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Russos sem vistos para UE: qual o limite entre as sanções antiguerra e a russofobia?

Proibição da entrada de russos na União Europeia entra em pauta e gera debate acalorado no Ocidente e dentro da Rússia

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Após o início do conflito da Ucrânia, houve um grande êxodo de russos que migraram para os países da União Europeia. Na imagem, o aeroporto de Frankfurt, na Alemanha. - Daniel Roland / AFP

Após o início do conflito na Ucrânia, surgiu um crescente lobby entre alguns Estados europeus para limitar a emissão de vistos de entrada aos russos como forma de sanção a Moscou. No final de agosto será realizada uma reunião entre os ministros das Relações Exteriores da União Europeia, em Praga, que terá como pauta a proposta de proibir completamente a emissão de vistos russos em todo o bloco europeu.

"Não se pode transformar a Europa em um supermercado no qual não importa quem entre, o importante é o que a pessoa pague pela mercadoria". Foi assim que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, se manifestou ao fazer um apelo aos países da UE para proibir todos os cidadãos russos de entrar em seu território "até que mudem sua filosofia". De acordo com ele, a proibição também deve afetar os russos que já estão na Europa e que deixaram o país por desacordo com as ações militares de Moscou.

"Seja quais forem os russos. Que vão pra para a Rússia. Assim eles vão entender. Eles dirão: 'Esta [guerra] não tem nada a ver conosco. A população inteira não pode ser responsabilizada, não é?' Talvez. A população escolheu este governo e não o combate, não discute com ele, não grita com ele. Então não é necessário esse isolamento?", disse Zelensky.

No dia seguinte à publicação da entrevista do presidente ucraniano, a primeira-ministra da Estônia, Kaja Kallas, se posicionou a favor da interrupção do fluxo de turistas russos para o país, afirmando que "visitar a Europa é um privilégio, não um direito humano". 

"A comunicação aérea com a Rússia está fechada. Isso significa que enquanto os países [do Espaço] Schengen emitem vistos, o ônus é suportado pelos vizinhos da Rússia Finlândia, Estônia, Letônia os únicos pontos de acesso. É hora de parar o turismo da Rússia agora", disse. Na quinta-feira (11), a Estônia decidiu proibir a entrada de russos em seu país.

A República Tcheca, que sediará a reunião ministerial em Praga, também já anunciou que defenderá a medida restritiva no bloco. Já a Polônia, que já proíbe a emissão de vistos para cidadãos russos desde o início do conflito na Ucrânia, afirmou que apresentará uma estratégia para superar a oposição de Alemanha, França e Holanda, que já manifestaram ser contra qualquer política com esse escopo. 

Esse compilado de declarações e intenções de lideranças europeias nos últimos dias provocou alvoroço não só entre a parcela da população russa que defende a operação militar iniciada pelo presidente russo, Vladimir Putin, como também gerou apreensão entre os russos que migraram para o bloco europeu por discordar das ações do Kremlin na Ucrânia. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, o doutor em Ciência Política pela Universidade Estatal de Moscou, Stanislav Byshok, afirmou que a discussão sobre os vistos surge no contexto de uma tendência entre os países que apoiam a Ucrânia de buscar "fazer a coisa certa", na medida em que já foram adotadas medidas como as severas sanções econômicas contra a Rússia e o fornecimento de armas à Ucrânia

"É claro que ninguém considera que isso realmente vai influenciar a situação no front, é claro que ninguém considera que se forem cancelados os vistos para russos, Vladimir Putin decidirá pôr um fim na operação militar, ninguém pensa assim, mas [o Ocidente] acha correto e nobre fazer este tipo de declaração", observa. 

Vale destacar que a discussão não diz respeito exclusivamente a vistos turísticos, mas a todos os cidadãos russos, incluindo as pessoas que saíram da Rússia por oposição ao governo Putin no curso da guerra. Grande parte do êxodo de russos para os países europeus após o início do conflito é composto por críticos do Kremlin.

