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Queda de expectativa de vida nos EUA expõe problema sistêmico

Falta de um sistema de saúde público é só a ponta do iceberg das dificuldades enfretadas pela população

Brasil de Fato | Los Angeles (EUA) |
Ambulância em hospital no Texas, nos EUA - Francois Picard / AFP

A expectativa de vida dos estadunidenses caiu pelo segundo ano consecutivo, marcando o maior retrocesso dos últimos 100 anos. Segundo dados apurados pelo Centro de Controles de Doenças, CDC na sigla em inglês, a expectativa de vida nos Estados Unidos em 2021 foi de 76,1 anos – no ano anterior, essa média era de 77 anos.

"Muita gente pode pensar que essa queda é insignificante, porque um ano não parece muito, mas a verdade é que isso representa milhares de mortes e é desrespeitoso pensar que isso é uma bobagem", diz Steven Woolf, professor de saúde populacional da Virginia Commonwealth University. 

Um dos envolvidos no estudo, Woolf explica à reportagem do Brasil de Fato que a expectativa de vida é mal compreendida pelo grande público em geral. "Muitas pessoas pensam que [expectativa de vida] significa quanto tempo um bebê nascido neste ano vai viver – mas não é nada disso. Não podemos prever quanto tempo um bebê viverá, porque não sabemos como serão as condições de saúde ao longo da vida dessa criança ou onde ela viverá". 

Segundo ele, a expectativa de vida é um reflexo direto das taxas de mortalidade durante aquele período. "Se você me perguntar sobre a taxa de mortalidade do ano 2020, eu posso te mostrar uma tabela bem complexa, com a taxa de mortalidade de bebês, a taxa de mortalidade de crianças de 1 a 4 anos, a taxa de mortalidade de 5 a 9 anos e assim adiante, até os idosos. Seriam muitos números e muitas informações, então, em vez disso, usamos uma métrica composta para resumir o quão grande é a taxa de mortalidade. Quando vemos uma diminuição sem precedentes na expectativa de vida nos EUA, estamos basicamente dizendo que milhares e milhares e milhares de pessoas morreram muito mais do que experimentamos nos anos anteriores".

Era de se esperar, portanto, que os últimos anos indicassem uma redução na expectativa de vida dos estadunidenses, uma vez que o país foi o que mais sofreu com a pandemia da covid-19, contabilizando mais de um milhão de mortes em decorrência do vírus. Mas, de acordo com os dados, resumir a explicação de um grande problema única e exclusivamente à pandemia não é correto – nem responsável.

"Há duas décadas os Estados Unidos têm a menor expectativa de vida entre os países de alta renda – e essa diferença foi realmente aumentando ao longo do tempo. Depois de 2010, a expectativa de vida dos americanos parou de aumentar e começou a diminuir. Mas, durante esse tempo, continuou a subir em outros países. E entre as razões para esse declínio na expectativa de vida [nos EUA] está o problema com overdoses de drogas, doenças relacionadas ao abuso do álcool, suicídios, diabetes, condições relacionadas à obesidade e tantas outras causas", afirma professor da Virginia Commonwealth University, insistindo que o problema no país é sistêmico. 

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Os Estados Unidos são um dos únicos países ricos a não contar com um sistema de saúde público. Até 2020, o custo médio de um plano de saúde no país era de quase US$ 500 dólares por mês para um indivíduo e US$ 1,2 mil dólares por mês para o plano familiar. 

Por conta do alto custo, muitos não têm condições financeiras de adquirir um plano de saúde e ficam completamente desprotegidos. O resultado? Mais de 45 mil mortes por ano, segundo estudo conduzido pela Harvard em 2009 – o que significa que, nos dias atuais, essa tragédia é possivelmente maior. 

Não há dúvidas de que a ausência de um sistema público de saúde nos Estados Unidos desempenha um papel significativo na expectativa de vida do país, mas essa conta tende a ser subestimada, de acordo com Woolf. "Sim, a falta de um sistema de saúde é um problema real, mas vou apenas enfatizar que a pesquisa mostra que os cuidados de saúde representam apenas cerca de 10 a 20% dos desenrolar dos casos. Portanto, nossa saúde é influenciada por uma variedade de outros fatores que não estão relacionados a um plano de saúde".

O especialista afirma que outros quatro pilares afetam essa conta toda: o comportamento, que diz respeito à dieta e às atividades físicas praticadas pelo indivíduo, bem como hábitos de fumo e drogas; fatores sócio econômicos, porque a pobreza condena uma pessoa à insegurança alimentar; o ambiente, uma vez que parte da população vive em áreas onde a qualidade do ar é sofrível e o acesso a comida orgânica é dificultado, por exemplo; e, por fim, entra para essa conta a política pública.

"Essa última é a mais importante, porque afeta todas as demais: as políticas federais, estaduais e locais definem o nosso acesso à saúde, mexem com o nosso comportamento, com as nossas condições socioeconômicas e com o nosso ambiente", completa o professor. 

Com um país polarizado e descrente na ciência – vide a tímida taxa de vacinação contra a covid-19 – é difícil nutrir esperanças por dias melhores. Balizando suas expectativas em dados, Woolf confessa ao Brasil de Fato que não é otimista em relação ao futuro: "não estou seguro que nossos problemas serão resolvidos, porque a primeira parte da solução é reconhecer que existe um problema – e isso não acontece aqui. Acho que o público em geral não está ciente de que a saúde dos americanos é tão ruim. Paralelamente, o senso de excepcionalismo americano, onde os americanos pensam que são o número um em tudo, os impede de entender a realidade da situação. Porque, neste caso, somos o número um em morrer, o que não é nada bom". 

Edição: Thales Schmidt