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O que a possível entrada da Argentina no Brics diz sobre a nova ordem mundial

A cooperação entre países do sul global desestabiliza a hegemonia dos EUA e investe em mundo multipolar

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |

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Alberto Fernández em Pequim. Viagem do início de 2022 aproximou Argentina e China - Esteban Collazo / Presidência da Argentina / AFP

A Argentina segue trabalhando para negociar sua entrada no bloco Brics de cooperação internacional. Contam, para isso, com o gigante da aliança, já que a China, que preside o Brics neste ano, expressou seu respaldo à entrada do país no bloco durante a reunião de ministros de exteriores do G20.

Ser parte do Brics não é uma aspiração apenas da Argentina. Recentemente, Irã e Arábia Saudita também manifestaram o interesse. Os países da sigla, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, representam as economias emergentes mais importantes do início do século, 40% da população mundial, quase um quarto da economia global e são responsáveis por mais de um terço da produção de cereais. Como bloco, ganham notável relevância na conjuntura global que descola a unipolaridade representada pelos Estados Unidos como potência hegemônica. E fala, de um modo geral, sobre a nova ordem mundial que abala a Casa Branca como potência hegemônica.

Em seu discurso como convidado na cúpula do Brics, em modo virtual neste ano, o presidente argentino, Alberto Fernández, voltou a defender a multipolaridade no contexto de crise global. Falou sobre integração global, "amizade entre os povos", cooperação internacional, sobre "a não ingerência entre os Estados" e a garantia da "integridade territorial".

A entrada no bloco seria, então, uma estratégia para aprofundar laços já existentes em outros âmbitos. No caso da Argentina, o país tem no bloco três de seus principais sócios comerciais: Brasil, sendo o primeiro, seguido de China, e a Índia em terceiro (o quarto lugar no ranking é ocupado pelos Estados Unidos). A Argentina também já firmou o acordo do Cinturão e Rota com a China, conhecido também como a Nova Rota da Seda, que garante o financiamento em infraestrutura e reforça o elo político entre os países.

A Argentina tem interesse em participar ativamente no Brics. Veem no bloco econômico um mecanismo de destaque no mundo para trabalhar as agendas do sul global, com um importante braço financeiro no Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) do Brics.

"Muitas vezes, essas agendas são mais periféricas em relação ao pensamento dominante", afirmam fontes oficiais do Ministério de Relações Exteriores ao Brasil de Fato. "A eventual entrada da Argentina no Brics gerará novas oportunidades de intercâmbio e associação que promovam o desenvolvimento nacional e permitirá reforçar o papel do nosso país como um ator que dialoga e coopera com todas as principais potências, tanto do mundo desenvolvido quanto do emergente", afirmam. "A Argentina é um país firmemente aderido ao multilateralismo."

Nova ordem mundial

Durante a Guerra Fria, o Movimento de Países Não Alinhados promoveu o que hoje parece ganhar mais espaço na geopolítica global: não fixar laços que subjugam a independência nacional às principais potências mundiais — que, na época, eram representadas por Estados Unidos e União Soviética.

Hoje, em um cenário mais complexo, onde a presença da China desloca os Estados Unidos do centro, os países do sul global, e a América Latina em particular, vislumbram uma relação internacional contra a dominação centro-periferia e buscam sustentar uma política de não alinhamento ativo, como descrevem os autores Carlos Fortín, Jorge Heine e Carlos Ominami. São movimentos resultantes de alguns episódios-chave, como a saída dos Estados Unidos de órgãos internacionais e, em contrapartida, o fortalecimento de órgãos regionais.


Os ministros de Relações Exteriores de Argentina, Santiago Cafiero, e China, Wang Yi, se cumprimentam após reunião / Ministério Relações Exteriores Argentina

"É interessante notar que o Brics volta a ter importância política no contexto da guerra da Ucrânia", destaca o professor de relações internacionais da Unesp, Marcos Cordeiro. Neste cenário, aponta o professor, o bloco representaria o movimento da geopolítica atual que tende a superar a hegemonia unipolar e ter peso político e econômico.

