MAIS MORTES

Yanomami: emboscada de garimpeiros mata indígena e deixa adolescente em estado grave

Novo ataque pode ter partido de facção criminosa e expõe descaso com sucessivos pedidos de reforço na segurança

Brasil de Fato | Lábrea (AM) |
Rio Uraricoera, onde indígenas foram emboscados, vê garimpo avançar rapidamente - Bruno Kelly/Amazonia Real

Uma emboscada promovida por garimpeiros matou a tiros um indígena e deixou um adolescente em estado grave na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima. O terceiro alvo dos disparos se jogou no rio e saiu sem ferimentos. O ataque ocorreu em uma nova frente garimpeira onde não há presença das forças de segurança, apesar dos pedidos de ajuda feitos por indígenas desde o ano passado. 

Relatos obtidos pela Hutukara Associação Yanomami, que representa os indígenas, indicam que os autores do ataque teriam ligação com uma facção criminosa que atua no garimpo ilegal. O envolvimento da facção não foi confirmado pela Polícia Federal (PF), que colheu depoimentos de testemunhas e investiga o caso. 

Este pode ser mais um capítulo da violência sem precedentes provocada pelo crime organizado na TI Yanomami. Em 2021, a comunidade Palimiu sofreu uma sequência de ataques armados de garimpeiros ligados ao Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa paulista que domina o narcotráfico em Roraima e tem ramificações na mineração ilegal de ouro. 

Leia mais: Nove crianças Yanomami morrem por falta de atendimento em dois meses, diz associação

O Brasil de Fato obteve depoimentos detalhados de testemunhas sobre como e onde o ataque ocorreu. A reportagem, porém, foi orientada a omitir detalhes que possam comprometer a segurança das poucas lideranças que ainda arriscam suas vidas ao denunciarem a atuação dos garimpeiros.

A reportagem apurou que lideranças temem até mesmo repassar denúncias às autoridades federais, pois suspeitam que órgãos públicos de defesa dos direitos indígenas abriguem informantes dos garimpeiros ou de facções criminosas. 

Questionamentos foram enviados a Funai, Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF), mas não houve resposta até o fechamento desta matéria. 

Vítimas foram perseguidas após discussão 

As três vítimas transitavam em uma canoa de madeira pelo rio Uraricoaera, na madrugada do último domingo (2), quando foram interceptados por um grupo numeroso de garimpeiros distribuídos em pelo menos duas embarcações. Os invasores abriram fogo contra eles. Um indígena morreu ao ser atingido na face, e o outro está internado com um ferimento à bala na nuca. 

Testemunhas ouvidas por lideranças locais, PF e Funai afirmam que os indígenas e os autores do ataque estavam em um ponto ilegal de venda de bebidas alcoólicas, quando teria havido um desentendimento. Os garimpeiros se opuseram à presença dos indígenas no local e os expulsaram. As vítimas deixaram o estabelecimento, mas foram alcançadas pelos barcos dos criminosos. 

Indígenas pedem presença do Estado 

A Hutukara oficiou as autoridades federais e, como tem feito em cada um dos ataques de garimpeiros, clamou por mais presença do Estado na TI. “O ocorrido demonstra que a situação de insegurança no rio Uraricoera em razão da circulação desimpedida de garimpeiros ainda não cessou, e merece intervenção urgente do poder público”, escreveu em ofício.

Leia mais: Demarcada há 30 anos, TI Yanomami revive drama do garimpo: "Estamos na mira da cobra grande"

Sem perspectiva de receberem ajuda das autoridades, indígenas que moram na região montaram uma campana às margens do rio Uraricoera e começaram abordar barcos de garimpeiros na busca pelo autor do homicídio. Alguns indígenas cogitam ainda organizar ataques contra os acampamentos dos garimpeiros. 

“Familiares das vítimas e comunidades da redondeza estão muito revoltados. Por isso pode surgir algum conflito, acontecer algum massacre ou outra coisa nesse sentido”, afirmou Ivo Macuxi, assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR). A entidade acompanha o caso e também oficiou PF, MPF e Funai pedindo providências urgentes. 

Base de proteção não saiu do papel 

Outra reivindicação é a reconstrução de uma base de proteção da Funai, desativada por falta de recursos, que poderia limitar a circulação dos garimpeiros no rio Uraricoera. A Justiça Federal condenou a Funai a reerguer o posto em 2020, mas dois anos depois nada foi feito. 

A construção da base de proteção começou no início deste ano, mas foi paralisada. O custo total da obra que poderia ter evitado a morte de mais um indígena gira em torno de R$ 25 mil, segundo apurou o Brasil de Fato

:: Bolsonaro estimulou avanço de garimpeiros sobre os Yanomami; relembre casos e declarações ::

A Hutukara Associação Yanoamami solicitou o envio imediato da Força Nacional para impedir novos ataques e ajudar na desarticulação da facção criminosa. Solicitou também a expulsão dos garimpeiros ilegais.

“Na região do Uraricoera, onde ocorreu o ataque, a mancha de área degradada pelo garimpo cresceu 107% entre abril e agosto de 2022. Embora os números totais sejam menos expressivos, o rápido aumento indica uma nova frente de avanço do garimpo ilegal”, escreveu a Hutukara. 

Território vive pior invasão da história

A invasão garimpeira na Terra Indígena Yanomami é considerada pior do que a que levou à demarcação e à homologação da TI há 30 anos. A presença dos invasores provoca o colapso no atendimento de saúde, cujos funcionários se sentem inseguros para adentrar o território e realizar atendimentos. 

A falta de acesso à saúde já provocou a morte de nove crianças indígenas desde o final de julho deste ano. As vítimas tinham doenças facilmente tratáveis, como diarreia, verminoses e síndromes respiratórias. Segundo a Hutukara, as causas são a "desassistência à saúde generalizada na região" e a captura da estrutura por garimpeiros ilegais, que já atuam em metade das comunidades da TI. 

:: Garimpo ilegal traz fome, doença e exploração sexual para território Yanomami, diz estudo ::

“A exemplo de outras comunidades pressionadas pelo garimpo ilegal, os Yanomami temem por sua vida, enquanto suas filhas crianças são assediadas (“pedem para casar”), e os jovens têm seu trabalho explorado nos garimpos. Já não é possível caçar ou pescar na região pois as áreas onde o faziam foram ocupadas pelo garimpo”, escreveu a Hutukara.

Garimpo atinge metade da população indígena

O garimpo ilegal na terra indígena Yanomami cresceu 3.350% entre 2016 e 2021. A consequência direta é o crescimento da malária, da desnutrição infantil, da contaminação por mercúrio e da exploração sexual. 

Os efeitos são sentidos por 16 mil moradores de 273 comunidades, o equivalente a 56% da população total. Com o tamanho de Portugal, o território Yanomami tem 29 mil habitantes em 350 aldeias. 

Imagens aéreas mostram que a atividade se aproxima cada vez mais das comunidades Yanomami, desmatando a floresta e poluindo os rios. Também há flagrantes de aeroportos e helicópteros utilizados para o transporte para regiões de difícil acesso. 

Edição: Glauco Faria