Coluna

Conflitos fundiários e Poder Judiciário: garantia dos direitos humanos precisa se tornar regra

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Os impactos dos despejos, na maior parte das vezes, não são avaliados pelos magistrados, o que leva a consequências desastrosas para as famílias afetadas
Os impactos dos despejos, na maior parte das vezes, não são avaliados pelos magistrados, o que leva a consequências desastrosas para as famílias afetadas - Giorgia Prates
Garantia do direito à moradia de famílias vulnerabilizadas ainda é exceção nas decisões judiciais

Daisy Ribeiro* e Thiago Stanoga de Ramos**

Neste domingo, dia 21 de agosto, é celebrado o Dia Nacional da Habitação. Contudo, não há o que celebrar: há um desmonte sem precedentes das políticas de habitação social, mesmo diante do grave déficit habitacional, que atinge 5,8 milhões de moradias no país (Fundação João Pinheiro). A desigualdade histórica no Brasil de acesso ao direito à terra e moradia se aprofunda, manifestando-se de maneira brutal na realização de despejos forçados: mais de meio milhão de pessoas estão ameaçadas de despejo, de acordo com a Campanha Despejo Zero.  

Recentemente, a Terra de Direitos lançou uma pesquisa analisando se o Poder Judiciário incorpora a Resolução nº 10 de outubro de 2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e os padrões de direitos humanos nela previstos nas decisões judiciais em conflitos fundiários coletivos e em outros documentos.  

A pesquisa buscou decisões dadas desde a promulgação da Resolução até fim de julho de 2021. Foram identificadas 125 decisões judiciais que mencionavam, de alguma forma, a Resolução nº 10/2018 do CNDH. O número pequeno de decisões encontradas já aponta, em parte, para uma baixa inserção da normativa no repertório de juízes(as), ainda que a aplicação do conteúdo previsto na Resolução tenha sido até recomendado pelo Conselho Nacional de Justiça através da Recomendação nº 90/2021. 

Analisando os relatórios das decisões judiciais, a pesquisa verificou que a Resolução do CNDH é utilizada principalmente pela advocacia popular, movimentos sociais e defensorias públicas. Poucos juízes utilizam a normativa por conta própria, o que torna ainda mais essencial  que a Resolução CNDH nº10/2018 seja conhecida por comunidades, movimentos sociais e todas as pessoas que defendem os direitos humanos para que suas reivindicações perante o sistema de justiça tenham a normativa como um importante amparo.

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O estudo revelou também que em muitas decisões os magistrados simplesmente ignoram o pedido de análise das medidas previstas na Resolução nº 10/2018. Em pequena parcela dos casos, a aplicação da Resolução é inclusive explicitamente negada.  

De modo geral, o despejo segue como regra e não exceção: do total de 125 decisões analisadas, em apenas 33 delas foi possível identificar a suspensão da remoção, em sua maioria tendo como fator determinante a pandemia da Covid-19. Isto vai contra a principal mensagem da Resolução, de que: 

“a atuação do Estado deve ser orientada à solução pacífica e definitiva dos conflitos, primando pela garantia de permanência dos grupos em situação de vulnerabilidade nas áreas em que vivem, ocupam e reivindicam, em condições de segurança e vida digna”. 

Em ao menos 60 decisões, há a determinação ou manutenção de uma ordem de despejo. E em somente 30 destas pode-se dizer que houve alguma - ainda que bastante frágil - preocupação com o amparo mínimo das famílias afetadas pelo despejo. Tais medidas, contudo, são geralmente pouco efetivas, limitadas a determinar a notificação de órgãos públicos ou solicitar o cadastramento das famílias em programas sociais (alguns inexistentes na prática). Não há, de regra, uma preocupação garantidora, que demonstre que tais medidas serão verificadas antes de qualquer cumprimento de ordem - elas não são, portanto, condicionantes à remoção. 

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Viu-se também que em quase nenhuma ordem de remoção foi garantido o reassentamento das famílias em local adequado, como orienta a Resolução nº 10 nos casos excepcionais em que a permanência das famílias na área ocupada é inviável. Uma das decisões, dada já após um despejo, descreve uma situação infelizmente recorrente: 

“...desde a reintegração de posse determinada nos autos, mais de 100 famílias encontram-se desamparadas, dormindo ao relento, nas proximidades do imóvel, haja vista a inexistência de alternativa de moradia digna e o cumprimento da medida liminar sem um prévio plano de desocupação, o que ensejou que ficassem as famílias privadas dos seus pertencentes, além de terem sido agredidas durante o cumprimento da liminar, em flagrante abuso de direito.” 

Ausência de preocupação com impactos do despejo  

Os impactos dos despejos, na maior parte das vezes, não são avaliados pelos magistrados, o que leva a consequências desastrosas para as famílias afetadas. Na visão de muitos juízes, o despejo já se configura como uma solução ao problema existente. Na realidade, o despejo das famílias - que já vivem em condições de vulnerabilidade - intensifica a precarização de condições de vida das pessoas afetadas e a violação de seus direitos humanos, sem qualquer resolução da questão de fundo, ou seja, os direitos à terra e à moradia adequada seguem sendo violados. Com frequência as decisões também contrariam os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Estas normativas determinam que deve ser garantido às pessoas  a ampla defesa e o acesso à justiça, e os despejos jamais podem deixar pessoas em situação de maior vulnerabilidade social, sem garantia de moradia adequada. 

O cenário de profunda crise social que atravessa o país, somado à completa ausência de políticas públicas, têm demandado de todos os atores do Sistema de Justiça que atuem com maior assertividade para proteger os direitos das populações já vulnerabilizadas. Afinal, há uma crise sem precedentes de desabrigados e pessoas vivendo em situação precária e de insegurança da posse. Existem importantes decisões judiciais locais e nacionais neste sentido; contudo, ainda é necessário avançar muito. 

Ao reivindicar o cumprimento de padrões de direitos humanos, os movimentos populares e organizações sociais reforçam para  juízes(as) que nenhuma decisão judicial pode ser dada sem avaliação de suas consequências sociais. Isto é ainda  mais importante em cenários de crise social e em períodos políticos sujeitos a maiores violações de direitos, como o momento atual vivido pelo Brasil.  

Para contribuir com a atuação de movimentos sociais, organizações de direitos humanos e toda população que defende o direito à terra e à moradia adequada, é que foi elaborado este estudo. Assim, convidamos à leitura da publicação completa, que conta também com o panorama da criação da Resolução nº 10/2018, levantamento detalhado sobre seu uso e reflexões de integrantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos, defensores(as) públicos(as), advogados(as) populares e pesquisadores(as).  

*Daisy Ribeiro - assessora jurídica da Terra de Direitos, integrante da Campanha Despejo Zero e coordenadora da pesquisa “Despejos e o sistema de justiça: violações de direitos humanos no tratamento de conflitos fundiários” 

**Thiago Stanoga de Ramos - estagiário de Direito da Terra de Direitos, graduando em Direito pela UFPR e integrante do Movimento de Assessoria Jurídica Popular Isabel da Silva

***A Terra de Direitos é uma organização de Direitos Humanos que atua na defesa, na promoção e na efetivação de direitos, especialmente os econômicos, sociais, culturais e ambientais (Dhesca). Criada em 2002, a Terra de Direitos incide nacional e internacionalmente nas temáticas de direitos humanos e conta com escritórios em Santarém (PA), em Curitiba (PR) e em Brasília (DF).

****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Glauco Faria