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"É a eleição mais importante do mundo", diz ex-ministra da Bolívia sobre 2º turno no Brasil

Gabriela Montaño analisa como resultado das eleições brasileiras poderá impactar a América Latina

Gabriela Montaño foi ministra de saúde da Bolívia até 2019, durante o último governo de Evo Morales - Aizar Raldes /AFP
"A esquerda deve gerar uma transformação real da realidade, do que as pessoas vivem todos os dias."

As eleições presidenciais no Brasil são tema de destaque internacional e, principalmente, nos vizinhos latino-americanos. "Esta é provavelmente a eleição mais importante do mundo", disse a subdiretora executiva do Centro Estratégico Latino-americano de Geopolítica (CELAG), Gabriela Montaño.

O CELAG acompanhou os processos eleitorais na América Latina nos dois últimos anos, realizando pesquisas quantitativas e publicando análises sobre o cenário político e econômico de cada país. Montaño avalia que a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva seria a peça que falta para impulsionar uma nova "onda rosa" de governos progressistas na região. 

Para ela, esta nova etapa do progressismo começou com a eleição de Andrés Manuel López Obrador, no México, passando pelo retorno do peronismo na Argentina, com Alberto Fernández e Cristina Kirchner, e do Movimento ao Socialismo (MAS-IPSP) na Bolívia, com Luis Arce e David Choquehuanca, e veio se consolidando com as vitórias recentes de Gabriel Boric no Chile, e Gustavo Petro na Colômbia. 

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"Em um mundo multipolar, devemos ver-nos como um polo e devemos defender nossos interesses, sem necessidade de nos submetermos a ninguém", analisou Gabriela Montaño, ex-ministra de saúde da Bolívia.

Ainda que a balança política na região penda mais ao progressismo, com pelo menos, nove governos de esquerda e centro-esquerda, e seis no campo da direita, Montaño, que viveu o golpe de Estado de 2019 na Bolívia, esteve exilada junto a Evo Morales e Álvaro García Linera, lembra que a extrema-direita não irá desaparecer após o resultado das urnas, pelo contrário, permanecerá como uma força política ativa.

"Uma das lições aprendidas na Bolívia, é que mesmo estando no governo, a esquerda não pode abandonar as ruas, suas bases sociais. Não podemos ser simples administradores do Estado e das instituições públicas, devemos mudar a vida das pessoas", comenta Gabriela Montano no BdF Entrevista.

Leia a entrevista na íntregra:

Brasil de fato: Em 2021 e 2022, muitos países na América Latina tiveram processos eleitorais. O Brasil é a última grande economia da região que agora definirá quem será seu presidente. Eu queria que você comentasse sobre os resultados que já temos e sobre as expectativas em relação ao resultado no Brasil. Como fica o balanço político na região? A América Latina está pendendo mais ao progressismo ou ao conservadorismo?

Gabriela Montaño: Eu acho que a tendência é ao progressismo. É o que vem sendo chamado de uma 2ª onda de governos progressistas no continente. E, evidentemente, o Brasil gera muita expectativa para todos os povos da região em relação ao processo eleitoral, mas não só ao processo em si e aos seus resultados, mas sim às consequências desse processo eleitoral para o povo brasileiro e para o continente de modo geral. Em um contexto mundial de guerra, um contexto de fenômenos inflacionários relevantes em muitos países da região, do mundo, da Europa, o Brasil desempenha um papel. É o colosso do continente, não só em termos de território, de extensão territorial, como também em termos de importância econômica e valor político. Para o continente, o fato de que Lula possa voltar a ser presidente do Brasil reforçaria de uma maneira fenomenal este processo de ascensão de governos progressistas no continente.

O México começou essa segunda onda, depois veio a Argentina, Bolívia, Peru, Chile... Colômbia foi a última vitória, de uma importância gravitacional porque é a primeira vez que a esquerda governa o país. E seria uma maravilha que o Brasil possa viver um processo de recuperação do progressismo, de controle do governo. Em um programa de rádio que fizemos, o presidente (José) Zapatero (Espanha, de 2004 a 2011) dizia que é provavelmente a eleição mais importante do mundo, não só da América Latina, para os próximos tempos. Ele disse isso antes do primeiro turno no Brasil. E acho que continua sendo uma verdade neste segundo turno, é claro.

