Assista ao vídeo

"Nosso tempo está se esgotando", diz editor-chefe do WikiLeaks sobre Assange

Liberdade de imprensa também está no banco dos réus diante das acusações dos EUA, diz Kristinn Hrafnsson

O jornalista investigativo Krsting Hrafnsson, do WikiLeaks - Brasil de Fato
É sobre a liberdade de imprensa no mundo todo. É sobre direitos humanos no mundo todo

A investida dos Estados Unidos contra Julian Assange é um "teste", acredita o editor chefe do WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson. Se o fundador do site realmente for extraditado do Reino Unido para os EUA, onde pode ser condenado a passar o resto da vida atrás das grades, um precedente será criado de como governos podem lidar com jornalistas.

"Há uma percepção equivocada de que só estamos lutando pelo Julian. É meu amigo, certamente lutaria por ele de qualquer forma. Mas ele é só o rosto de um problema enorme. É sobre a liberdade de imprensa no mundo todo. É sobre direitos humanos no mundo todo. É parte da nossa resistência geral ao ataque à dignidade e os valores fundamentais que constituem essa camada fina que é nossa civilização atual. Se não resistirmos, vamos desaparecer", diz Hrafnsson.

No Brasil, o editor-chefe do WikiLeaks reuniu-se com o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O petista defendeu que Assange "seja solto de sua injusta prisão". Antes da declaração de Lula, Hrafnsson esteve na Colômbia, onde o presidente Gustavo Petro também endossou a campanha pela liberdade de Assange e afirmou que pediria ao presidente dos EUA, Joe Biden, "para não acusar um jornalista apenas por dizer a verdade".

Assange, de 51 anos, está em uma prisão de segurança máxima nas proximidades de Londres e o Reino Unido autorizou sua extradição para os Estados Unidos, onde ele pode ser condenado a até 175 anos de prisão. A defesa do jornalista recorre da decisão.

A Casa Branca usa a lei contra a espionagem datada da Primeira Guerra Mundial para processar o jornalista pela publicação de documentos e informações sigilosas que revelaram possíveis crimes de guerra dos Estados Unidos. O processo começou com o republicano Donald Trump na Casa, mas continua com Biden no cargo. Reportagem de 2021 do Yahoo News, inclusive, revelou que durante o governo de Trump os EUA teriam elaborado planos para sequestrar ou assassinar Assange.

"Se eles conseguirem extraditar Julian Assange e julgá-lo como um espião e prendê-lo pelo resto da vida, isso mostrará que podem fazer o mesmo em outros lugares, no mundo todo. Isso colocará em risco a segurança de todos os jornalistas do mundo", avalia Hrafnsson.

Confira a íntegra da entrevista:

Brasil de Fato: Se você puder falar do legado do trabalho do WikiLeaks para o jornalismo e a importância dele quando pensamos em violência global, intervenções e guerras desde o início dos anos 2000. Como vê o legado do trabalho do WikiLeaks?

Kristinn Hrafnsson: Acho que o legado do WikiLeaks, em termos históricos, quando as pessoas olharem para trás, será extraordinário. Ele vem em várias camadas. Se pensarmos neste período de século.

É sempre difícil definir um ponto de partida em uma era, mas digamos que uma certa era começou no 11 de setembro [de 2011], com o ataque aos Estados Unidos. O que se seguiu foi um giro sombrio na política e um ataque aos direitos humanos em países ocidentais, além de guerras horríveis no Afeganistão e no Iraque e guerras de drones em vários países.

Então foi um ponto de virada na política global, com o enfraquecimento da segurança dos indivíduos em muitos aspectos. Vemos ataques à liberdade de imprensa, ataques à privacidade e, claro, violência direta, violência militar e policial.

Isso acontece no mundo todo e é instigado por aquele ataque comandado por um homem em uma caverna no Afeganistão. Então eu diria que os sigilos impostos por potências ocidentais aumentaram dramaticamente. É possível ver isso em gráficos e, por exemplo, na quantidade de documentos colocados na categoria de sigilo nos EUA.

Vimos o sigilo corporativo aumentar também. Em todos os níveis, houve um declínio. E o jornalismo não encontrou a resposta certa para isso: a introdução do jornalismo científico que Julian Assange criou com o site e a ideia de que podemos resistir criando uma plataforma para denunciantes enviarem informações, informação bruta que pode então ser analisada e publicada na íntegra.