Assim uma eventual proibição ou até o cancelamento dos vistos já emitidos para todos os cidadãos russos na União Europeia pode representar um risco para aqueles que decidiram sair do país por ameaças de repressão interna. É o caso de pesquisadores, jornalistas, artistas, ou até cidadãos comuns que, ao se manifestarem contra o conflito na Ucrânia nas redes sociais, por exemplo, podem ser enquadrados pela nova lei que pune com multa ou prisão de até 15 anos por "descrédito das Forças Armadas da Rússia" em sua operação militar.  

Iniciativa pode mobilizar retórica do Kremlin

Na medida em que, após mais de cinco meses de conflito, a política de sanções do Ocidente não teve o efeito desejado no sentido de mudar o curso das ações militares da Rússia, não há muita expectativa de que a restrição do trânsito dos cidadãos russos na Europa possa fazer a diferença na estratégia do Kremlin. 

Moscou, por sua vez, alega que as medidas são motivadas por uma crescente russofobia no Ocidente. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, afirmou anteriormente que os países da UE, com base em suas obrigações, não têm o direito de limitar completamente a emissão de vistos a todo um povo. De acordo com ela, se estes países fizerem isso, "instantaneamente reconhecerão seu próprio nacionalismo". 

O cientista político Stanislav Byshok reforça que a proibição de vistos pode ajudar a mobilizar o apoio em torno da narrativa do governo russo. O analista, no entanto, faz a ressalva de que "não são todos os cidadãos russos que consideram que o confronto russo-ucraniano tem exatamente uma grande influência do Ocidente".

Já o cientista político Ivan Mezyukho, em entrevista ao Brasil de Fato, foi mais categórico e destacou que as ações do Ocidente acabam "consolidando o sentimento de união da sociedade russa em torno do atual governo".

"Toda a política [do Ocidente] é direcionada para inflamar o sentimento de oposição dentro do Estado russo, e, pelo contrário, acontece que este sentimento oposicionista perde força. E isso sempre foi assim, é a particularidade da sociedade russa, que, em tempos de prova, sempre se consolida", destaca.

Histórico de tensão social reforça russofobia

A tensão social entre a Rússia e os países bálticos é uma herança dos tempos da Guerra Fria, em que grande parcela da população destes países encarou a União Soviética como um país que invadiu e ocupou seus territórios. 

Para Stanislav Byshok, a atual iniciativa não deixa de ser motivada por essa desconfiança com os russos que já estava presente nessas sociedades, mas com a intervenção da Rússia na Ucrânia, este sentimento teria sido reforçado em países como Estônia, Letônia, Lituânia e Polônia. 

"Quando Vladimir Putin começou sua campanha militar na Ucrânia, essa russofobia aumentou um tanto, porque as autoridades disseram: 'vejam, nós sempre dissemos que a Rússia é perigosa e é uma ameaça, vejam o que está acontecendo'", destaca o cientista político. 

Política de vistos para Rússia pode "rachar" a Europa? 

Enquanto a Estônia já anunciou unilateralmente que passaria a proibir a emissão de vistos europeus para russos a partir desta semana, a iniciativa sofre resistência de países como Alemanha e França. O chanceler alemão, Olaf Scholz, disse que a Europa deveria dar uma chance àqueles que se opõem às políticas de Putin.

O presidente do Centro de Estudos Políticos da Crimeia, Ivan Mezyukho, afirmou que a discussão sobre vistos pode causar uma divisão entre os países da Europa. 

O cientista político observa que o princípio do visto Schengen prevê que se um cidadão russo receber um visto na Grécia, por exemplo, ele pode utilizá-lo na Alemanha, Estônia, Lituânia, Letônia ou outros países da região.

"Uma série de países-membros da União Europeia têm interesse nos turistas russos, inclusive no próprio exemplo da Grécia. E no fim das contas, tal política levará a divergências, discussões mais acirradas, e uma ruptura dentro da própria União Europeia [...] Ou seja, ao atingir os cidadãos russos, eles estão destruindo a própria unidade europeia, fazendo mal a si mesmo. Trata-se de uma política completamente não pensada", analisa.

*Colaborou Serguei Monin.

Edição: Thales Schmidt