Direito de todes

Linguagem inclusiva é proibida nas escolas de Buenos Aires no mês do orgulho LGBT

Resolução provoca rejeição entre comunidade educacional e LGBT por representar um retrocesso de décadas de luta.

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |
Sala de aula da escola popular Mocha Celis, voltada para a população travesti e trans: "garantir uma educação não sexista não representa um obstáculo para a aprendizagem", defendem. - Bachillerato Popular Mocha Celis

O governo da cidade de Buenos Aires publicou, na última sexta-feira (10), uma resolução que regula o uso da linguagem inclusiva nas escolas públicas e privadas da capital federal. Proíbe, assim, o uso de recursos que substituem o masculino genérico por "e", "x" e "@" na língua espanhola. Em ano pré-eleitoral, o Partido Republicano (PRO), que governa a cidade, segue, assim, uma agenda imposta pela emergente extrema direita no país.

A medida alimentou o debate ainda em curso, com o repúdio de parte da comunidade educacional, feministas e LGBTQIA+ contra a medida. Essencialmente, defendem que o uso inclusivo da língua é um reflexo da luta de décadas pela visibilidade de diversidades de gênero e sexuais, e que precisam ser nomeadas para que, socialmente, existam.

Responsável pela medida, a ministra da Educação, Soledad Acuña, tem dado uma série de entrevistas e declarações para justificar a decisão. Reforça os resultados que demonstram o baixo desempenho do ensino fundamental e médio em leitura e escrita, especialmente no período de ensino à distância durante a pandemia.

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"A evidência das provas e dados que temos sobre a aprendizagem é que há muitos obstáculos para a compreensão da leitura e a fluidez da escrita. Um texto com '@' ou 'X', ou quando se usa, no período de alfabetização, palavras escritas com essas mudanças de compreensão da linguagem, gera obstáculos e confusão", pontuou Acuña em seu Twitter.

No entanto, a problemática, reconhecida pelos próprios professores de todos os níveis educacionais, não teria relação direta com o uso da linguagem inclusiva nas escolas. "Somos poucos os que usamos, é algo que ainda soa um pouco estranho", pontua a professora de ensino médio Vanesa Gagliardi, que fala em linguagem inclusiva fluidamente. "Quem dera a maioria usasse. É necessário construir um espaço onde as identidades se autopercebam da forma que se sintam ser. E isso é um problema para esse sistema machista e patriarcal, por isso atacam esses direitos que adquirimos."

Integrante do Ademys, um dos sindicatos docentes mais combativos da cidade e que se manifestaram contra a medida de Acuña, Vanesa Gagliardi apresentou, junto a Cele Fierro, do partido Movimento Socialista dos Trabalhadores (MST), um dos recursos à Justiça para barrar a medida apresentados ao longo desta semana. Outros sindicatos docentes também se manifestaram contra a medida, como o Sindicato Unificado de Trabalhadores da Educação de Buenos Aires (SuteBA) e a União de Trabalhadores da Educação (UTE).

Diante da ausência de estudos que relacionem a linguagem inclusiva com o desempenho na aprendizagem nas escolas, a Anistia Internacional solicitou ao Ministério da Educação da cidade a apresentação das pesquisas que embasam a decisão. O pedido reforça que a resolução contraria a Lei de Identidade de Gênero, vigente no país desde 2012, que determina "nenhuma norma, regulamentação ou procedimento poderá restringir o exercício do direito à identidade de gênero". No entanto, a ministra afirmou que há sanções previstas para docentes que não cumprirem a resolução.

O que não se nomeia, não existe

A inclusão através da linguagem é um modo não discriminatório de referir-se às pessoas, conforme define a doutora em linguística Sara Isabel Pérez. "Na Argentina, em particular, falar de linguagem inclusiva significa fazer distintos usos da língua espanhola que buscam evitar o sexismo e a discriminação por motivos de gênero, já que em espanhol temos o uso do masculino como genérico", diz, explicando algo que pode ser aplicado, também, ao português, por ser uma língua binária.

"Se falamos de um grupo de professores que inclui também professoras, e nos referimos ao grupo como 'professores', isso se chama sexismo. Portanto, a linguagem inclusiva busca incluir as pessoas que podem se sentir excluídas e visibilizar a subordinação das mulheres e outras identidades e diversidades diante da hegemonia patriarcal."