Provavelmente, todos e todas esperávamos que o primeiro turno no Brasil tivesse um resultado com uma margem maior entre o primeiro e o segundo candidato, ou seja, entre o ex-presidente Lula e o presidente Bolsonaro. No entanto, também é preciso entender fenômenos como este. Provavelmente, a participação não foi o fator determinante nessa situação, porque girou em torno do que é considerado normal para o Brasil. Parece, na verdade, que se tratou de um voto escondido que não aparecia nas pesquisas e apareceu no primeiro turno. Mesmo assim, no CELAG, nós fomos bastante cautelosos até o último momento no primeiro turno, porque, para nós, o resultado podia ser muito mais apertado do que algumas pesquisas previam. Como já dissemos, ao fazer uma média das pesquisas chegamos a números próximos do resultado. A expectativa para o segundo turno continua sendo muito grande.

Há perguntas que precisam ser respondidas. Por exemplo, quanto a candidatura à vice-presidência (de Geraldo Alckmin) contribuiu para Lula em termos reais? Alguns setores viram essa chapa como uma que mostrava uma aproximação ao centro. E hoje, na região, não há muito espaço para o centro, devo dizer. A eleição na Colômbia mostrou isso. Havia várias opções de candidatura vice-presidencial para o Petro, e ele não escolheu ser acompanhado por uma candidatura que mostrasse ou tendesse ao centro. Em vez disso, reforçou a postura progressista, de esquerda, com Francia Márquez.

É outra experiência e provavelmente outra realidade, mas devemos nos perguntar se estamos em um momento na região de centro. Eu, pessoalmente e também muitos companheiros do CELAG, acreditamos que o centro está tendo grandes dificuldades e está patinando muito nesses últimos tempos.

Vocês, no CELAG, e outros setores vêm apontando a uma nova "onda rosada", "década ganhada", uma nova etapa do progressismo na América Latina que, no entanto, é diferente do que vivemos no início do século, no início dos anos 2000. Como vimos agora na Argentina, no Chile, no Peru e, em parte, também na Bolívia, existe certa dificuldade dos governos recém-eleitos de manter uma governabilidade. Em alguns casos, não há maioria no Congresso. Em outros, há muita tensão com os setores opositores na política nacional. Então eu queria que você comentasse quais são os principais desafios do campo progressista neste novo período na América Latina.

Acho que os novos desafios estão marcados também pelas causas que as gerações que têm que sustentar essa nova onda progressista estão demandando. E existem duas questões centrais para essa geração. A primeira é o meio ambiente. Qual é a capacidade da esquerda e do progressismo latino-americano de atender essas demandas sem fazer isso com respostas já desgastadas, e sim realmente gerar respostas criativas. Porque, claro, além disso estamos em meio a processos inflacionários em toda parte, na Europa etc. Com dificuldades de acesso a combustíveis fósseis etc. Então é preciso criatividade e propostas concretas para essas questões. As novas gerações não ficarão satisfeitas com uma resposta fácil para a defesa do meio ambiente, da Mãe Terra, como chamamos em outros lugares da região.

Outra grande questão é a diversidade. O respeito ao direito de todos, todas... todes, como se diz muito na Argentina com a linguagem inclusiva. Não é toda a região que fala assim. Mas aí também existe uma grande demanda. Porque, além disso, nessas situações, digamos, de crise, a resposta da direita no âmbito econômico é de retrocesso e de cortar direitos. Cortar e cortar direitos, continuar com essa ladainha que parece já muito desgastada, mas volta a funcionar no momento de crise, que é que o Estado... deve sair e a resposta deve vir sempre da esfera privada, continuar com a lógica de destruir o que é público, a educação pública, a saúde pública etc. E eu acho que essa nova onda progressista vem com a demanda das pessoas de não ficar só na superfície, ou seja, não ficar administrando processos, e sim gerar uma transformação real da realidade, do que as pessoas vivem todos os dias.

Por exemplo, a Bolívia. Eu sou boliviana. A Bolívia é hoje o país com a menor inflação da região e um dos cinco países com a menor inflação do mundo neste momento. E a Bolívia nacionalizou seus hidrocarbonetos, nacionalizou seus recursos naturais. A Bolívia redistribuiu. Como conseguiu? Com dez anos de aplicação desse processo. Então acho que, inclusive países grandes como a Argentina ou o Brasil, podem encontrar bons exemplos em países menores, como a Bolívia e como o que a Colômbia está fazendo, por exemplo, em relação à questão tributária.

