Comida de verdade

Arroz, feijão, café, laticínios e mais: conheça as principais linhas de produção do MST

Maior produtor de arroz orgânico da América Latina, MST cultiva alimentos sem veneno no país que voltou ao mapa da fome

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Atualmente existem 160 cooperativas, 1900 associações e 120 unidades de agroindústria do MST - Tayson Cordeiro

Arroz, feijão, farinha, batata, mandioca, tomate, cenoura, salada, café, leite, açúcar, queijo. A maioria das comidas que vem à mente quando se pensa na alimentação básica brasileira é produzida pela agricultura familiar, que representa 76,8% dos estabelecimentos rurais no país. Destes, boa parte são do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que tem, atualmente, cerca de 450 mil famílias assentadas pelo Brasil.

Ao longo da última década, o arroz orgânico se tornou o carro-chefe das linhas de produção do movimento. De acordo com o Instituto Riograndense do Arroz (Irga), órgão vinculado ao governo do Rio Grande do Sul, o MST é o maior produtor de arroz sem veneno da América Latina.  

Como explica Milton Fornazieri, dirigente nacional do setor de produção do movimento, “nada é por acaso”: a marca alcançada é fruto de uma escolha tomada no final dos anos 1990.  

A ruptura com o veneno 

Desde a criação dos primeiros assentamentos do MST no Rio Grande do Sul na década de 1980, as famílias que ocuparam as chamadas terras baixas, principalmente na região metropolitana de Porto Alegre, passaram a cultivar arroz. “Mas dentro do modelo do pacotão fornecido pelas grandes distribuidoras de veneno e adubo químico”, conta Fornazieri. 

Em 1998, com a constatação da degradação ambiental deste modelo, o alto gasto em insumos e inseticidas e casos de adoecimento, opta-se por plantar, experimentalmente, arroz sem veneno em um assentamento, a ser consumido pelas próprias famílias agricultoras. 

“Com essa primeira experiência, se tiram aprendizados. E então, a partir da direção do MST, se toma a decisão política de largar o veneno e produzir o orgânico. Ainda em 1998, 1999”, lembra Fornazieri. “É um processo longo, de muito estudo, muito conhecimento, que vem se transformando.” 


Nelson e Martielo, da Cootap, vendem arroz orgânico no Festival da Reforma Agrária em SP / Gabriela Moncau

“A agroecologia não é uma transição. É uma ruptura. Uma ruptura com o sistema convencional. Porque você não consegue fazer meia agroecologia”, enfatiza Nelson Krupinski, presidente da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da região de Porto Alegre (Cootap). A cooperativa integra, junto com outras do Rio Grande do Sul e do Paraná, o Grupo Gestor do Arroz Orgânico do MST. 

Arroz e feijão 

A estimativa do Grupo Gestor é que a colheita do próximo ano seja de 16.250 toneladas de arroz orgânico. A produção é feita por 380 famílias distribuídas em 17 assentamentos e organizadas em nove cooperativas da Reforma Agrária. As principais marcas de arroz do movimento são Terra Livre, Raízes do Campo e Campo Vivo.  


As principais variedades plantadas são agulhinha: Epagri 108, Epagri 118, Irga 417, BR Irga 409, Irga 422, BRS Pampa e BRS Pampeira. / Fernando Bertolo / Brasil de Fato

Martielo Webery é engenheiro agrônomo, nasceu e se criou no Assentamento Segredo Farroupilha, na cidade de Encruzilhada do Sul (RS) e trabalha na área da comercialização da Cootap.  

“A cooperativa financia os agricultores para fomentar a produção, aí eles colhem seus frutos, nos entregam, a gente processa e comercializa”, descreve.   

“Uma das partes mais complicadas é a comercialização. Nosso público dos assentamentos, se chegar e pedir para produzir seja qualquer que for o produto, de norte a sul do país, vão produzir”, avalia Martielo. “Só que nosso povo ainda não tem toda a expertise de comercialização. Que hoje é onde a cooperativa atua de forma mais firme: organizar os produtos que temos dentro dos assentamentos e disponibilizar para a sociedade”, diz. 

O arroz orgânico do MST é produzido na região Sul do país e tem o mercado institucional como seu maior comprador, em especial no estado de São Paulo, com destaque para a prefeitura da capital paulista, que destina o arroz sem agrotóxicos para as merendas escolares.

Já o feijão, que forma com o arroz o prato símbolo do país, é também cultivado em grande escala pelo MST nas regiões Sul e Sudeste, em especial em São Paulo e no Paraná. A produção de cerca de 100 mil toneladas por ano, no entanto, enfrenta sérios desafios. 

Commodities avançam, alimentos retraem 

Basta ter ido ao mercado nesses últimos quatro anos para constatar que o governo Bolsonaro foi marcado por um salto inflacionário nos alimentos básicos, dos quais não escaparam o arroz e o feijão. O primeiro chegou a subir 75% em 2020 e o feijão preto, 45,3%. 