Sendo assim, como é possível proibir, desde a infância, um recurso inclusivo e que habilita a autopercepção e a liberdade de expressão da identidade?

Textualmente, a resolução do PRO estabelece que os professores deverão desenvolver a comunicação nas escolas "em conformidade com as regras do idioma espanhol, suas normas gramaticais e as diretrizes oficiais para seu ensinamento". Com a resolução, o Ministério da Educação da cidade de Buenos Aires também aprovou uma série de guias pedagógicos para orientar o uso que considera correto da inclusão através da linguagem. 

Indicam que, em lugar do masculino genérico, deve-se usar os/as, incluindo também a referência ao feminino, e, sempre que possível, suprimir os pronomes pessoais ("pessoas idosas" em lugar de "idosos", por exemplo). A sugestão é tomada pelo coletivo LGBT, especialmente o não binário, como um retorno à invisibilização após anos de luta pelo reconhecimento em diversas instâncias da sociedade.

"É muito grave que nos apaguem e construam um bode expiatório sobre nossas existências com uma desculpa que não tem nenhum fundamento", afirma José Nuñez, docente não binárie de história no ensino médio de escolas públicas da capital federal. "Não apenas nas instituições educacionais, mas nas estatais, em geral, temos que exigir o tempo todo que nos reconheçam pelos nossos pronomes."

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Nuñez é integrante da Frente Docente Dissidente, organização de Buenos Aires pertencentes ao coletivo LGBTQIA+. Na última quarta-feira (15), convocaram uma reunião com outras organizações para discutir ações em repúdio à medida que atenta contra o exercício de seu trabalho pedagógico e, também, contra les própries docentes. 

"Essa medida vai contra nossas existências dissidentes e contra todo o campo popular. Nas últimas semanas, houve uma série de ataques de ódio e nos preocupa esse avanço virulento", destaca Nuñez, mencionando a vandalização da escola popular Mocha Celis, voltada principalmente para pessoas travestis e trans, em sua maioria adultas e expulsas do sistema educacional e, não raro, de suas famílias durante a etapa de sua vida escola. Além disso, houve o incêndio intencional ao Hotel Gondolín, importante abrigo para pessoas travestis e trans com anos de trajetória em Villa Crespo, na capital federal.


Objetos cobertos de pó após o incêndio provocado no Hotel Gondolín, na madrugada de 4 de junho deste ano. / Mocha Celis

Matías Soich é ativista LGBT e bibliotecário no Mocha Celis. Para ele, a medida que leva a assinatura de Acuña representa uma violação dos direitos humanos. "No Mocha Celis, é fundamental o uso da linguagem inclusiva. Não como uma obrigação, mas uma opção para que as pessoas que queiram usá-la, o façam, respeitando as identidades. Uma instituição que luta pela inclusão LGBT não pode não reconhecer a identidade des estudantes", afirma.

Além da lei de identidade de gênero, a Argentina também contempla a identidade não binária no documento de identidade desde o ano passado, um reconhecimento conquistado no governo de Alberto Fernández. O Ministro da Educação do país, Jaime Perczyk, se manifestou contra a iniciativa de Acuña. "Temos que melhorar, mas isso não se faz proibindo. Melhorar significa não haver violência, feminicídios, desigualdade, discriminação", disse ao canal de televisão argentino C5N.

Em relação ao "correto uso da língua espanhola" destacada na resolução, vale destacar que, há muitos anos, universidades públicas em todo o país assumem a linguagem inclusiva em diversas instâncias no âmbito acadêmico, desde as comunicações oficiais até os trabalhos apresentados. Isso inclui a instituição universitária mais prestigiada do país e da região, a Universidade de Buenos Aires (UBA).

"Uso linguagem inclusiva nas minhas aulas", conta Soich, professor da UBA. "Não o tempo todo, às vezes pode ser que escape um 'o', o que é comum principalmente em certas gerações. Mas é bom marcar sempre essa alternância, conscientizando a questão de gênero nos discursos", diz, pontuando que, das 55 universidades nacionais do país, pelo menos 21 permitem a linguagem inclusiva.

"Usei o não binário na minha dissertação doutoral em linguística, sobre a construção discursiva da identidade de gênero em histórias de vida de pessoas trans em Buenos Aires", conta. E, nesse caso, a alternância entre inclusiva e normativa representou um conteúdo em si mesmo. "Decidi aplicar a letra 'x' para pronomes, artigos, adjetivos. E, quando necessário, usei o 'o' para fazer referência a uma instituição patriarcal, por exemplo, a comunidade médica do século 19 e 20, que adotaram termos patologizantes sobre as identidades transgênero."