Vamos falar primeiro da economia, a última questão que você citou. Estamos vivendo uma situação de crise econômica global, uma crise econômica do sistema capitalista em que também, com a guerra na Ucrânia, parece que vemos o mundo novamente se encaminhando a uma divisão em dois grandes campos de influência. Talvez um campo de influência eurasiático e outro das potências capitalistas ocidentais, EUA e União Europeia. Queria que você comentasse de que maneira a América Latina se insere nesse contexto global tão complexo, difícil, que parece dividido em dois campos. De que maneiras a América Latina pode disputar espaço e mercados neste contexto global de tanta tensão?

Eu acredito em dois ou três fatores básicos. O primeiro é que um mundo multipolar será sempre mais favorável aos interesses dos povos que um mundo unipolar. A multipolaridade enriquece a todos e todas nós em termos de acesso a direitos e de evitar o abuso de alguns Estados sobre outros. E de alguns povos sobre outros. Porque permite a todos nós gerar condições para um desenvolvimento mais equitativo, equilibrado e lógico.

Um segundo fator é que todos os imperialismos são complicados. Digamos que não há um imperialismo bom e um ruim. Todos os imperialismos tendem a tentar fazer dos Estados considerados mais frágeis sua mera fonte de matéria-prima, de população consumidora de seu produto terminado e ponto. Melhor ainda se esse povo não tiver educação, saúde, vias de conexão, porque é mais fácil controlá-lo. Então os imperialismos são mecanismos de controle e de poder contra os quais os povos se rebelam. Ao longo de toda a história da humanidade. E acredito que continuará acontecendo. E acredito que uma resposta desta nova onda progressista é exatamente contra o imperialismo. Venha de onde vier.

E um terceiro fator seria ver a nós mesmos como um polo desse mundo. Mas isso só é possível se a América Latina atuar em conjunto e ter uma voz conjunta. Acho que, com a possível vitória do Lula, aumenta enormemente a possibilidade de que a América Latina tenha uma voz conjunta muito potente nesse mundo. É disso que precisamos. Quanto mais unidos estivermos, quanto mais clara nossa voz, tendo essa quantidade de líderes e presidentes progressistas hoje no continente.  Mesmo havendo heterogeneidade, porque não somos homogêneos, não são todos iguais nem são retalhos da mesma peça, mas têm a capacidade de gerar conexões e uma unidade na América Latina. Ou seja, em um mundo multipolar vejamos a nós mesmos como um polo. E defendamos nossos próprios interesses. Sem ter que ajoelhar perante ninguém.

Você acha que é possível pensar em uma nova articulação, em uma rearticulação de espaços, como a Unasul, o CELAG ou o próprio Mercosul, fortalecê-los?

Bom, acho que já existem passos dados nesse caminho. O presidente AMLO, do México, propôs de maneira muito clara, e foi apoiado por vários presidentes da região, que o CELAG deveria ser esse espaço de articulação. Ou seja, não precisamos criar um novo espaço, já temos um. Nossos presidentes e líderes foram muito críticos com o papel da OEA em todo esse último período no continente. No golpe de Estado na Bolívia, na atuação de observação eleitoral em vários casos, as posturas, sobretudo, do secretário-geral da OEA que está em seu pior momento. O Sr. (Luis) Almagro neste momento está sendo questionado e processado dentro da própria organização por atuações pouco transparentes.

E eu acho que, se o Lula ganhasse, seria exatamente um grande impulso que o continente precisa para fazer isso. Para mim, o lugar é o CELAG. Vários presidentes do continente já apontaram essa via. E acho que houve propostas do Lula durante a campanha muito firmes em relação a isso, como, por exemplo, criar uma moeda forte que ajude a nos integrarmos economicamente na região. Ou seja, o Lula fez uma campanha que deu muita importância à região e à América do Sul. Eu diria até mais. A experiência do Lula na presidência e fora da presidência fortaleceu nele a clareza sobre a necessidade de uma unidade na região.

Embora tenhamos espaços, como você acaba de comentar de organização histórica do campo progressista, da esquerda, a extrema direita também está se organizando. Não só na região, como também internacionalmente, mas vamos focar na América Latina, onde temos a iniciativa do Fórum de Madri, que foi criado pelos líderes do partido espanhol Vox, mas também teve o apoio da família Bolsonaro aqui no Brasil, do Arturo Murillo, ex-ministro golpista da Bolívia, de políticos mexicanos, enfim, já está bem enraizado, digamos, no nosso continente. Mais cedo você comentou que não há mais espaço na região para políticas de centro. Então estamos rumo a uma polarização entre o campo progressista e a extrema direita. Acha que a extrema-direita tem espaço para crescer na América Latina e o que podemos esperar dessas organizações e sua articulação regional?