Eu digo "científico" porque é um método científico de fornecer o material bruto ao indivíduo, para que possa verificá-lo e investigá-lo sozinho. Mas é claro que também iniciamos uma cooperação com a grande mídia e meios do mundo todo, até mesmo a mídia periférica, ou como quiser chamá-la, para que analisassem o material publicado.

Então o que compartilhamos foi uma explosão em termos de jornalismo. A publicação dos arquivos sobre o Iraque e o Afeganistão, refiro-me aos arquivos militares, os 250 mil documentos do Departamento de Estado dos EUA, os telegramas diplomáticos, os arquivos de avaliação dos presos da Baía de Guantánamo. Isso abriu uma realidade totalmente nova.

E o impacto, claro, foi tremendo em termos políticos. E acho que estamos vendo um mundo transformado depois disso. O impacto político foi bastante óbvio. No início, disparou um processo ou ajudou a acelerar o que agora chamamos de Primavera Árabe ou o Despertar Árabe. E colocou em dúvida a legitimidade desse abuso do império e de sua posição. Também gerou material para muitas pessoas conseguirem justiça, para não serem privados da justiça em relação a crimes de guerra ou rendições.

O material que publicamos foi usado para fazer justiça para aqueles que foram injustiçados, para acabar com a impunidade de crimes de guerra e atos ilegais contra, por exemplo, pessoas que se rendem.

Um exemplo é o caso El-Masri no Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Foi um documento e uma prova muito importantes. É possível dizer que os documentos dos telegramas diplomáticos levaram à retirada definitiva de todas as tropas do Iraque.

Porque depois que se estabeleceram alguns elementos nos telegramas diplomáticos sobre irregularidades e encobrimentos de abusos no país, após 2003, o governo do Iraque não podia mais oferecer ao Exército estadunidense um compromisso de total proteção para as irregularidades e isso levou à retirada das tropas do Iraque.

Mas a outra importante história, que muitas vezes é ignorada porque ainda está em curso, é a exposição, inerente à reação dos EUA e de países que colaboram com eles, gerada pela resposta que deram a esses vazamentos. Essa é uma história muito importante que ainda está em curso com a prisão de Julian Assange, com o ataque à organização e outros que trabalham para ela. Essa é uma história em curso e a prova do que a superpotência está disposta a fazer em seu ato de vingança é impressionante.

Essa história, a história da reação, provavelmente será, em termos históricos, tão importante quanto a história do WikiLeaks. É a ação e a reação. Isso acontece muito no jornalismo.

O exemplo mais famoso, claro, é o Watergate. Não pelo roubo de documentos, mas pelo encobrimento, as mentiras e a invasão ao edifício Watergate. E o encobrimento e as mentiras sobre a invasão que levaram à renúncia do Nixon.

Essa é a história em curso, com a qual estamos lidando no momento e seria ótimo não ter que lidar, porque somos jornalistas e só queremos fazer nosso trabalho, mas este se tornou o meu trabalho e o dos meus colegas: colocar toda a nossa energia em tentar acabar com essa perseguição, acabar com essa violência contra Julian Assange, acabar com esse lawfare [perseguição jurídica] em curso, porque todas as grandes organizações do mundo hoje reconhecem que isto é um ataque não só ao Julian e ao WikiLeaks, é um ataque à liberdade de imprensa para o mundo todo.

O senhor mencionou o Watergate. Um caso famoso de exposição. Se pudesse elaborar mais a respeito, pensando agora no contexto. O que mudou dos anos 1970 para cá, levando também em consideração o que disse sobre a perseguição ou a reação a esses trabalhos jornalísticos, nos anos 1970 e nos 2000?

A comparação é assustadora em muitos aspectos, porque temos a tendência de olhar para os anos 1970 como sendo a época sombria da era Nixon, onde as coisas ruins aconteciam. Na verdade, a era Nixon e as coisas ruins que aconteciam naquele recorte de tempo são muito menos graves do que o que testemunhamos hoje.

Estamos em uma situação muito mais precária e o jornalismo está sob um ataque muito mais grave hoje do que estava antigamente. Só para ilustrar, Daniel Ellsberg, que vazou os Pentagon Papers na mesma época e teve um impacto indireto na renúncia do Nixon, é um grande apoiador nosso e foi a Londres e disse que, se estivesse fazendo o que fez como denunciante hoje e não no início dos anos 1970, nunca mais seria um homem livre. Nunca teria sido solto, ficaria preso para o resto da vida.