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A luta pelos direitos reprodutivos, de gênero e sexualidades tem representado, na história recente, a conquista de reconhecimentos que, aos poucos, vão formando um novo senso comum. Diante de importantes esforços, já não partimos da predeterminação de que as mulheres são as responsáveis pela limpeza da casa, que as famílias são compostas unicamente sob a estrutura marido-mulher-filhos ou de que o gênero é parte na natureza. O gênero e a sexualidade são configurações de uma identidade social e, portanto, de uma construção também social. São contribuições de décadas de reflexões e ativismo, condensados em trabalhos como a filósofa Judith Butler e referência da teoria queer, e a escritora Monique Wittig, que elevou o debate sobre a heterossexualidade obrigatória e o contrato social sobre gênero com sua máxima: "as lésbicas não são mulheres".

Junho é o mês do orgulho LGBT, e em 2022 completam-se 53 anos da revolta de Stonewall, nos Estados Unidos, quando um grupo de pessoas transgênero, gays e lésbicas foram expulsas da boate Stonewall nos Estados Unidos por não vestirem roupas que correspondessem ao gênero designado em seus documentos de identidade. Em episódios como esse fica manifesta a importância da expressão de gênero na sociedade. Justamente neste mês de junho chama a atenção uma medida como a lançada pelo governo portenho.

O problema de fundo: o sucateamento da educação

Professores da cidade de Buenos Aires, que vivem as problemáticas do sistema público de ensino todos os dias, têm uma opinião diferente em relação à Acuña sobre as causas – e as possíveis soluções – para a dificuldade de aprendizagem em todos os níveis educacionais, incluindo o período da pandemia.

"Viemos de mais de 15 anos de recorte e sub-execução do orçamento educacional todos os anos com o macrismo", aponta a professora do ensino fundamental Patricia Pines, referindo-se a Maurcio Macri, que governou a cidade de Buenos Aires antes de ser presidente, em 2015, e cujo partido segue no comando da gestão da capital federal. Pines é docente no sistema de educação pública há 20 anos, e conhece em detalhes os problemas que se refletem nos baixos resultados das provas: fechamento de turmas e hiperlotação em outras, falta de equipamentos para as aulas, má qualidade e pouca quantidade de comida escolar para os níveis primários, além de salários docentes abaixo do valor da cesta básica mensal.

"A linguagem é a forma que percebemos o mundo. O que não se nomeia, não existe", afirma, reforçando que o uso da linguagem inclusiva não tem relação com os problemas vividos diariamente pela comunidade educacional para promover a aprendizagem. "É impossível pensar que podemos proibir o que as pessoas podem dizer ou não, até porque as infâncias já incorporaram [a linguagem inclusiva]. Inclusive te corrigem. Às vezes, quando digo 'meninos', me dizem: 'não, professora, é menines'."

Já Gagliardi relata uma experiência parecida, ao lecionar no ensino médio. "Tenho alunes que vieram me pedir, elus mismes, para usar o pronome neutro em qualquer conversa no âmbito escolar, para que se sintam incluídes", diz. 

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Em um país marcado pela chamada "onda verde", como ficou conhecida a mobilização nacional pela legalização do aborto no país – simbolizada pelos lenços verdes da campanha –, a medida também é lida pelos feminismos como uma tentativa de retrocesso em resposta à conquista desses direitos. "Foi um processo de, aos poucos, nomear-nos como mulheres e sair do genérico masculino. Depois, foi um passo muito importante utilizar o neutro para visibilizar as pessoas que não entram na lógica binária de feminino/masculino desse sistema patriarcal", diz Cele Fierro (MST). "Quando falamos de gênero, é necessário nomear."

Em geral, a observação sobre a medida e a consequente repercussão da proibição do uso da linguagem inclusiva nas escolas de Buenos Aires teve um grande efeito: ampliar o debate e o efeito de resistência. "Algo que incomoda particularmente os setores conservadores é a visão não binária, que questiona um dos eixos que são base da nossa cultura. Poder debater sobre isso é assumir que as identidades e realidades são complexas e diversas", pontua Soich. "Vamos resistir a esta medida, porque isso define quem somos como sociedade."

Edição: Arturo Hartmann