"A colocação da Rússia e da China como inimigos por parte dos Estados Unidos chega num ápice. Essa complexidade aumenta em um contexto de cooperação sul-sul, principalmente porque grandes países passam a ter uma importância econômica", afirma.

"O multilateralismo está sendo construído pela realidade. O grau de integração econômica hoje leva necessariamente o país a observar o seu interesse não necessariamente pelo claro, escuro, azul ou vermelho, porque as articulações são múltiplas", diz. "Enquanto o governo Trump criava uma série de tarifas contra a produção chinesa, os bancos e as corretoras dos EUA estavam colocando bilhões de dólares no mercado acionário chinês."

Financiamento e desenvolvimento

Nesse sentido, os interesses vão além do teor ideológico de cada governo. Ainda que Jair Bolsonaro (PL), no Brasil, impulsione uma narrativa anticomunista, ele não tem possibilidade de querer romper relações com a China. Ainda assim, é notável como o Mercosul foi fragilizado como bloco, abalado por distâncias elementais entre os mandatários atuais das economias mais fortes do bloco, Brasil e Argentina.

"Com o Mercosul pouco dinâmico e travado, aparecem outros espaços onde buscar alianças", observa Manuel Gonzalo, especialista em desenvolvimento produtivo e cooperação internacional e autor do livro "India from Latin America".

"O fato de o Mercosul estar em um impasse também é uma limitação para os membros do bloco. Uma coisa é entrar no Brics com o total apoio do Brasil, por exemplo, e outra bem diferente é a situação atual, onde parece que a Argentina tem mais possibilidades de entrar no Brics via China e Índia do que pelo Brasil."

No entanto, o Ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, expressou em abril deste ano o interesse de que a Argentina integre o Banco do Brics. O órgão propõe vias de financiamento favoráveis às economias emergentes, que divergem do Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), instituições financeiras do Bretton Woods. Ainda que o NBD do Brics não exija ser integrante do bloco para atender países de economias emergentes, integrá-lo é especialmente interessante para a Argentina. Afundado em uma dívida de  US$ 45,5 bilhões com o FMI, o país teve sua política econômica profundamente condicionada e limitada pelo empréstimo concedido ao governo neoliberal de Mauricio Macri, em 2018.

"A particularidade do NBD dos Brics é a forte proposta de soberania", aponta Andrea Molinari, ex-diretora executiva do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pesquisadora de economia internacional e integração regional. "O que propõem como banco é o financiamento em moeda local, o que fortalece os mercados dos capitais locais, e um trabalho sobre os sistemas nacionais, deixando de impor uma burocracia sobre como administrar o empréstimo, algo que, para os países, é bastante caro."

A organização dos países-membros como economias emergentes assume uma perspectiva de cooperação e desenvolvimento que interessa à Argentina. Para isso, como país convidado à última cúpula do G7, na Alemanha, o presidente Alberto Fernández manteve reuniões bilaterais com a Índia e a África do Sul, dois integrantes do Brics também convidados para a reunião do Grupo dos Sete. Essa aproximação, reforçada pelos laços comerciais já existentes, configura a Argentina como um forte candidato em uma possível abertura da sigla para além dos cinco países que estão hoje no bloco econômico.

Sua concretização ainda não gera consenso, Apesar do interesse da China em ampliar seus espaços de cooperação e influência, a entrada de novos países pode colocar em jogo o prestígio de economias menores no bloco. É o caso do Brasil, como destaca o professor Cordeiro. 

"Do ponto de vista do próprio interesse do sul global, ampliar o bloco seria o fortalecimento do não alinhamento. Porque participar de um bloco não significa fazer aquilo que os norte-americanos querem, que é o chamado jogo de soma zero: pra você ser meu amigo, tem que ser inimigo do outro", diz. "Esse é um ponto interessante de, na perspectiva de ampliar, seria melhor, mas no momento, considero improvável."

Edição: Thales Schmidt