INFLAÇÃO

Sindicatos e esquerda de Gana reprovam novo acordo do governo com FMI

Movimento Socialista de Gana e sindicatos argumentam que a proposta não aliviará os problemas estruturais da economia

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Protestantes marcham em direção ao Palácio Presidencial no segundo dia de manifestação contra o aumento do custo de vida em Acra, no Gana. - Nipah Dennis / AFP

O governo de Gana iniciou diálogo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para buscar possível programa de empréstimos financeiros. A delegação do FMI concluiu a visita de uma semana a Acra em 13 de julho, onde se reuniu com autoridades, incluindo o Ministro das Finanças Ken Ofori-Atta e o Vice-Presidente Mahamudu Bawumia. A proposta foi duramente criticada pela esquerda ganense, especialmente pelo Movimento Socialista de Gana (SMG) e pelo movimento sindical.

Em comunicado divulgado após a visita, o chefe da missão do FMI, Carlo Sdralevich afirmou "A equipe do FMI realizou discussões iniciais sobre um pacote abrangente de reformas para restaurar a estabilidade macroeconômica e ancorar a sustentabilidade da dívida. As discussões se concentraram em melhorar os saldos fiscais de maneira sustentável, protegendo os vulneráveis e pobres; garantindo a credibilidade da política monetária e dos regimes cambiais; preservando a estabilidade do Setor Financeiro; e projetando reformas para aumentar o crescimento, criar empregos e fortalecer a governança”.

O Fundo disse que continuará a discutir com o governo Ganês a formulação de um programa interno aprimorado que poderia ser apoiado por um Acordo com o FMI. Segundo reportagens, as negociações podem garantir a Gana acesso a um empréstimo até US$ 3 bilhões na Linha de Crédito Ampliado (ECF) e no Programa de Financiamento Ampliado (EFF). O programa pode se estender por três anos, sendo o apoio condicionado ao cumprimento por parte do governo de determinadas metas económicas e políticas. 

"O alto custo de vida está nos matando"

As negociações foram realizadas dias depois de uma nova rodada de protestos que denunciavam os efeitos da crise econômica vivida em Gana. A ação foi organizada pelo Arise Gana - grupo que vem convocando os atos pelo país - no final de junho para protestar contra o "aumento incessante e vertiginoso do preço dos combustíveis no Governo Akufo-Addo/Bawumia", a "apropriação de terras do Estado" por oficiais do governo, "aumento da taxa de brutalidade policial e de assassinatos de ganenses inocentes pelo Estado" e a introdução de um imposto de 1,5% sobre todas as transações eletrônicas.

Os manifestantes também exigiram uma investigação parlamentar bipartidária completa sobre os gastos com COVID-19 e o cancelamento do polêmico Acordo De Royalties Da Agyapa.

Os números oficiais mostram que a taxa de inflação no Gana atingiu 29,8% em junho, a mais alta desde 2004. O preço dos alimentos subiu 30,7% em relação ao ano passado, com inflação de 59,3% no preço do óleo de cozinha e 65% na farinha de trigo. A moradia, que inclui eletricidade, água e gás, registrou uma inflação de 38,4% e os passageiros estão pagando 40% a mais no transporte público, com uma inflação de 99,7% nos preços do diesel e 69,4% para a gasolina. 

A moeda nacional, o Cedi, perdeu 23,5% de seu valor em relação ao dólar desde o início de 2022. Em pronunciamento feito no dia 8 de julho, o Presidente Nana Akufo-Addo afirmou que o governo havia buscado a colaboração com o FMI "para reparar, no curto prazo, nossas finanças que sofreram um duro golpe [...] enquanto continuamos a trabalhar nas mudanças estruturais de médio e longo prazo que estão no centro do nosso plano para criar uma Gana para além do socorro, construindo uma economia Ganesa resiliente, robusta.”

A construção de uma longa crise: Movimento Socialista de Gana rejeita acordo com o FMI

As movimentações do governo foram duramente criticadas pelo Movimento Socialista de Gana (SMG). Em declaração, o movimento afirma que: "a crise em que a economia ganense se encontra é apenas um sintoma do colapso da ordem neoliberal que tem sido imposta de forma incansável pelo FMI, Banco Mundial, pelos centros de poder das metrópoles coloniais e pelos regimes neocoloniais espalhados pela África, Ásia, América do Sul e outros.

"Os agentes desta ordem insistem há mais de 30 anos que o caminho de recuperação econômica passa pela privatização desenfreada das empresas estatais, pela política de austeridade que retira financiamento dos serviços públicos, pela desvalorização cruel das moedas nacionais e na redução maciça do trabalho no setor público". 

O movimento afirmou que Gana está gastando atualmente 128% de sua Receita em emolumentos do setor público e no serviço da dívida. A relação dívida / PIB do país chega a chocante marca de 97%. 

Enquanto isso, de acordo com o SMG, os preços dos alimentos dispararam e cresceram mais de 400% nos últimos dois anos. O poder de compra dos salários está em cerca de 40% do que era há seis anos atrás. Os jovens são particularmente vulneráveis à crise, já que são 36% da população do país. No final de 2021, a juventude era aproximadamente três quartos dos  desempregados em Gana. 

O SMG rejeitou as alegações do governo de que a situação atual surgiu de fatores externos, como a pandemia COVID-19 e a guerra Rússia-Ucrânia. O movimento apontou que o total das despesas relacionadas ao COVID-19, segundo o Ministro das Finanças, foi inferior a GH₵25 bilhões, dos mais de GH₵200 bilhões total. O diretor nacional do Banco Mundial na África havia declarado no mês passado que, embora "COVID não ajudasse", os sinais de uma economia em ruínas eram visíveis muito antes da pandemia. O SMG também argumentou que o impacto da guerra Rússia-Ucrânia na economia de Gana não foi tão grave.

"O FMI é anti-trabalhador" 

O impacto da crise também se manifesta na onda de indignação e protestos dos trabalhadores e trabalhadoras que varreu o país. As diferentes associações e sindicatos de professores dos diversos níveis da Educação de Gana, a "Ghana National Association of Teachers" (GNAT), a "National Association of Graduate Teachers" (NAGRAT), a "Teachers and Educational Workers Union of the Trade Union Congress" (TUC) e a "Concerned Teachers Association of Ghana" entraram em greve no dia 04 de julho. Eles estavam exigindo que o governo pagasse um Subsídio ao Custo-de-Vida (COLA) no valor de 20% de seu salário básico. 

As paralisações estavam prestes a se espalhar para outros setores, incluindo Saúde, em que os diferentes sindicatos de enfermeiras e enfermeiros, parteiras e médicos e médicas, o "Union of Professional Nurses and Midwives", a "Ghana Medical Association", o "Ghana Registered Nurses", o "Midwives, Health Services Workers’ Union" e outros, também haviam anunciado greves. Mais de 27 mil trabalhadores do setor público estavam prestes a suspender suas atividades em uma ação massiva convocada pelo sindicato, o "Public Services Uniion", para o dia 19 de julho.

Ainda em 2021, o governo Ganês havia chegado a um acordo com o TUC para um aumento de 4% na remuneração base em 2021 e 7% em 2022. No entanto, isso estava condicionado ao governo conseguir manter a taxa de inflação abaixo de 8%. O governo também concordou em não anunciar novas demissões no setor público e seguir empregando jovens nos serviços públicos. 

No entanto, no início de 2022, os números oficiais mostraram que a inflação atingiu 27% e os preços de bens e serviços triplicaram, segundo o dirigente sindical Ken Tweneboah Kodua, do sindicato dos servidores públicos, o "Public Services Workers Union". "Qualquer pessoa que esteja recebendo um salário nesse país pode te afirmar que o que ela recebe hoje não paga dois terços da cesta básica", afirma. 

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Depois que o governo se recusou a dialogar com os trabalhadores e a responder às suas demandas, os sindicatos começaram a se organizar para uma ação massiva e coordenada para exigir um COLA de 20%. Embora o aumento em si não fosse suficiente, seria pelo menos um gesto aos trabalhadores, argumentou Kodua. Em 12 de julho, o Ministro das Finanças teria dito ao sindicatos e associações que ele só se reuniria com as categorias que não estivessem em greve. Todos os sindicatos saíram em solidariedade. 

Depois de mais de uma semana de greve em diversas categrias, o governo finalmente concordou, em 15 de julho, em pagar um subsídio de COLA de 15% a todos os trabalhadores do setor público, retroativo, a partir de 1° de julho. 

No entanto, a luta pode ainda não ter acabado. A associação de professores Universitários de Gana, a "University Teachers Association of Ghana" (UTAG), já declarou que "não ira tolerar qualquer condição imposta pelo FMI que impacte negativamente os acordos existentes entre o governo e a Associação para melhorar as condições de trabalho" dos seus membros. 

O TUC também condenou a decisão do governo de buscar o FMI como um "erro trágico e triste para Gana. ”Uma declaração do Secretário-Geral Dr. Yaw Baah afirmou que entregar a gestão da economia ao FMI não era a solução: "esses programas do FMI apenas impuseram dificuldades desnecessárias aos ganenses, praticamente sem oferecer nenhuma contrapartida. As soluções oferecidas pelo Fundo não são adequadas para a nossa economia. Eles se limitam às bordas do problema sem abordar as questões fundamentais".

"O FMI dita as regras aqui já há algumas décadas, e a história mostra que em todos os programas adotados, os que mais sofreram não foram apenas os que já estão trabalhando, mas também aqueles e aquelas que iniciarão a vida profissional. O FMI não vem para os trabalhadores [...] suas políticas são "anti-trabalhadores" [...] todos os seus programas tendem a diminuir a renda real dos empregados e tendem a reduzir a compensação pelo serviço público – é como se eles simplesmente não se importassem com o servidor público, que é o motor do governo, eles ou seguram ou cortam a renda", afirmou Kodua.

A necessidade de uma transformação da economia do Gana 

Esta última rodada de negociações é pelo menos a décima sétima vez que o país da África Ocidental recorre ao FMI. A primeira vez aconteceu depois que o primeiro Primeiro–Ministro e Presidente de Gana, o líder revolucionário, socialista e Pan–africanista Dr. Kwame Nkrumah, foi deposto em um golpe patrocinado pela CIA, em 1966. 

Em 1971, o cedi Ganês já havia sofrido uma desvalorização de 44%. Os anos seguintes foram de grandes crises políticas e econômicas e instabilidade, incluindo dois golpes militares, um em 1972 e outro em 1979. No início da década de 1980, a situação em Gana havia se tornado insuportável, com a inflação subindo para 123% e uma fome generalizada causada por secas prolongadas e incêndios florestais. 

Em 1983, sob a liderança da Oficial da Aeronáutica, Jerry Rawlings, o Conselho Provisório de Defesa Nacional (PNDC) implementou um programa de mudanças estruturais e recuperação econômica patrocinado pelo FMI e pelo Banco Mundial. Isso abriu o caminho para reformas neoliberais, incluindo a liberalização de preços, privatizações e reestruturação do setor financeiro e do setor público. 

No período de um ano, 300.000 trabalhadores do setor público perderam seus empregos. Ainda, o número de trabalhadores registrados no Conselho do Cacau de Gana (Cocobod) reduziu de 100 mil para 10 mil segundo Kodua. Posteriormente, os subsídios aos serviços públicos, como Saúde, foram cortados e um sistema de pagamento adiantado pelo uso deles foi implementado, o que exigia usuários pagar para ter acesso aos mesmos serviços de antes, porém agora somente mediante pagamento, " acesso à Saúde tornou-se condicionado a quão fundo era o bolso de quem estava precisando", disse Kwesi Pratt Junior, Secretário Geral do SMG. 

"Uma das condições que eles [o FMI] nos impuseram foi que deveríamos vender empresas estatais, eles afirmavam que essas empresas eram um desperdício de recursos públicos. Das 400 fábricas que a Nkrumah havia construído, em 1992 já tínhamos vendido mais de 300. De todas as empresas e fábricas que vendemos, apenas duas parecem estar funcionando ainda. As outras simplesmente faliram", acrescentou. 

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O FMI também pressionou Gana a desvalorizar sua moeda. De acordo com Pratt, cumulativamente entre 1982 e agora, o cedi Ganês foi desvalorizado em 38.000%. 

Não obstante, Gana continuou a recorrer ao FMI nas décadas que se seguiram. O acordo mais recente fazia parte de um programa de 3 anos da Linha de Crédito Ampliado assinado pelo ex-presidente John Mahama em 2015. Em troca de um empréstimo de US $ 918 milhões, o governo impôs reformas, incluindo cortes nos subsídios à energia, um aumento de 17% nos preços dos combustíveis e um congelamento de empregos no setor público. O aumento nominal da massa salarial total também foi restringido a 10%. 

O acordo entre Gana FMI terminou em 2019 (depois de ter sido prorrogado por um ano), desta vez sob a administração do Presidente Akufo-Addo e de partido de direita, o "New Patriotic Party".  

"O que recebemos em troca foi uma economia ainda excessivamente dependente da produção e exportação de matérias-primas e importação de produtos manufaturados. A maior parte do nossos setores produtivos, como mineração, petróleo e telecomunicações, ainda está sendo controlada por empresas estrangeiras", argumentou o TUC.

Apesar de ser um dos maiores exportadores de ouro do mundo, um relatório do Banco de Gana descobriu que menos de 1,7% dessas exportações tem retorno para os cofres públicos. Entre 1990 e 2002, o governo recebeu apenas US $ 87,3 milhões dos US $ 5,2 bilhões do foi gerado pela produção de ouro. 

Enquanto o governo se prepara para dar os próximos passos, o SMG afirmou que suas expectativas em relação ao processo "não são otimistas", argumentando que "não há evidências de que qualquer país, em qualquer lugar do mundo, tenha conseguido melhorar suas Economia após a implementação de medidas ditadas pelas instituições de Bretton Woods.” 

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"A atual crise vivida nas neocolônias após 30 anos de implementação rigorosa dos Programas de Recuperação Econômica e Ajuste Estrutural demonstra que essas medidas não conseguem resolver os problemas das condições dos trabalhadores", disse SMG. Há preocupações de que um novo acordo leve a novas medidas de austeridade, dado que o FMI tem  impôs a consolidação fiscal para Gana como parte de sua estratégia de recuperação da COVID-19. 

"Uma coisa é muito certa", argumenta o TUC, "o décimo oitavo programa do FMI não resolverá nossos problemas. Portanto, devemos estar preparados para o décimo nono, vigésimo e mais programas nos próximos anos, embora seja tão óbvio que os programas do FMI praticamente não altera as condições estruturais para um crescimento e desenvolvimento sustentáveis.” O TUC pediu Políticas e Programas destinados a acabar com o domínio das empresas estrangeiras nos setores mais produtivos da economia, minimizando a dependência dos recursos naturais e construindo uma base industrial robusta. 

"O FMI não está aqui para baixar os preços, eles não estão aqui para garantir que construamos estradas – eles se portam com se não fosse problemas deles e eles simplesmente dão a mínima. Eles não estão aqui para garantir que o acesso a serviços sociais como educação e saúde seja ampliado [...[ a principal preocupação do FMI é garantir que paguemos de volta os nossos empréstimos, não de nos desenvolvermos", afirmou Pratt. 

O SMG afirmou que remover Gana de seu atual estado de dependência depende de uma reestruturação profunda da Economia, baseada na transformação socialista. "O nosso foco deveria ser a construção de uma Economia em que o povo seja o dono dos recursos de Gana e que a exploração deles se reverta em melhorias para o povo". A organização argumentou que se referenciar no modelo de desenvolvimento do Dr. Nkrumah, baseado na crescente industrialização, poderia ser um passo fundamental. 

Nas condições atuais, Pratt argumentou que "o governo deve ouvir o a classe trabalhadora organizada e começar a construir um consenso nacional para evitar a calamidade que está surgindo no horizonte”.