Sem veneno

Contraponto à fome, Festival da Reforma Agrária oferta alimentos saudáveis de todo o país em SP

O evento do MST reúne milhares de pessoas no centro da capital paulista, é gratuito e acontece até domingo (4)

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O Festival acontece no Galpão do Armazém do Campo em São Paulo, na alameda Eduardo Prado, 460 - Gabriela Moncau

Sandra Pão trabalha em uma agência de design e já frequenta o Armazém do Campo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em São Paulo. Mas não sabia que, desde sexta (2) e até domingo (4), nessa mesma rua da região central, está acontecendo o Festival Nacional da Reforma Agrária. Estava caminhando pela calçada neste sábado (3) quando se deparou com a feira de 31 barracas e 30 toneladas de alimentos agroecológicos de diferentes partes do Brasil. 

Entre hortaliças, frutas, verduras, arroz, feijão, leite, mel, geleias e tantos outros itens comercializados por aqueles que o produzem, o evento reuniu produtos regionais da cultura caipira, tais como linguiça artesanal colonial, queijos e pimentas.  

Também foi lançado o novo café do MST - “cultivado com muita luta”, como diz a embalagem. Ele é feito no extremo sul da Bahia, pela marca Terra Justa, que já tem tradição na produção de chocolate, desde o plantio do cacau.  

“Foi uma surpresa muito grande, estou muito feliz de estar aqui. Porque aqui você tem contato com os produtores, faz toda a diferença a pessoa contar dessa dedicação em relação à produção, ao plantar, ao colher, ao fabricar”, relata Sandra, ao sugerir que o espaço seja permanente.  Só no dia de abertura do Festival, o movimento estima que cerca de cinco mil pessoas por ali circularam. 

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Trata-se do retorno de eventos desse tipo por parte do MST desde o início da pandemia de covid-19. Ainda em um formato menor que a tradicional Feira da Reforma Agrária, que acontece no Parque da Água Branca desde 2016 e deve ser retomada ano que vem, o Festival carrega o mesmo espírito. Com oficinas, lançamento de livros e shows – como de Siba -, a proposta é estabelecer a ponte entre a diversidade do que é produzido pela reforma agrária e a cidade.  

Vanda Helena da Costa, corretora de imóveis e agrofloresteira urbana, já estava com saudades da feira, que considera ser um evento em defesa da saúde. “As pessoas tem que tomar pé de como o alimento é produzido, da importância de ser um alimento agroecológico, porque não é só o alimento em si. É tudo o que envolve essa cadeia: o respeito às florestas, aos mananciais, à biodiversidade”, aponta. 

Comida que enche barriga x commodity para exportação 

Ao lado dos expositores com suas barracas, refeições e lanches podem ser consumidos em mesas, estrategicamente posicionadas em frente ao telão que transmite os jogos da Copa do Mundo do Catar.  

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Com uma exposição fotográfica que retrata a relação entre o MST e o esporte mais popular do país, varais com camisas de futebol do movimento e um bandeirão enorme em homenagem ao Dr. Sócrates, o cenário do Festival não deixa esquecer que ele acontece em meio a uma Copa e que futebol e política são indissociáveis.  


Almoço e jantar são vendidos pela "Culinária da Terra": o primeiro entre 12h e 15h e o segundo das 18h às 20h / Gabriela Moncau

Ornando com a decoração, o livreiro Paulo Henrique Teixeira carregava sua filha Beatriz em meio às barracas, usando uma camisa da Argentina, pouco antes do confronto entre o time de Messi e a Austrália. Ele e sua companheira, a psicóloga Mônica Teixeira, foram pela primeira vez a uma feira como essa. Ficaram sabendo pelas redes sociais.  

“Uma coisa que eu demorei para entender é que a agricultura familiar é a que alimenta a gente, na verdade. A grande produção vai, em sua maioria, para fora do país. Isso é fundamental e é um dos motivos pelos quais eu estou aqui”, conta.   

De fato, o Censo Agropecuário de 2017, o mais recente feito pelo IBGE, aponta que 76,8% dos estabelecimentos rurais no país são de agricultura familiar. No entanto, o Brasil vive um processo de avanço da monocultura de commodities para exportação - que tem a soja transgênica como carro chefe – sobre as terras usadas para plantio.  

Entre 1988 e 2018, a área cultivada usada para plantar arroz, feijão e mandioca baixou de 24,7% para 7,7%, ainda conforme dados do IBGE. Nesse mesmo período de 30 anos, as lavouras voltadas para exportação, que ocupavam 49,8% da área de cultivo do país, passaram para 78,3% dela.  

Prato sem veneno 

“Acho muito importante iniciativas como essa para nós termos uma opção de ampliar nossas escolhas, não ficar refém apenas do modo de produção com agrotóxico”, opina Paulo Henrique. “E por ser um movimento popular que há anos está lutando pelo direito de produzir coisas para o próprio povo brasileiro”. 


Em frente à exposição de camisas de futebol, agricultoras vendem sucos, picolés, polpas e frutas orgânicas da mata atlântica / Gabriela Moncau

O Festival Nacional da Reforma Agrária acontece em um momento em que, a passos acelerados e já no apagar das luzes de 2022, o Projeto de Lei (PL) 1.459/2022 (antigo PL 6.299/2002), apelidado por seus críticos de Pacote do Veneno, tramita no Congresso Nacional. Se aprovado, facilitará a regulamentação de agrotóxicos no país. 

“É uma contradição um país com toda essa terra e as pessoas passando fome, na fila para comprar osso” lamenta Sandra. “E saber que nesses últimos quatro anos houve um aumento recorde de regulamentação de agrotóxicos. Eventos como esse tinham que ter um peso maior, porque nós, a maioria das pessoas, estamos nos nutrindo com veneno no prato”, constata.  

Mas sorri, ao dizer acreditar que as coisas vão melhorar. “O esperançar vem um pouco daí. Do fato de achar que, daqui para frente, as pessoas que produzem vão estar mais protegidas para produzir mais e nós, aqui, cada vez mais ter acesso”.  

Edição: Vivian Virissimo