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O empobrecimento da população no contexto pandêmico, o desmonte de políticas públicas voltadas à alimentação e à agricultura familiar – como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) - e, por outro lado, as facilidades de financiamento para a produção de soja e milho transgênicos para a exportação criaram uma combinação difícil para os agricultores familiares enfrentar.  

Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), os grãos que enchem a barriga da população seguem perdendo espaço para as commodities comercializadas no exterior. A projeção de novembro da próxima safra de grãos é de 313 milhões de toneladas. Desse montante, o arroz e o feijão são só 4,3%.  

“Passamos por um momento difícil”, atesta Webery. “Mas esperamos que no próximo período possamos melhorar essa situação”, afirma, em frente à barraca da cooperativa, visitada por milhares de pessoas ao longo do Festival da Reforma Agrária, realizado no começo de dezembro em São Paulo.  

Café, leite e açúcar 

Rondônia, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais e Paraná são os estados onde, distribuídas em 120 territórios da reforma agrária, cinco mil famílias produzem os cafés do MST. O mais recente lançamento é um do extremo sul baiano que, agroecológico e “cultivado com muita luta”, como diz a embalagem, é da marca Terra Justa, que já tem tradição na produção de chocolate, desde o plantio do cacau.    

Enquanto isso, no Sul e Sudeste vivem 5,5 mil famílias assentadas do MST produtoras de leite. Os laticínios - somando produtos como queijo, iogurte, manteiga e requeijão - beneficiam 37 milhões de litros de leite por mês, alimentando, neste período, cerca de três milhões de pessoas.  

Uma das muitas marcas dedicadas a produzir laticínios, mas também arroz, feijão, hortaliças, verduras, tubérculos, frutas, entre outros, é a Produtos da Terra, criada em 2016 e gerida pela Cooperativa Central da Reforma Agrária do Paraná (CCA).  

“Completamos seis anos agora. Foi crescendo, crescendo, agora a gente está com um espaço maior, com dois caminhões e mais ou menos 200 produtos”, sorri Vitória Gonçalves, comunicadora da Produtos da Terra. “Logo, se Deus quiser, a gente vai abrir o primeiro Armazém do Campo do MST em Curitiba”, conta. 


Vitória vende derivados de cana produzidos pelo MST em Paranacity (PR) / Gabriela Moncau

Também presente no Festival da Reforma Agrária em São Paulo, Vitória Gonçalves ficou responsável por comercializar itens que compõem outra das principais linhas de produção do movimento: os derivados da cana. Só na CCA, a produção é de 40 toneladas de açúcar mascavo e oito toneladas de melado de cana a cada mês, além de uma produção anual de 15 mil litros de cachaça.  

Hortaliças e verduras 

Nascida em uma família de ativistas do MST, Vitória, aos 21 anos, já viveu em diferentes acampamentos no Paraná. Atualmente mora em Curitiba para trabalhar na cooperativa e sua mãe vive no Acampamento Padre Roque, no município de Castro (PR). 

Daniela Ferreira tem trajetória diferente. Entrou no movimento já adulta, mãe de cinco crianças. Antes, morava na região periférica da cidade de Pindamonhangaba (SP). “O nosso acesso à alimentação orgânica era nenhum. Tudo o que a gente consumia era com veneno - e quando dava. Porque o preço, até com veneno, era muito caro para uma família do tamanho da nossa”, conta.  

Preocupada com a alimentação de seus filhos, em 2015 ela se muda com a família para o Assentamento Egídio Brunetto, referência da produção agroecológica do MST, localizado na cidade de Lagoinha (SP), no Vale do Paraíba.  


Há sete anos, Daniela alimenta a família e tira o sustento com hortaliças, verduras e outros cultivos sem agrotóxico, que ela mesma planta / Arquivo pessoal

“Quando a gente foi para o campo, a gente teve a oportunidade de plantar, produzir alimentos saudáveis a baixo custo, não só para os meus filhos, como para os filhos dos outros também. Agora a gente tem uma variedade para comer, beneficiar, vender, doar”, afirma Daniela, ao lado de maços de salsinha, alface, rúcula e berinjela. 

“Fazemos nossas safras e as primeiras culturas são as hortaliças. Depois vai ficando assombreado e a gente vai abrindo novas áreas, rotacionando os canteiros e aproveitando ao máximo, consorciando dois, três tipos de hortaliças diferentes no mesmo canteiro”, expõe Daniela. “A gente posta quinzenalmente tudo o que produzimos, os clientes fazem as compras e a gente vai entregar em Ubatuba (SP), Ilhabela (SP), Pindamonhangaba (SP) e Taubaté (SP)”, conta.  

Assim como o assentamento de Daniela, muitos outros pelo país, além de acampamentos, cooperativas e armazéns do MST organizam os chamados Grupos de Consumo, entregando cestas agroecológicas para quem se interessar em se alimentar da (ainda minoritária) comida sem veneno.  

Edição: Rodrigo Durão Coelho