Fora do teto

Decisão de Gilmar sobre Bolsa Família reduz poder de Lira, mas PEC da Transição segue essencial

Só metade do orçamento previsto na PEC iria para o programa; outras ações e investimentos ainda dependem da tramitação

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
De acordo com o notíciário de Brasília, parlamentares ligados ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), querem postos no primeiro escalão do governo em troca de votos favoráveis à PEC da Transição - Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes de retirar os gastos com o pagamento de R$ 600 do Bolsa Família do limite do Teto de Gastos interfere diretamente na tramitação da PEC da Transição defendida pelo governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Aprovada pelo Senado, a proposta busca viabilizar a ampliação do Teto de Gastos em pelo menos R$ 145 bilhões para 2023, sendo R$ 75 bilhões para o aumento do Auxílio Brasil, que voltará a se chamar Bolsa Família. A tramitação na Câmara dos Deputados, no entanto, caminha a um ritmo aquém do desejado pelo governo eleito, sendo a PEC utilizada como moeda de troca para cargos na próxima gestão.

De acordo com o notíciário de Brasília, parlamentares ligados ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), querem postos no primeiro escalão do governo em troca de votos favoráveis à PEC da Transição. Do lado do PT, a direção já orientou o apoio à reeleição de Lira como presidente da Casa Legislativa. O aceno, no entanto, parece não ser suficiente para a aprovação da PEC.

Agora, com a decisão de Gilmar Mendes, Lula ficará menos dependente dos congressistas e poderá ter maior força nas negociações, na avaliação de analistas ouvidos pelo Brasil de Fato. Em outras palavras, o poder de Arthur Lira sobre o novo governo diminui. Entre os parlamentares aliados de Lula, a sensação é de vitória diante da decisão que pode ser lida, em partes, como uma alternativa à PEC.

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Nas palavras de Mayra Goulart, professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a decisão de Gilmar Mendes "diminui um pouco da urgência por parte do governo eleito na aprovação da PEC".

Ainda assim, a tramitação da PEC não deixa de ser importante, uma vez que não é uma demanda exclusiva do Executivo, mas de uma parte expressiva do Congresso Nacional. "Esse espaço fiscal é importante para dar conta de outras demandas além do Bolsa Família. Na PEC originariamente tinha, além dos R$ 145 bilhões do Bolsa Família, R$ 23 bilhões de investimento, que é uma demanda muito necessária, haja vista o estrangulamento orçamentário que nós temos vivenciado com essa 'limpada de contas' que o governo Bolsonaro fez, deixando nesse final de mandato um apagão orçamentário", afirma Goulart.

No Congresso, o valor total da PEC já diminuiu para R$ 145 bilhões, sendo apenas aproximadamente metade R$ 75 bilhões para o Ministério da Cidadania, responsável pelo Auxílio Brasil. O restante será encaminhado para Saúde (R$ 22,7 bilhões), Educação (R$ 11,2 bilhões), Desenvolvimento Regional (R$ 9,5 bilhões), pagamento do salário mínimo (R$ 6,8 bilhões), encargos financeiros da União (R$ 5,7 bilhões), Ciência e Tecnologia (R$ 4,9 bilhões), Turismo (R$ 3,7 bilhões), Economia (R$ 1,7 bilhão), Agricultura (R$ 934 milhões), Justiça (R$ 800 milhões), Meio Ambiente (R$ 536 milhões), Defesa (R$ 500 milhões), Trabalho e Previdência (R$ 400,6 milhões), Ministério da Mulher (R$ 250 milhões), Comunicações (R$ 126,4 milhões), Presidência da República (R$ 35 milhões) e Banco Central (R$ 10 milhões).

"Há também por parte do Congresso interesses a serem contemplados na aprovação dessa PEC. Então, não há essa dicotomia entre um governo no Executivo que tem o interesse na PEC e o Legislativo que tem que ceder. Há também interesse por parte de alguns legisladores em criar um espaço fiscal maior para que haja oportunidade de investimento", afirma Mayra Goulart.

Comemorações 

Inimigo político de Arthur Lira, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) comemorou a decisão de Gilmar Mendes. O parlamentar escreveu em seu perfil no Twitter que "o STF acaba de decidir que a miséria humana não pode ser objeto de chantagem".

O deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ) disse que a decisão de Gilmar Mendes foi "fundamental" para o enfrentamento à fome. O parlamentar afirmou, inclusive, que continuará trabalhando para aprovar a PEC da Transição no Congresso.

Na mesma linha, a presidente nacional do PT, a deputada federal Gleisi Hoffmann (PT-PR), publicou que também continuará trabalhando pela aprovação da PEC. Caso esta não ocorra, no entanto, destacou que a decisão de Gilmar Mendes "não deixará o povo pobre na mão".

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O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) classificou a decisão como uma "grande vitória (...) contra a fome e a favor da dignidade de todos os brasileiros".

A deputada federal Marina Silva (Rede-SP) afirmou que "a dignidade alimentar de todos os brasileiros foi garantida com a decisão do ministro Gilmar Mendes". A parlamentar afirmou que se trata de "mais uma vitória da sociedade fruto da atuação da Rede", que protocolou o pedido para a liberação. A sigla argumentou que os gastos se enquadram no "mínimo existencial" discriminado pela Constituição Federal.

Gilmar Mendes entendeu que "a instituição de normas de boa governança fiscal, orçamentária e financeira, entretanto, não pode ser concebida como um fim em si mesmo".

"Muito pelo contrário, os recursos financeiros existem para fazer frente às inúmeras despesas que decorrem dos direitos fundamentais preconizados pela Constituição", diz a decisão do ministro.

Edição: Nicolau Soares