Sob o mesmo regime, é a mesma situação que Julian Assange está lidando. É uma coisa  assustadora de se dizer, mas não progredimos, nós regredimos. Estamos em uma situação pior do que há 50 anos. Você já tinha comentado sobre isso. Nós falamos sobre o legado do WikiLeaks.

Quais são então os desafios hoje? Podemos pensar em coisas importantes que aconteceram há um ano, como a retirada dos EUA do Afeganistão, feita de uma forma terrível. Temos a guerra na Ucrânia agora. Como o WikiLeaks, mas não só ele, como iniciativas jornalísticas podem ajudar, talvez, a construir, digamos, um mundo mais pacífico, se não pacífico, ao menos mais responsável?

Concordo com Julian Assange quando diz que nosso objetivo principal deveria ser parar guerras. Não só expor as irregularidades nas guerras. Ainda não chegamos lá. Temos que admitir. Você falou do Afeganistão, a guerra mais longa de que os EUA já participaram, e de uma forma um pouco humilhante para eles com gastos de bilhões de dólares e o custo humano, o valor das vidas humanas, que não pode ser calculado em termos monetários.

Se as pessoas tivessem prestado mais atenção aos arquivos afegãos, publicados em 2010, isso teria acabado antes. Teriam sido 10 a 12 anos, e não 20 anos. Porque não havia nada de novo na avaliação que levou à decisão de terminar a guerra que já não estivesse ali nos arquivos dez anos antes.

Então, na verdade, é um pouco decepcionante que não tenha sido criada mais tensão para acelerar o fim daquele espetáculo horroroso que não ia a lugar nenhum. Como podemos contribuir para prevenir guerras?

É uma situação difícil. E está cada vez mais difícil, porque há forças em jogo em nossas sociedades, internacionalmente, que estão trabalhando contra qualquer possibilidade de conquistar isso.

Quero saber sua opinião sobre o que poderíamos chamar de um novo fenômeno, as fake news. No Brasil, tivemos essa experiência principalmente em 2018, talvez menos nestas últimas eleições, mas Bolsonaro foi eleito em 2018 não só por causa disso, mas foi um empurrão para ele, as fake news. Como nós, jornalistas, devemos olhar para isso principalmente quando falamos do WikiLeaks, um projeto que toma tanto cuidado para falar sobre a verdade?

O problema é colossal. É um problema enorme. E não só do Brasil, é um problema universal. É algo que está ferindo pessoas no mundo todo e o processo democrático. Não é algo fácil de lidar. Porque é fácil cair em uma armadilha. Uma armadilha de aplicar um remédio que matará o paciente. Não queremos isso. Não queremos levar isso a um ponto em que estejamos aumentando a censura para parar as fake news. São pautas conflitantes que não levarão a algo bom, na minha opinião.

Sou muito cauteloso em relação às tentativas de desviar nessa direção. Mas o problema certamente existe. E sabemos, é claro, de onde ele vem. Você falou sobre a direita. Sim, a direita é, em geral, o principal ator espalhando essas informações. Mas não são o único ator.

E a grande imprensa, mesmo entre a esquerda liberal, tem certa responsabilidade de ter seguido o exemplo de divulgar e espalhar essas informações.

E os poderes no nosso mundo com certeza não são inocentes nesse quesito. Isso tem sido levado muito a sério como uma arma, por agências de inteligência, por exemplo. Usam essas informações para impulsionar certas pautas. É parte da guerra de propaganda. Então também são culpados por contribuir com o problema. Muitos jornalistas caem na armadilha de serem manipulados por esses poderes. Você diz que é uma novidade, mas em geral não acho que seja. Sempre existiu, de certa maneira.

Mas a escala em que acontece e a gravidade política certamente aumentaram, porque temos novos atores e novos fatores em jogo. A tecnologia para difundir informação é muito maior e mais eficaz do que antes.

Além disso, as redes sociais estão se tornando poderosas demais na esfera social. Tenho assistido com certo espanto histórias recentes sobre, por exemplo, Elon Musk controlando o Twitter. Todo mundo está gritando e berrando na esquerda liberal e na grande imprensa sobre a gravidade da situação para a democracia.

Mas essa é a pergunta errada. Deveriam estar perguntando por que importa que um estadunidense maluco seja dono de uma plataforma de rede social. Como nós permitimos e o que podemos fazer em relação ao fato de que essas plataformas sejam tão instrumentalizadas no nosso processo democrático? Se é que são corretas. E essa é uma posição saudável? Deveríamos fazer alguma coisa?

