividade [de vigilância] por qualquer outro indigenista na atualidade", escreveu a Univaja. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho