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Bolsonaro tem chance de chegar ao segundo turno, avalia economista

No BDF Entrevista, economista também explica o papel moderador dos BRICs em um possível governo Lula

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O economista, que também ocupou o cargo de diretor-executivo do FMI (Fundo Monetário Internacional) entre 2007 e 2015, lembra que os BRICs, apesar de seu caráter econômico, nunca deixaram de atuar politicamente - Reprodução/Site Paulo Nogueira Batista Jr.
Bolsonaro chega razoavelmente competitivo ao primeiro turno. E tende a chegar ao segundo turno

Os caminhos para a retomada de um Brasil altivo no cenário internacional podem passar por um fortalecimento dos BRICs - o grupo de países que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. A equação foi defendida pelo ex-presidente Lula (PT) durante reunião com embaixadores no último dia 14 de agosto. 

Lula, que é um dos principais candidatos à Presidência nas eleições de outubro deste ano no Brasil, foi um dos criadores do bloco dos BRICs, que em seu auge, chegou a ameaçar a hegemonia das grandes potências mundiais. 

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A tese de mediação dos BRICs nos conflitos mundo afora também é defendida por diversos analistas de política internacional. Um bloco coeso de países emergentes, ou em desenvolvimento, poderia inclusive por fim ao conflito bélico entre Rússia e Ucrânia, que já dura seis meses.

Para o economista Paulo Nogueira Batista Júnior, ex-presidente do banco dos BRICs, o NBD (New Development Bank), “caso Lula se eleja realmente vai acontecer esse fortalecimento. O Lula foi um dos fundadores dos BRICs e os BRICs têm muito potencial ainda não totalmente explorado”, explica. 

“Rússia, China, Índia, Brasil e África do Sul formam um conjunto de países que já tem experiência de cooperação e podem continuar cooperando muito bem. Se vão ter um papel de mediação, de pacificação, já são outros quinhentos. Pode ser difícil, porque para haver pacificação entre Eurásia e o Ocidente precisa haver uma disposição dos dois lados”, completa Batista Júnior.

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Convidado desta semana no BDF Entrevista, o economista, que também ocupou o cargo de diretor-executivo do FMI (Fundo Monetário Internacional) entre 2007 e 2015, lembra que os BRICs, apesar de seu caráter econômico, nunca deixaram de atuar politicamente. Ele alerta porém que, neste momento, onde o Brasil é considerado um país apartado das decisões internacionais, é arriscado uma tomada de posição em favor de algum dos entes do bloco.

“Nós não temos, como país, interesse em nos associarmos plenamente aos conflitos que existem entre a China e os Estados Unidos, entre a Rússia e os Estados Unidos. Nós temos que manter uma distância desse conflito. O Brasil deve se manter cooperando com os BRICs, procurando que os BRICS continuem a ser o que foram desde o início, não anti Estados Unidos, não anti Europa, não anti ninguém, mas pró BRICs, e se possível, pró países em desenvolvimento de uma maneira mais ampla”, explica. 

Ao BdF Entrevista, Batista Júnior comenta ainda sobre os erros na condução da política econômica do Brasil, “desde a presidência de Michel Temer” e elenca desafios que o próximo presidente terá ao assumir o cargo em 2023, principalmente após as tentativas do presidente Jair Bolsonaro (PL) em estancar a crise econômica do país, com uma série de medidas artificiais.

"Essa cartada eleitoral [do Bolsonaro], e que não é a última, é importante. E cria um pesado legado fiscal para o futuro governo. Fiscal e inflacionário, porque ao reprimir a inflação de várias maneiras hoje, ele joga a inflação para 2023. Ao gastar abundantemente, ele joga o déficit fiscal também para o próximo ano". 

“[Caso Lula seja eleito] ele vai ter que gastar uma parte do capital político dele acabando com esse teto de gastos, que é uma jabuticaba brasileira criada pelos gênios econômicos do governo Temer. Não existe isso em lugar nenhum no mundo. Tanto que ninguém consegue conviver com isso. O Bolsonaro já furou esse teto várias vezes”.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Paulo, você foi vice-presidente do banco dos BRICs, conhece bastante a relação entre os países… É possível voltar a fortalecer as relações do bloco? O ex-ministro Celso Amorim fala, inclusive, que os BRICs seriam o caminho ideal para arrefecer as tensões políticas da Eurásia, por exemplo?

Paulo Nogueira Batista Jr: Acredito que sim, é perfeitamente possível. Vai acontecer, caso Lula se eleja realmente, como a gente espera. Vai acontecer esse fortalecimento. O Lula foi um dos fundadores dos BRICs e os BRICs têm muito potencial ainda não totalmente explorado. Porque são os países grandes da periferia e nem periferia mais são, tão importantes se tornaram. Não tem mais sentido falar que a China é periferia, ou mesmo a Rússia.

Então Rússia, China, Índia, Brasil, África do Sul formam um conjunto de países que já tem experiência de cooperação e podem continuar cooperando muito bem. Se vão ter um papel de mediação, de pacificação, já são outros quinhentos. Pode ser difícil, porque para haver pacificação entre Eurásia e o ocidente precisa haver uma disposição dos dois lados.

Até acredito que haja disposição do lado da China e da Rússia, mas não me parece que, do lado americano, essa disposição exista, por enquanto. Se existir, eu acho que sim, o Brasil pode, sendo mesmo dos BRICS e tendo uma parceria também com os Estados Unidos e com a Europa, ajudar numa possível mediação.

Eu vi um comentário seu a respeito desse tema, colocando alguns entraves. Você diz que os BRICs são um bloco de relação econômica e não deveriam se colocar como um bloco político. Por quê?

Olha, na sua origem, a cooperação dos quatro - depois de cinco países, quando a África do Sul entrou - foi uma cooperação voltada primordialmente para temas econômicos e financeiros. Mas como os BRICS, desde o início, foram também um foro onde os líderes dos países, presidentes e primeiros ministros, se encontravam, não dá pra circunscrever a pauta apenas a termos econômicos e financeiros. Então, entraram também em termos políticos e vão continuar entrando. 

Porém, na minha opinião, o Brasil tem que tomar um certo cuidado com essa parte política, porque nós não temos, como país, interesse em nos associarmos plenamente aos conflitos que existem entre a China e os Estados Unidos, entre a Rússia e os Estados Unidos. Nós temos que manter uma distância desse conflito. 

Não distância, eu diria, mas nós não podemos nos imiscuir como parte. Porque nós não somos parte dessa briga, essas brigas pesadíssimas que existem entre Rússia e Estados Unidos, entre China e Estados Unidos. O Brasil deve se manter cooperando com os BRICs, procurando que os BRICS continuem a ser o que foram desde o início, não anti Estados Unidos, não anti Europa, não anti ninguém, mas pró-BRICs, e se possível, pró países em desenvolvimento de uma maneira mais ampla. 

Durante os governos Lula, também durante o governo da presidenta Dilma Rousseff, houve uma priorização das relações com a China e com os blocos locais, como o Mercosul, entre outros. Você acha que isso também pode pesar nessa nova cara dos BRICs? 

Sem dúvida, porque o Brasil volta com o Lula - se o Lula se eleger - com disposição de dialogar com os países que estão em nível de desenvolvimento semelhante ao nosso, até inferior. Sem prejuízo, volto a dizer, das relações positivas também com os países desenvolvidos, que têm muito a nos oferecer, pelo menos teoricamente.

Agora, o Brasil é um parceiro da América Latina, é um país latino-americano, do Caribe, da África, da África portuguesa, da África não portuguesa, da Ásia, do Oriente Médio, nós fomos isso no governo Lula, principalmente, mas também no governo Dilma, em menor medida e poderemos voltar a ser.

Eu sempre digo que o brasileiro não se dá conta de como o Brasil é um país muito singular. É um país que nasceu, por assim dizer, global. Porque aqui vieram se reunir povos de todas as partes do mundo, os povos originários vieram, ao que tudo indica, da Ásia. Depois vieram os portugueses, vieram os negros trazidos pelo tráfico de escravos, vieram outros europeus, japoneses, libaneses, árabes. 

Então, o Brasil tem uma disposição para dialogar, uma capacidade de entender os outros países, que poucos países têm, no mundo. O Brasil poderá ser, sim, importante. Claro que agora, nada. Com esse governo, nós andamos para trás em todas as áreas, inclusive nas relações internacionais. 

Mas se o Lula for bem sucedido no propósito de voltar a ser presidente, nós teremos condições de voltar a fazer isso tudo. Veja que eu digo e é importante deixar claro, que o projeto brasileiro não é apenas nacional. Ele é universal no seu caráter e pode sê-lo pela característica que eu mencionei, pela formação brasileira e também pelo tamanho do Brasil. 

