Copa do Mundo

Jogo entre França e Marrocos coloca em campo colonialismo e disputas políticas

Nação africana já foi um protetorado francês no século XX, mas Marrocos ocupa até hoje o Saara Ocidental

São Paulo (SP) |
População comemora vitória da seleção de Marrocos em Tunis, capital da Tunísia, após vitória contra Portugal na Copa do Mundo. - Yassine Mahjoub / AFP

A disputa e a relação entre França e Marrocos não vai acabar quando o árbitro encerrar a partida entre as duas seleções masculinas de futebol na Copa do Mundo. A partida desta quarta-feira (14) será acompanhada no estádio pelo presidente francês, Emmanuel Macron, e põe em evidência elementos como pertencimento, os usos da extrema direita da imigração árabe e o colonialismo — do passado e do presente.

Entre 1912 e 1956, Marrocos foi um protetorado francês. O mecanismo estabelecido pelo Tratado de Fez preservou parte da autonomia do país africano e não repetia modelos de gestão colonial usados pela França em outras partes do mundo.

Ainda assim, ressalta o jornalista Luis Fernando Filho, do canal dedicado ao futebol africano África Mamba, a partida disputada no Catar será encarada como uma espécie de "vingança" dos marroquinos: "não só pelo futebol, mas também pelo aspecto doloroso que teve para muitas outras gerações passadas em relação a esse momento em que Marrocos foi um protetorado".

Filho destaca outro elemento que deve acirrar os ânimos da partida: o discurso anti-imigração que prospera na Europa atualmente, com uma mira especialmente voltada contra imigrantes e refugiados africanos.

Éric Zemmour, um dos líderes da extrema direita francesa e candidato que recebeu 7,07% dos votos nas eleições presidenciais deste ano, criticou na televisão as comemorações dos marroquinos pelas vitórias de sua seleção nas ruas da França. "Como o rei do Marrocos reagiria se milhares de franceses viessem a Marrakech para comemorar a vitória da França?", disse Zemmour.

"[O jogo] é tratado como algo de Estado, porque vão ebulir diversas manifestações depois do jogo, independente do resultado, comemorando ou não. Então esse França e Marrocos vai acirrar muito os ânimos tanto dos franceses quanto dos marroquinos, filhos de marroquinos, porque essa relação entre franceses e comunidades árabes, por exemplo, não é uma relação saudável", afirma o jornalista ao Brasil de Fato.

:: Marrocos na Copa do Mundo: os seis pilares de uma campanha histórica ::

Marrocos também coloniza

Apesar de também ter sido vítima da Europa, Marrocos participa até hoje da colonização do Saara Ocidental. O país é conhecido como uma das últimas colônias do mundo e sua ocupação contraria determinação da Organização das Nações Unidas (ONU).

Conhecida oficialmente como República Árabe Saarauí Democrática (RASD), o Saara Ocidental – um Estado-membro fundador e pleno da União Africana – é listado pela ONU entre os últimos países que aguardam a descolonização completa.

Desde 1976, o antigo colonizador do Saara Ocidental, a Espanha, cedeu o país ao Marrocos. Os marroquinos, desde então, postergam a realização de um referendo sobre a autodeterminação da população local, que também é defendido pela ONU.

De acordo com a Frente Polisário, movimento de libertação saaráui fundado em 1973 e uma das partes da guerra civil que envolveu o país, a ocupação marroquina tem como objetivo garantir a exploração dos recursos minerais do Saara Ocidental. Parte dos minerais extraídos da colônia, inclusive, é consumida pelo Brasil, afirma o Observatório dos Recursos do Saara Ocidental.


Extração de fosfato pela empresa OCP, controlada pelo rei do Marrocos, em área do Saara Ocidental ocupada ilegalmente / Fadel Senna / AFP

Ahamed Mulay Ali Hamadi, representante diplomático da Frente Polisário no Brasil, afirma que não irá torcer por Marrocos na Copa do Mundo e pontua que o país foi um "agente nas mãos da potência francesa para levar a cabo suas políticas na África".

Ele também afirma que apesar da seleção marroquina ter comemorado vitórias no gramado com a bandeira do "povo irmão da Palestina", essa iniciativa dos jogadores difere da postura do governo de Marrocos, que mantém uma "cooperação e irmandade" com Israel.

"O futebol será febre por uma semana e a realidade volta. Uma realidade que infelizmente o próprio povo marroquino vive", diz Hamadi ao Brasil de Fato.

Edição: Glauco Faria