Os resultados do primeiro turno no Brasil sinalizam isso, dão à direita brasileira e ao Bolsonaro uma vida política futura. Isso ficou claro. Mesmo que ele perca as eleições, é preciso ter clareza sobre isso. É um fenômeno muito parecido ao de (Donald) Trump. Apesar de ter perdido as eleições para Biden, Trump não desapareceu do cenário político nem de longe. Mas quando digo isso sobre o centro político é porque, às vezes, nossa tendência é acreditar que a solução mágica, de varinha mágica, para que a esquerda tenha mais votos em uma eleição é puxar ao centro. E, portanto, há marqueteiros da política que acham que, com algumas frases com aroma de centro, é possível ter uma melhor votação e nem sempre é esse o resultado obtido. Porque, depois da crise da pandemia, a crise econômica pós-pandemia, depois de entender que não é um "salve-se quem puder" nem que cada um, individualmente, resolva sua saúde, sua educação, as pessoas agora exigem mais clareza em relação a certos assuntos.

O que não pode acontecer é que a esquerda... Vou usar um termo que talvez não tenha tradução em português e peço desculpas, mas... A esquerda não pode se "lavandinear", se banhar em cloro e se apresentar como centrista, achando que com isso está tudo resolvido. Não, as pessoas querem clareza política. Nós, da esquerda, não podemos achar que as pessoas vão sentir uma certeza em relação a nós. As pessoas precisam de certezas. Passamos por etapas de muita incerteza. E continua sendo assim. As pessoas precisam de certezas. E essa certeza não está em meias-palavras que não te dizem as coisas claramente. Na esquerda, também não. E a maioria das eleições do continente em que o progressismo e a esquerda venceram mostram que os melhores resultados vieram de quando a esquerda foi clara. Clara em apontar que o Estado deve ser presente, que vai haver uma defesa do direito das grandes maiorias, e daquelas maiorias mais afetadas pela crise econômica e a inflação. Ou seja, é nesse ponto em que os eleitores nos encontram.

No caso da extrema direita, acho que, às vezes, a esquerda desdenha a capacidade da extrema direita de construir um discurso em meio à incerteza e à crise econômica para certos setores populares. Atenção! Não estou falando de setores empresariais, nem de classes médias altas que... é claro, defendem seus próprios direitos econômicos. Estou falando de setores populares. A extrema direita veio construindo um perigoso discurso, em muitos casos, de ultranacionalismo, de uma suposta defesa de certos valores da família, que é capaz de penetrar setores populares e, portanto, responde a certas preocupações desses setores. É preciso estar atento a isso. O que não podemos fazer é encher a boca para falar dos setores populares sem fazer todos os dias o esforço de nos aproximarmos ao que realmente são esses setores populares em sua enorme diversidade no continente. Isso significa estar na rua com eles.

Estar o tempo todo entendendo, explicando, respondendo, e errando também provavelmente. Mas sendo capazes de reconhecer o erro e corrigi-lo.

Você vivenciou o golpe de Estado na Bolívia. Deixou seu cargo como ministra justamente por causa do golpe de 2019. A Bolívia venceu o golpe nas urnas menos de um ano depois, na rua e nas urnas, e depois começou o processo de judicialização dos responsáveis pelo golpe. Então quero que você comente que exemplo a Bolívia pode dar para outros países da região que viveram processos similares de golpe de Estado, como ocorreu no Brasil. De que modo podemos nos preparar para essa reorganização da extrema direita e de que modo podemos superar esse tipo de fraturas, como é o caso dos golpes de Estado, nas nossas sociedades?

Acho que há lições aprendidas na Bolívia e outros lugares do continente. A primeira é que, mesmo que o progressismo e a esquerda estejam no governo, jamais podem abandonar o cenário da rua. E quando falo da rua, me refiro às comunidades, dos espaços onde os setores populares fazem sua vida todos os dias. E, é claro, isso implica um tecido de organização social e política muito grande. Não dá para descuidar. A burocracia estatal muitas vezes absorve os melhores quadros do progressismo e da esquerda e o tecido social fica abandonado.

Um segundo fator é que as organizações internacionais, como o CELAG, reajam rapidamente quando uma democracia está ameaçada no continente. Não podem haver dúvidas, nem respostas tardias. Elas devem ser objetivas, pontuais e ir direto na jugular, um modo de dizer.

Um terceiro elemento é que o progressismo tem que ser capaz de atender essas novas demandas. Não podemos ser meros gestores, bons gestores do Estado, da coisa pública. Temos que mudar a vida das pessoas.

Edição: Arturo Hartmann