Por isso que eu escrevi um livro, o mais recente, que se chama “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”. Por que não cabe? Porque é um dos gigantes do mundo, não se consegue inserir um gigante no quintal de ninguém, por maior que seja o dono da casa que tem esse quintal.

Voltando a falar da China, ela tem crescido vertiginosamente há muitos anos e, cada vez mais, vem se colocando como uma força dominante em um mundo que, agora, tende a ser multipolar. O avanço tecnológico da China, inclusive, já causou enormes desconfortos nos Estados Unidos. E agora a influência política também ganha enorme destaque. Que mundo multipolar é esse que teremos e quais os arranjos que serão necessários?

Você resumiu muito bem o quadro. Eu acrescentaria ao que você disse o seguinte: no mundo multipolar, a China não substitui os Estados Unidos. A China não tem, e não terá tão cedo, o poder que tiveram, em algum momento, Estados Unidos e a Europa no planeta. A China vai ser um pólo importantíssimo no leste da Ásia, mas mesmo ali, a China não tem comando absoluto. Enfrenta resistências e desconfianças dos vizinhos Japão, Taiwan, Vietnã.

Você terá um polo na China, um polo na Rússia e países circundantes, Oriente Médio, Ásia, Índia, Sul da Ásia com a Índia no foco, ainda que as tensões com o Paquistão não permitam à Índia ter uma representação ampla naquele subcontinente. Você terá a África que vai crescer, vai se desenvolver, vai superar o seu atraso secular e vai também se constituir sob a liderança de países como Nigéria, como África do Sul, em um polo.

E aqui nós esperamos formar outro polo, que não será oposto ao polo Atlântico Nortista, que é Estados Unidos, Canadá e Europa Ocidental, mas será um polo próprio que não é ocidente. E o Brasil e a América Latina não são ocidentais, são geograficamente ocidentais, mas política e culturalmente nós somos mais do que isso, como eu tentei explicar me referindo ao Brasil.

Em cooperação com os nossos vizinhos o Brasil terá que ser um desses polos, em um mundo fragmentado, perigoso como nós estamos vendo. Mas esse mundo fragmentado, multipolar, também oferece aos países em desenvolvimento a oportunidade de buscar mais autonomia. E é isso que nós temos que fazer.

Essa questão recente com Taiwan - que não é tão recente assim, já vem se arrastando há muitos anos - teve um novo capítulo com a visita da presidenta da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, uma visita de estado que não acontecia desde 1997. O que esse conflito pode rearranjar nessas disputas entre China e Estados Unidos? 

A China tem um horizonte longo, sabidamente. O primeiro passo foi absorver Hong Kong, sem limitações, o que aconteceu agora muito recentemente. Em relação a Taiwan, eu estava vendo o noticiário da televisão brasileira e vários canais falando sobre esse assunto, de maneira totalmente exagerada, ao meu ver, dizendo que a China está prestes a invadir Taiwan. 

Eu posso até queimar minha língua, essas coisas são imprevisíveis, mas não vejo a China fazer isso. A China não tem interesse em forçar o tempo. O tempo corre a favor dela e ela sabe disso. Ela vai comprar tempo, vai continuar tentando se desenvolver, se equiparar, reduzir o gap que ainda existe entre ela e os países desenvolvidos e não vai avançar o sinal, no meu entender.

Os americanos podem provocar, como provocaram agora com a visita que você mencionou da presidente da Câmara dos Deputados. Pra quê? Não sei. O que os americanos querem com isso? Vai entender, não é claro. Será que eles querem voltar ao status quo de antes? Não, não é possível. Querer que Taiwan seja reconhecida como nação independente, não vai acontecer. Já foram longe demais naquela política de uma China só. 

É importante ver o que é Taiwan. Os chineses não querem dizer isso, mas a verdade é que para todos, ou quase todos efeitos, Taiwan é uma nação independente, ainda que não seja reconhecida como tal pela maior parte dos países. É um país, uma ilha, um arquipélago na verdade, com uma ilha principal, que é a ilha de Formosa. Com 25 milhões de habitantes, próspera, de população chinesa, o mandarim é a língua dominante.