Precisamos dar um passo atrás e enxergar o problema por completo. O problema não é Elon Musk. O problema são as redes sociais desempenhando um papel tão fundamental no processo democrático, abrindo o caminho aos abusos e a uma forte propaganda para envenenar nosso processo.

Quero acrescentar que estamos lidando com forças que são essencialmente antidemocráticas. Precisamos ter isso claro. Não me importa do que vamos chamá-los, que rótulo vamos dar, seja no Brasil, nos EUA ou em outro lugar. Se vamos chamá-los de neofascistas, fascistas, neoconservadores, extrema direita ou o que for. É um só problema, uma só questão, está crescendo por toda parte e está drenando a esfera política. É uma força antidemocrática. De tudo o que discutimos, uma das coisas mais importantes relacionada à liberdade de expressão e à responsabilização é a perseguição e prisão de Julian Assange.

Eu gostaria de saber brevemente qual é a situação atual do Assange?

A situação dele é muito precária. Considerando o indivíduo, sua personalidade e sua saúde, está se enfraquecendo, o que é natural para uma pessoa privada de liberdade por tanto tempo e sob imensa pressão.

Julian vem sendo totalmente privado de liberdade há 12 anos. Ficou em prisão domiciliar no exílio, na Embaixada do Equador, sem acesso à luz do dia ou exercícios ao ar livre por sete anos. E agora está há três anos e meio em um presídio de segurança máxima em Londres, esperando e lutando contra a extradição. Então a situação dele não é boa, a saúde dele piorou e não devia.

Algo esperado para alguém que suportou tanta coisa. Legalmente, ele agora está lutando na Justiça contra a extradição. Estamos agora esperando o Tribunal Supremo de Londres avaliar um pedido de recurso.

Temos muita esperança de que considerarão o recurso. Seria escandaloso se não considerassem. A resposta virá nos próximos dias ou semanas. E então haverá um processo judicial, uma audiência.

E nessa audiência todas os mais sérios casos de violações contra Julian serão ouvidos pela primeira vez em um tribunal de apelação. E com novas evidências reunidas após a primeira etapa.

Por exemplo, a reportagem que mostra que a CIA planejava sequestrar ou matar Julian na Embaixada do Equador em 2017. Só isso já deveria provar que não há chance de ele ter um julgamento justo nos EUA, portanto a extradição deve ser anulada.

Então esta é a situação e, se tudo correr muito mal, ele poderia estar em um avião aos EUA nas próximas semanas. Nosso tempo está se esgotando. Temos que levar em consideração o pior cenário. É por isso que estamos dobrando esforços para conseguir a adesão do maior número de forças políticas possível para resolver isso em uma plataforma política, porque, em sua essência, isto não tem nada a ver com a Lei.

É isso que vem sendo exposto em todo o processo no Tribunal de Londres. Apesar da fachada de justiça em tribunais elegantes com juízes de peruca, o que vem sendo mostrado durante todo o processo é que isto não tem a ver com a Lei.

É pura perseguição política.

Há um processo contra Mike Pompeu, na Justiça espanhola, sobre essa tentativa de assassinato contra Assange?

Na verdade, há vários processos envolvendo Mike Pompeo. Um foi aberto pelos advogados do Julian e por jornalistas que o visitavam na Embaixada e eram espionados pela CIA quando Mike Pompeo era o diretor da Agência. Mais tarde se tornou Secretário de Estado no governo de [Donald] Trump. Ele está implicado nesse caso, que é um caso estadunidense, aberto nos EUA. E Mike Pompeo foi intimado a se apresentar à Justiça.

Tem outro caso aberto em Madri. Esse é contra a empresa de segurança que trabalhou para a CIA instalando equipamentos de espionagem em torno do Julian e de todo mundo que o visitava, violando os direitos dele e de todos que o visitaram.

Esse caso está em andamento em um tribunal de Madri. Nesse caso, o juiz em Madri solicitou a presença de Mike Pompeo, como ex-diretor da CIA, já que é evidente que ele tinha conhecimento e aprovava essa operação absurda.

Então há muitas frentes de batalha. Nesse movimento de resistência, foram surgindo revelações que são surpreendentes em tempos como estes. Surpreendentes.

No começo da entrevista, você mencionou a reação contra o WikiLeaks e esse tipo de trabalho jornalístico. E agora você falou sobre a espionagem em alguns casos. E cito, por exemplo, o escândalo de espionagem Pegasus, o spyware israelense, que revelou que jornalistas e ativistas estavam sendo espionados. Isso seria parte da reação? Governos e até mesmo empresas talvez tentando espionar e perseguir pessoas como Assange?

