Autocrítica

“Esquerda acredita que salvará as pessoas no lugar de Cristo”, diz evangélico do PSOL

Voto evangélico: entenda "abismo" que distancia grupos da esquerda de alguns setores religiosos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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"A questão evangélica é um reflexo do que acontece na sociedade", diz Derson Maia - Rovena Rosa/ Agência Brasil

Entre parte da esquerda e alguns grupos evangélicos existe frequentemente “um abismo”, na visão de Viviane Costa, pastora pentecostal e pesquisadora das relações entre religião e poder nas periferias cariocas.  

Por um lado, a esquerda não religiosa é “intolerante” aos evangélicos. De outro, a esquerda religiosa tem resistência aos pentecostais – em linhas gerais, é a segunda vertente mais recente do cristianismo protestante, que chegou ao Brasil no início do século 20, representada por igrejas como Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular e Deus é amor – que, em sua maioria, estão em um contexto de pobreza econômica.  

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Ambas as esquerdas, frequentemente, se colocam “muitas vezes nesse lugar de combater os movimentos pentecostais. Aí o abismo é intensificado. Quando a esquerda se afasta dos movimentos pentecostais, em críticas intensas, também se afasta dessas outras marcas de identidade para a religião, aumentando o abismo entre a esquerda e o pobre”, afirma Costa. 

Neste caldo, a pesquisadora acredita que há um certo preconceito das classes média e média alta em relação aos evangélicos, como se votassem com consciência, enquanto os pobres votassem por “ignorância”.  

Elitismo, racismo e colonialismo 

A visão é compartilhada por Derson Maia, pré-candidato à deputado distrital no Distrito Federal pelo PSOL que se apresenta nas redes sociais como “preto, evangélico e LGBT”. Em suas palavras, existe um “elitismo e um racismo nessas visões da esquerda”, porque vê os evangélicos como “manipuláveis”. E “normalmente a caricatura de alguém manipulável são os pobres e pretos. O discurso que tenta de certa forma classificar o evangélico como alienado, sem instrução, nunca é o evangélico branco”, diz.  

“É sempre uma análise que parte do pressuposto de que se essa igreja está na periferia, em um lugar de ausência de política pública, se essa igreja é majoritariamente negra; logo, essa igreja precisa ser salva”, afirma Maia que denuncia uma visão colonialista da esquerda diante dos evangélicos.  

Ainda em 2016, quando o pastor da Igreja Universal do Reino de Deus Marcelo Crivella derrotou psolista Marcelo Freixo na disputa pela Prefeitura do Rio de Janeiro, Roberto Dutra, professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), criticou a posição da esquerda ao redor de Freixo diante do movimento pentecostal ao poder político. 

Em artigo publicado no El País, Dutra disse que a classe média projetou em Freixo um “sentimento de superioridade moral em relação aos pobres, agora rebaixados com os estigmas de ‘fundamentalistas evangélicos’, ‘massa de manobra’, ‘alienados’ e todos os rótulos que possam aludir menos racionalidade e virtude moral para participar da política e assumir o poder”.  

“Evidência clara deste sentimento foi a naturalidade com que Freixo exigiu, no último debate, que Crivella explicasse e justificasse sua candidatura, como se as pretensões eleitorais e políticas de um político religioso não fossem legítimas pelo simples fato de serem elaboradas em procedimentos democráticos (debate público e eleições)”, escreveu Dutra há seis anos.  

Voltando a Derson Maia, esses comportamentos revelam “um atravessamento elitista e colonial” da esquerda, ainda que grupos desse espectro ideológico não se vejam nesse papel. “É como se dissessem que não é Cristo que irá salvar as pessoas, mas a esquerda, organizada na sociedade civil e nos partidos. É essa maneira de querer salvar pobres e pretos desse monopólio político dos líderes religioso, dessas amarras que, segundo a esquerda, são da manipulação”, diz Maia.  

Segundo a pesquisa Diversidade Cristã: Uma análise sobre a pluralidade e a importância da fé na vida dos brasileiros, produzida pelo Grupo Globo, a maioria dos evangélicos são jovens: 40% dos evangélicos têm entre 16 e 34 anos. Cerca de 54% dos religiosos são da classe C (recebem entre R$ 2.005 a R$ 8.640 de renda mensal, segundo o Centro de Políticas Sociais da FGV), 28% da D e E (recebem de R$ 1.255 a R$ 2.004 na classe D e de 0 a R$ 1.254 na classe E). A maioria também é de mulheres: aproximadamente 58%. Complementando, uma pesquisa do Instituto Datafolha de 2019 mostrou que 59% dos entrevistados evangélicos são negros (pretos e pardos, de acordo com a definição do IBGE). 

Desconhecimento 

O preconceito em relação a grupos evangélicos parte, no entendimento de Maia, que também é doutor em Direito, do desconhecimento de como é a dinâmica das igrejas evangélicas e do cotidiano dos fiéis. “Partem de encenações mais caricatas, que às vezes as novelas criam, de uma pessoa que fica sentada ouvindo e obedecendo aos pastores.” 