São eficientes com os chineses, uma economia vibrante, democrática, cuja população majoritariamente não quer incorporação à China continental, segundo as pesquisas disponíveis. Então, é muito diferente da situação da Ucrânia, que é um país que surgiu em 1991, 1992, com a dissolução da União Soviética e é um país que se mostrou, até agora, meio inviável mesmo antes dessa guerra. A Ucrânia é uma confusão, um país que até agora se configura como um estado falido. Dominado por milícias neonazistas, dividido, heterogêneo, com governos amadorísticos. Esse último, [Volodymyr] Zelensky, é apenas um de uma série de governos incompetentes.

Já Taiwan é um país sólido. Os chineses não gostam de dizer que é um país, mas é. Ele está fora do controle chinês, por enquanto. E quer permanecer assim. 

Sobre o conflito Rússia e Ucrânia, economicamente nós vimos que várias cadeias podem ser afetadas por uma guerra. O que fica de lição desse conflito, que ainda não terminou?

A lição desse conflito, que já foi tirada até antes, com a pandemia, é que os países não podem depender excessivamente de produtos estratégicos importados, sobretudo de cadeias longas, trans planetárias. 

Então, os países estão se movimentando para internalizar o que antes era importado, ou para fazer o que os americanos chamam de nearshoring, proposição ao reshoring, trazer pra dentro, nearshoring é trazer pra perto. E os americanos até introduziram outra palavra que é o friendshoring. Mesmo que distantes, se os países são amigos e produtores dos bens necessários aos Estados Unidos, isso seria aceitável. 

Essa é a estratégia que os países vão seguir. O Brasil também, aliás, já está fazendo isso, não por causa do governo, que é uma confusão, mas por causa das empresas que, vendo os riscos que correm com cadeias longas, estão procurando o abastecimento doméstico, produção doméstica ou vizinha. As empresas brasileiras já estão fazendo isso desde o ano passado e vão continuar.

E isso pode acontecer, por exemplo, na relação Europa e Rússia, porque havia uma dependência muito grande de combustíveis fósseis, também do gás…

Esse é um excelente exemplo. A Europa agora se deu conta, tardiamente, da enorme vulnerabilidade que ela tem na área energética, como você mencionou. Está fazendo o possível e até o impossível, porque está violando os compromissos ambientais para poder se tornar menos dependente da energia russa. 

Eles, agora, perdem uma cartada, porque vinham pelo mundo afora pregando o ambientalismo, dando lição de moral inclusive para o Brasil, e na hora do aperto, eles são obrigados a violar os compromissos ambientais também. 

O presidente Jair Bolsonaro tenta suas últimas cartadas para arrefecer a crise econômica do país. O Congresso, inclusive, embarcou nessa também e aprovou a PEC Kamikaze. Nos últimos dias, a gente tem visto uma leve queda da inflação, o preço dos combustíveis estão mais baixos e talvez isso dê até um respiro ao presidente na corrida eleitoral. Mas o presidente que assumirá em 2021, seja ele quem for, terá um desafio gigantesco pela frente, não é?

Concordo com a sua avaliação, exceto em um ponto: eu acho que nós temos que ser realistas e perceber que o que o Bolsonaro está fazendo não são propriamente as últimas cartadas. Ele chega razoavelmente competitivo ao primeiro turno. E tende, infelizmente, a chegar ao segundo turno. Por quê? Em parte por motivos que você já mencionou, a economia está melhorando, não só a inflação cedendo um pouquinho, mas sobretudo o nível de atividade se recuperando. 

O desemprego está caindo, o emprego subindo, ainda que em condições precárias. Então, o quadro macro é favorável a ele, com exceção da inflação que cede pouco. E a PEC Kamikaze vai trazer alívio para aqueles que sofrem mais com a crise. Sobretudo por causa do aumento substancial do Auxílio Brasil, de R$ 400 para R$ 600. 

Por isso, Bolsonaro chega competitivo. Não subestimar o adversário é importante, Bolsonaro é um comunicador, para nós horrível, mas para muitos brasileiros, 30% ainda dizem querer votar nele e pode ser que suba esse valor, na medida que o Auxílio Brasil chegue nas mãos dos mais necessitados, os desesperados.

Então, de fato essa cartada eleitoral, que não é a última, é importante. E cria, como você disse muito bem, um pesado legado fiscal para o futuro governo. Fiscal e inflacionário, porque ao reprimir a inflação de várias maneiras hoje, ele joga a inflação para 2023. Ao gastar abundantemente, ele joga o déficit fiscal também para o próximo ano. 

Por exemplo, o Auxílio de R$ 600 ninguém vai conseguir tirar, vai ter que continuar, não é provisório. Bolsonaro não tira, o Lula se conseguir se eleger, não tira. Porque a emergência social vai continuar e o Lula iria fazer algo semelhante, mas bem feito. O Lula tem quadros ótimos na área de política social, como a Tereza Campelo, que ia fazer um serviço muito melhor que esse, mas era mais ou menos o que o Lula estava pensando, transferir recursos emergencialmente para os que estão na emergência social, na fome, na rua.

Isso que o Bolsonaro fez por motivos eleitoreiros, o Lula terá de fazer também, mais e melhor, corrigindo as distorções do programa Auxílio Brasil, voltando ao Bolsa Família, melhorado, ampliado, que o Lula tem condições de construir, mas a sua ressalva é importante. A herança é pesada. Depois da PEC Kamikaze, o Lula teve, provavelmente, que ajustar os seus planos econômicos a essa nova realidade criada pelo desespero eleitoreiro do Bolsonaro. 

Esse Brasil de 2023 será um país ainda mais refém do grande capital? 

Creio que não. Continuará a ser o grande capital uma força política importante, até retrógrada em muitos sentidos. Mas a eleição não está sendo ganha por eles. Eles estão tendo que participar de uma frente ampla liderada pelo PT, liderada pelo Lula em especial. 

Eles terão espaço no novo governo, continuarão a ter o espaço que tem na sociedade, na economia, na mídia, mas não estarão tão hegemônicos como estiveram no governo Temer, no governo Bolsonaro. 

Esse arco de alianças que foi feito pelo ex-presidente Lula, na teoria, inviabiliza grandes movimentos, por exemplo, a taxação de grandes fortunas e outros projetos economicamente mais progressistas? 

Talvez, mas certamente dificulta. Porque a presença de setores conservadores no arco de alianças vai se refletir no governo, fatalmente. Você é muito jovem, não deve se lembrar daquele personagem do Jô Soares, do Viva o Gordo que dizia “sois rei?”, quando os conselheiros se assanhavam muito a querer dar instruções e palpites. Ele chutava os assessores. 

O Lula não vai poder fazer isso, não vai poder dar uma de reizinho. Ele terá de fazer um governo que reflita a campanha. Não tintim por tintim, mas grosso modo. Isso inviabiliza? Não, porque ele poderá tentar fazer várias coisas e fará essa tentativa. Ele tem dito também: “Olha, eu estou fazendo uma frente ampla, mas eu vou fazer mais do que fiz”. Ele falou isso, repetidamente.

E esse “vou fazer mais” não será esquecido e não poderá ser esquecido. Faz parte do conjunto de avisos e compromissos que ele deu. Você deu um exemplo aí. Imposto sobre grandes fortunas. Só no Brasil, conservador como é, que isso é considerado uma grande ousadia.

Esse tributo existe em vários países. Foi criado pelos constituintes da Constituição de 1988. Existe portanto no Brasil, mas só na Constituição, e tem que existir na realidade. Repare que os constituintes foram muito precisos, eles falaram “imposto sobre grandes fortunas”. Então, a lei complementar que criaria esse imposto, que criará esse imposto, espero, tem que estabelecer uma linha de corte que preserve a classe média.

Não se trata de tributar o patrimônio da classe média e sim das grandes fortunas. Os grandes contribuintes, que são grandes fortunas e não são grandes contribuintes. Por isso que o sistema é injusto. Os super ricos é que precisam pagar. Pode-se fazer isso, é perfeitamente possível, tem que fiscalizar, tem que botar máquina tributária para funcionar, mas é possível. 

O segredo é o governo - isso tem sido dito por alguns especialistas - deixar claro para a população que a nova tributação não será nem para a classe média, que já pagam demais e nem sobre os pobres, que já pagam demais via impostos indiretos. Será sobre as grandes fortunas, sobre os super ricos que encontram aqui no nosso país, um paraíso fiscal. 

Por que os brasileiros não precisam tanto de paraíso fiscal? Porque eles já têm um aqui falando português, é um escárnio. O que você tem que fazer é ao contrário, você tem que aliviar a tributação sobre o povo, sobre a classe média e tributar mais os mais ricos. Por exemplo, o congelamento por anos da tabela do imposto de renda, que faz com que as pessoas, sem ter aumento real de salário, migrem paulatinamente para faixas mais altas de tributação no imposto de renda. 

