Novas direitas

Caso Revolución Federal: o ódio capitalizado pelo fascismo e as respostas da justiça argentina

Alvo de investigação, o grupo extremista é conhecido por atos com guilhotinas e forcas contra políticos peronistas.

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |
Jonathan Morel (esq.) e Leonardo Sosa (dir.), líderes do Revolución Federal, com a guilhotina construída por Morel em ato contra o governo peronista. - Tomás Francisco Cuesta

Quase dois meses após a noite em que Fernando Sabag Montiel atirou duas vezes – de forma falha, sem que nenhuma bala saísse – a centímetros do rosto da vice-presidenta argentina Cristina Kirchner, a investigação do caso avança lentamente, com muitas pontas soltas, mas já revela uma trama de pequenos grupos de direita radicalizada e políticos de extrema direita do país.

Em paralelo à investigação sobre o atentado – após a negativa da juíza María Capuchetti de unificar ambos processos –, a investigação que tem ganhado atenção nas últimas semanas é a que se aprofunda sobre o grupo extremista Revolución Federal. Mais do que isso, este capítulo do caso põe em evidência a seriedade com que devem ser tratados discursos e ações de ódio que visam a eliminação do outro, que estão inclusive tipificados no Código Penal: a incitação à violência coletiva e a incitação ao delito.

Protestos contra o governo que consistem em lançar tochas em direção à sede presidencial ou montar uma guilhotina com uma placa “presos, mortos ou exilados” entram, desse modo, na tipificação que prevê pode render de dois a seis anos de prisão, na Argentina.

Quatro integrantes foram presos na semana passada, incluindo os líderes e fundadores Jonathan Morel e Leonardo Sosa.

Revolución Federal como sintoma

Conhecido por promover marchas anti-governo, anti-peronistas e escrachos a políticos da coalizão governista Frente de Todos, o grupo é formado por jovens da periferia de Buenos Aires. Não possuem vínculo com nenhum partido político, uma premissa inegociável conforme disse o próprio Morel ao jornalista Alejandro Seselovsky, em entrevista para o jornal elDiario Ar. “Ele me disse que o Revolución Federal não é um espaço para militância política, que quem queira fazê-lo, que o faça fora dali”, conta ao Brasil de Fato.

Apesar da intenção de desapegar-se de partidos políticos, uma pista aponta para o possível financiamento do Revolución Federal por parte de políticos de direita, a partir de pagamentos realizados pela empresa Caputto Hermanos, do ex-ministro de Finanças de Macri, Luis Caputto, ao microempreendimento de carpintaria de Jonathan Morel.

Seselovky encontrou o grupo em duas ocasiões, para conhecer e fazer o perfil a ala feminina do Revolución Federal, que se autodenominam Las Mabeles. Em ambos, Morel acompanhava as reuniões como líder. “No segundo encontro, vi um garoto furioso, com muita raiva, fazendo piadas violentíssimas que me surpreendiam”, afirma o jornalista.

“Dizia que se quando vê um kirchnerista, tem vontade de ‘fazê-lo sangrar’, ou, apontando para o cachorro, que o 'soltaria na cara da Cristina’. Fazia essas intervenções durante a entrevista, sabendo que estava sendo gravada, sabendo que eu era jornalista. Ainda assim, expressava muita violência, como se não se importasse com nada”, diz.

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O perfil dos jovens que integram o Revolución Federal se assemelha ao dos detidos no caso do atentado contra CFK, o casal Fernando Sabag Montiel e Brenda Uliarte, apontada como mentora do crime (que teria entregado a arma do crime ao companheiro).

Bem utilizada por forças extremistas, a raiva e o sentimento de injustiça são capitalizados e se tornam perigosamente virais quando encontram motivação em jovens que sentem que não têm muito a perder. Assim, esse sentimento de perda e de injustiça é preenchido por lemas fascistas e desejo de extermínio.

“São jovens que não estão militando a favor de outras opções; querem quebrar tudo, porque são pobres, porque não se sentem representados por ninguém”, aponta Seselovsky, destacando que a questão de fundo, que tem como sintoma o surgimento de grupos como o Revolución Federal, é a suspeita sobre o sistema democrático.

“Estão sozinhos, furiosos, querem matar alguém, simbólica ou materialmente. Quando o fazem simbolicamente, levam uma guilhotina à Praça de Maio, e quando o fazem materialmente, executam uma pistola Bersa no rosto da vice-presidenta. Por quê? Porque o que está em questão é o sistema democrático, porque não acreditam na democracia, porque a democracia não cumpriu suas promessas.”

Associado ao desejo de extermínio, o que se instaura é um clima social de medo, como explica ao Brasil de Fato Micaela Cuesta, socióloga e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Democracia e Autoritarismos, da Universidade de San Martín, da Argentina.

“Se a democracia pode ser entendida como uma forma de transitar os conflitos com a diferença, com a pluralidade de valores, de racionalidades dentro de limites deliberativos pacíficos, grupos como o Revolución Federal se encontrariam do outro lado dessa concepção”, ressalta. “Em grande medida, seu lema, como eles mesmos declararam na mídia, é a eliminação de uma das partes ou a pretensão de que uma das partes do conflito, neste caso um movimento político como o kirchnerismo, não possa caminhar sem medo pelas ruas.”

As respostas institucionais

O surgimento desse tipo de grupos extremistas é observado em todo o mundo. O contexto de crise econômica e social impulsiona a construção de narrativas que explicam o mal-estar, como explica Micaela Cuesta.

“Essas narrativas sinalizam um responsável, que costuma funcionar como um bode expiatório. No caso do Revolución Federal, é o que fazem ao apontar contra políticos, e em particular, um tipo de político: os que, na nossa história recente, propõem políticas de redistribuição de riqueza , ainda que de forma modesta, muito modesta”, afirma.

“Isso é oferecido como a explicação de todos os males que os cidadãos podem estar padecendo, e cria-se a ilusão de que o desaparecimento desse personagem, desse objeto criado como bode expiatório, solucionaria todos os problemas”, explica Cuesta.

É o que se traduz tanto no ataque à Cristina Kirchner quanto em falas como “são eles ou nós”, publicado pelo deputado nacional Ricardo López Murphy, da coalizão macrista Juntos por el Cambio, dias antes do ataque, e em apoio ao processo que pede 12 anos de prisão à Cristina Kirchner.

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Os tempos dos processos judiciais e das possíveis respostas institucionais têm sido mais lentas que a virulência dessas ações, e são consideradas apenas paliativos, já que atuam sobre o sintoma e com certo atraso em relação aos fatos. No entanto, é notável que a responsabilização sobre discursos e ações de ódio possam abrir um interessante precedente para combater esse tipo de crime, entendendo e atualizando suas operações e seus efeitos nos tempos que atravessamos. Tempos em que, como afirma Seselovsky, já não há centro.

“Os centros desapareceram. Os setores médios, social-democratas, os mais moderados, desapareceram, e cresceram os polos”, afirma, e dá o exemplo do que aconteceu no Brasil, com a chapa formada entre Lula da Silva (PT)  e Geraldo Alckmin (PTB).

“A Justiça pode pôr um freio a certa narrativa de ódio, mas vai ser um freio, não vai ser a solução”, afirma o jornalista. “Enquanto não resolvermos não o sintoma, mas a doença, que é a pobreza, a fome e o mal-viver, a justiça será simplesmente um analgésico.”

Edição: Arturo Hartmann