No entanto, essa visão ignora, em alguma medida, até a mesmo a história do protestantismo, que é base das igrejas evangélicas. “Quando a Igreja Evangélica rompeu com o catolicismo, nasceu uma visão de que todos nós somos sacerdotes reais. Na terra não existe um papado, não existe uma figura que vai ser mais conectada com Deus do que todos nós”. Por isso que é comum “levar uma bíblia para os cultos para checar nas escrituras se aquilo que a liderança está falando é uma interpretação que você enquanto cristão também tem”. 

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Isso também explica, em partes, porque hoje existem diversas igrejas evangélicas pequenas espalhadas pelo país. “Normalmente as pessoas ‘brincam’ que sempre numa periferia, num lugar mais afastado, vai ter um bar e uma igreja, justamente porque essa facilidade de se abrir uma igreja, de reunir pessoas na garagem e fazer um trabalho evangelístico. Isso vem dessa interpretação de que não é necessário algo centralizado numa figura ou numa denominação específica.” 

Para Maia, o desconhecimento de setores da esquerda invisibiliza até mesmo a própria dinâmica. “Se entendessem isso, não iam achar que tudo é muito manipulável assim. Se fosse manipulável, as igrejas demorariam muito para rachar. E, se tem essas milhares de denominações, é justamente porque existe algum nível de debate e de discordância.” 

Distanciamento político ganha força em 2013 

A questão evangélica é um reflexo do que acontece na sociedade. Logo, se em 2013 houve o esgarçamento do quadro de forças dentro da política institucional e na sociedade, o posicionamento de setores evangélicos acompanhou as mudanças.  

Até antes do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), uma parte considerável dos evangélicos ainda fazia parte da base do governo, mesmo que tivesse sido mais robusta nos governos Lula (PT).  

No final do primeiro ano de mandato, quando o petista sancionou a lei que garante personalidade jurídica às organizações religiosas, o pastor evangélico Jorge Pinheiro, da Igreja Mundial do Poder de Deus, disse que a nova legislação havia acabado com um vácuo jurídico que diminuía a liberdade religiosa.  “Agora cada igreja tem como fazer valer seu próprio estatuto", disse na época. Durante a campanha para a reeleição, em 2006, Lula recebeu apoio público de pastores e líderes da Igreja Assembleia de Deus.  

“Depois de um desempenho não tão bom no governo Dilma, principalmente próximo a 2013, começa a ter algumas rupturas dessa base”, afirma Maia. Para ele, trata-se de um reflexo do que aconteceu no país com as Jornadas de Junho, quando setores da sociedade levaram para as ruas um descontentamento geral com a política brasileira, mas sem pautas definidas. E, assim como outros grupos, os evangélicos também demonstraram um descontentamento que, posteriormente, foi mobilizado satisfatoriamente pela direita. 

“Sempre tiveram setores obviamente conservadores na igreja, desde do início das primeiras igrejas protestantes. Mas houve momentos em que esse pessoal estava menos barulhento dentro da igreja, acomodado dentro dessas alianças mais amplas que a base petista estava fazendo, como um pacto social”, diz Maia. 

Na medida em que ocorre o esgarçamento do quadro de forças dentro da política institucional e na sociedade, ou seja, do tecido que apoiava os governos petistas, “isso foi refletindo no setor evangélico” a partir de um distanciamento e, mais tarde, de uma polarização entre as organizações de esquerda e setores evangélicos. E aí que entram as alianças de direita para mobilizar os afetos do rol dos evangélicos para conquistar apoio e votos.  

Não à toa o voto dessa parte do eleitorado foi decisivo para a eleição de Jair Bolsonaro, durante as eleições presidenciais de 2018.  Em um artigo publicado na EcoDebate, logo após o pleito, Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas, afirmou que “sem dúvida os evangélicos se transformaram em uma força política decisiva”.   

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No segundo turno, foram 57,8 milhões de votos para Bolsonaro e 47 milhões para Fernando Haddad. Uma diferença de 10,76 milhões de votos. Olhando para os votos segmentados por religiões, a diferença entre ambos não foi significativa entre os católicos, espíritas e de outras religiões.   

A discrepância apareceu entre os votos dos evangélicos: 21,7 milhões para Bolsonaro diante de 9,7 milhões para Haddad, de acordo com pesquisa Datafolha. Uma diferença de pouco mais de 11 milhões votos, próximo dos 10,76 milhões de votos que fizeram o capitão reformado vencer as eleições. 

Ainda assim, Maia defende que Bolsonaro não alcançou a totalidade dos votos dos evangélicos. Mas, mesmo assim, “foi se criando, por parte da esquerda, uma narrativa mais forte de caixa a caça às bruxas, como se todos os evangélicos tivessem feito parte disso”, diz. “Se você olhar por outros fatores, existe tendência que estava acompanhando a sociedade como um todo.”  

Edição: Rodrigo Durão Coelho