Isso é um absurdo, é uma tributação adicional não legislada. A coisa está tão grave com o aumento da inflação, que há situações em que o sujeito tem queda de renda real e aumento da carga tributária no imposto de renda. Porque o aumento nominal, embora insuficiente para cobrir a inflação, te empurra para uma faixa mais alta de tributação na tabela progressiva. 

Então, está tudo errado, né? O Lula não vai conseguir corrigir tudo? Não sei, mas terá que, pelo menos, enfrentar alguns problemas. Alguns mais gritantes, mais alarmantes, inclusive esses no sistema tributário. 

Que problemas são esses, Paulo? O que é possível sanear em quatro anos, pensando que no Brasil, esses quatro anos são penosos. Se faz um primeiro ano de fôlego, chancelado pelas urnas, dois anos ajustando o carro e o último já pensando em reeleição ou sucessão.

Você falou quatro anos, mas não, são oito. Se o Lula estiver em boas condições de saúde, eu acredito que ele vai ter que disputar a reeleição. Ele falou agora: “ah, são quatro anos só. Os mais jovens precisam vir”. Mas na hora H, se ele estiver indo bem, bem de saúde, vai haver um clamor nacional para que ele se recandidate. E não repita, por favor, o grande erro cometido em 2014, quando ele devia ter se candidatado e não a Dilma, à reeleição. 

Mas a sua pergunta era outra. O que ele pode fazer? Por exemplo, ele vai ter que gastar uma parte do capital político dele acabando com esse teto de gastos, que é uma jabuticaba brasileira criada pelos gênios econômicos do governo [Michel] Temer. Não existe isso em lugar nenhum no mundo. Tanto que ninguém consegue conviver com isso. O Bolsonaro já furou esse teto várias vezes. 

O Lula terá de fazer uma revisão organizada, porque não adianta ficar mantendo o teto e furando ele a cada semestre com propostas de emenda constitucional. Deus me livre. Em nenhum lugar do mundo a política fiscal é conduzida por emenda constitucional. Isso só acontece aqui, porque na busca insensata da credibilidade, a equipe econômica do Temer colocou uma regra fiscal na constituição. Um absurdo. 

Ele terá de recuperar as políticas sociais abandonadas ou danificadas no governo Temer e no governo Bolsonaro. O Minha Casa Minha Vida, por exemplo. Eu já falei do Bolsa Família,  que terá que ser ampliado. Retomar o Cadastro Único, que foi meio que abandonado, acabar com as filas e remover a tributação extraordinária feita via congelamento da tabela, ele tem que corrigir os recursos, os salários, as remunerações do funcionalismo público.

Não é possível a máquina pública funcionar comprimindo por anos e anos os salários das carreiras de estado. Eu estou aqui sentado, tranquilamente conversando com você, falando um monte de coisas dificílimas de implementar, só essas que eu mencionei. Mas são pautas importante que eu acredito que estarão no radar do Lula e da sua equipe.

O Brasil vai ter que fazer escolhas decisivas sobre o caminho no próximo ano. Fortalecer os blocos regionais, o que parece possível agora como América Latina mais coesa politicamente, ou apostar no fortalecimento das relações bilaterais. Qual deverá ser o caminho?

Essa pergunta é importante. Eu creio que nós temos que retomar a integração regional. Mas sem ilusões. Sabendo que é um processo muito difícil, porque os nossos vizinhos são muito complicados. Nós também somos. E a tentativa de combinar com eles alguma coisa sempre esbarra em dificuldades. 

O Mercosul, por exemplo tem que ser retomado, ampliado. Venezuela e Bolívia podem entrar rapidamente. A Bolívia está na beira e a Venezuela foi suspensa, olha só como são as coisas. Ela foi suspensa porque o governo golpista de Michel Temer se associou com o governo [Maurício] Macri e invocou uma cláusula democrática para suspender a Venezuela. A hipocrisia é infinita. Esquece esse negócio, traz a Venezuela de volta, completa o processo de integração da Bolívia e só aí você vai ter a ampliação do Mercosul de quatro para seis países. 

Outros países são mais complicados, porque eles estão engajados num processo de integração comercial e econômica profunda com os Estados Unidos. Mas quem sabe lentamente, batendo muito a cabeça, sem grandes ilusões, nós podemos também ampliar as relações comerciais e econômicas com aqueles que estão na órbita de tratados profundos com os Estados Unidos

Edição: Vivian Virissimo