Sim, governos, empresas e governos em conluio com empresas. Essa é a tendência atual que é extremamente séria e precisa ser discutida. Sim, isso está acontecendo. É claro que a revelação de Edward Snowden, a quem ajudamos a buscar segurança, foi impressionante, ainda mais para os estadunidenses, que são sensíveis à ideia de terem sua vida particular espionada.

Mas esses elementos vêm crescendo e são parte da mesma tendência. Não parou em 2010. Aumentou em 2010. Mas é uma tendência que começou antes. E infelizmente, por exemplo, não pareceu importar quem estava na Casa Branca no momento, fosse um democrata ou um republicano.

Isso se manifestou, por exemplo, na escalada absurda, durante o governo [Barack] Obama, da guerra contra denunciantes. Você pode encontrar na internet promessas do Obama, quando estava em campanha antes de 2008, de que se dedicaria especialmente a proteger os direitos de denunciantes.

E o que aconteceu? No governo Obama, mais denunciantes foram processados sob a Lei de Espionagem do que nos governos de todos os presidentes anteriores juntos. Dissemos naquele momento que era algo extremamente grave porque era um passo em uma direção e em nenhuma outra. Iriam atrás de denunciantes e os chamariam de espiões, abusando da Lei de Espionagem.

Depois viriam atrás de jornalistas. E infelizmente estávamos certos. E só quando o abuso da Lei de Espionagem foi usado contra Julian Assange que o efeito assustador disso realmente foi sentido.

Então isso é parte de uma tendência. E, sim, é tudo parte da mesma luta pela verdade e pelos direitos humanos. O ataque à privacidade sempre esteve no nosso manual, sempre foi parte da luta e esteve manifesto na nossa missão no WikiLeaks.

Julian foi muito franco desde cedo nesse sentido. E é o outro lado da moeda. Queremos transparência e responsabilização para quem está no poder. Mas precisamos proteger a privacidade de quem não tem poder.

Mas, ao invés dessa balança, temos o oposto. Cada vez mais sigilo e impunidade para quem está no poder e um ataque generalizado à privacidade e aos direitos humanos básicos de quem não tem poder.

Essa balança precisa ser invertida. Isso é de total importância no mundo todo, tanto no Brasil como em outros lugares. Precisamos admitir que mesmo se o governo Biden quisesse introduzir algumas dessas medidas ele também enfrenta forças internas no país que resistem a isso. Isso acontece tanto na esfera privada quanto no "Estado profundo", como o chamo, que realmente existe, não é uma teoria da conspiração.

Existe lá, existe em países europeus e em toda parte. As evidências são claras nessa área. Vamos ver um quadro da situação. Estamos atingindo um ponto em que podemos resistir e começar a reverter esse processo. Como disse e repito, se não conseguirmos estaremos em apuros.

Considerando o pior cenário no caso do Assange, quais seriam as consequências? E, devido a isso, por que é importante que forças políticas progressistas e até governos, eu vi que você se reuniu com o Gustavo Petro, na Colômbia, e também tem o Lula, que inicia seu mandato em janeiro. Por que é importante resistir a essa horrível tendência que citou?

O caso contra Julian Assange e o WikiLeaks é um teste. Testa a nossa determinação, mas também as forças contra as quais estamos lutando, as forças do mal, até onde podem chegar. Vai abrir um precedente sobre como os governos irão lidar com a imprensa.

Se eles conseguirem extraditar Julian Assange e julgá-lo como um espião e prendê-lo pelo resto da vida, isso mostrará que podem fazer o mesmo em outros lugares, no mundo todo. Isso colocará em risco a segurança de todos os jornalistas do mundo, incluindo a Colômbia, de onde acabei de chegar, e o Brasil.

Esperamos ter uma manifestação de apoio do presidente eleito, Lula. E existe uma forte percepção de que será esse o caso, e o perigo está ali. Há uma percepção equivocada de que só estamos lutando pelo Julian. É meu amigo, certamente lutaria por ele de qualquer forma.

Mas ele é só o rosto de um problema enorme. É sobre a liberdade de imprensa no mundo todo. É sobre direitos humanos no mundo todo. É parte da nossa resistência geral ao ataque à dignidade e os valores fundamentais que constituem essa camada fina que é nossa civilização atual.

Se não resistirmos, vamos desaparecer.

Edição: Rodrigo Durão Coelho