Adeus ao rei

Em Maradona, Pelé teve seu único rival (mais ou menos) sério

Entre afagos e patadas, um foi o espelho do outro

Brasil de Fato | São Paulo (SP) | |
O primeiro encontro entre os dois, em 1979 - Reprodução

Quem é o maior jogador de futebol de toda a história? Em qualquer parte do mundo, desde meados do século passado, a resposta óbvia, praticamente imediata, é Pelé. Há décadas, no entanto, o único nome que conseguiu ser levado a sério como concorrente foi o de Diego Armando Maradona.

A relação entre eles com frequência foi conturbada. Entre afagos e ofensas, os dois passaram anos se observando de perto, como que medindo o único rival que, tanto um como o outro, considerassem seriamente — embora em público, muitas vezes se mostrassem indignados com tal comparação.

Quis o destino, entretanto, que a picuinha no andar mais alto do panteão futebolístico tivesse final feliz. Quando Maradona morreu, em 2020, Pelé publicou um texto para Diego tão bonito como qualquer de seus maiores gols: 

Já se passaram sete dias desde que você partiu. Muitas pessoas adoravam nos comparar durante toda a vida. Você foi um gênio que encantou o mundo. Um mágico com a bola nos pés. Uma verdadeira lenda. Mas acima disso tudo, para mim, você sempre será um grande amigo, com um coração maior ainda. ⠀

Hoje, eu sei que o mundo seria muito melhor se pudéssemos comparar menos uns aos outros e passássemos a admirar mais uns aos outros. Por isso, quero dizer que você é incomparável. 

A sua trajetória foi marcada pela honestidade. Você sempre declarou seus amores e desamores aos quatro ventos. E com esse seu jeito particular, ensina que temos que amar e dizer “eu te amo” muito mais vezes. Sua partida rápida não me deixou dizer, então apenas escrevo: Eu te amo, Diego. ⠀

Meu grande amigo, muito obrigado por toda a nossa jornada. Um dia, lá no céu, vamos jogar juntos no mesmo time. E vai ser a primeira vez que eu vou dar socos no ar sem estar comemorando um gol, mas sim, por poder te dar mais um abraço.

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Uma publicação compartilhada por Pelé (@pele)

 

Mas nem sempre a relação foi assim, fofa. 

Maradona começou a ser comparado a Pelé ainda adolescente, no final da década de 1970. A foto acima, do post de Pelé, foi tirada em 79 no primeiro encontro entre os dois, promovido por uma revista argentina. Naquele mesmo ano, Diego levaria seu país a ser  campeão Mundial sub-20, se tornando herói nacional.

:: "Pelé sempre foi vítima de racismo", diz jornalista Paulo Cesar Vasconcellos ::

Ganhar como ganhou a Copa de  86 foi o bastante para convencer muita gente de que Maradona seria o maior gênio da história do futebol — especialmente na Argentina e em Nápoles, onde fazia milagres semanalmente para o pequeno time do sul da Itália — mas irritou Pelé.

Á época, o Rei rebateu qualquer comparação, dizendo que ele seria um jogador completo e Diego só jogava com a perna esquerda. Mais: sacaneou Maradona dizendo que seu maior gol havia sido com a mão. 

Nos anos 90, Pelé tentou trazer Maradona para o Santos, sem sucesso. Em sua autobiografia lançada no ano 2000, Maradona escreveu "Quando tivemos a chance de fazer negócios juntos, nos chocávamos demais. Bastava um ver o outro para saírem fagulhas". Naquele mesmo ano, Diego fez uma série de declarações ofensivas sobre a sexualidade do rei, que preferiu não responder, já que Maradona estaria "doente". Era o auge de sua dependência de cocaína. 

E teve mais confusão naquele ano. Ingenuamente, a Fifa abriu votação pela internet para escolher o maior craque do século 20. Maradona ganhou com mais da metade dos votos — graças a jovens fãs internautas que não haviam visto Pelé jogar —, mas a entidade não reconheceu o resultado e acabou dando o prêmio para Pelé. Foi a vez de Maradona se indignar e se negar a dividir a honra. 

Quando teve seu programa de TV, em 2005, Maradona fez questão de convidar Pelé. Na entrevista é possível ver os dois rivais relaxados, envoltos em aura de admiração mútua. E, o momento mais antológico acontece quando os dois gênios resolvem brincar de cabecear: 

Água e vinho, Apolo e Dionísio. Vitassay e cocaína. Os dois não poderiam ser mais diferentes. Pelé, o rei da bola e da diplomacia. Maradona conseguiu ser expulso do Vaticano por arrumar briga com o papa. O brasileiro irradiando a calma serena de quem sabe ser o melhor. O argentino, a paixão desesperada de quem nunca conseguiu ser morno. Espelhos perfeitos da paixão chamada futebol.  Os únicos rivais para o posto de maior de todos os tempos. 

Bem, pelo menos até um tal de Lionel Messi conquistar a Copa do Mundo, complicando ainda mais a trama. Mas essa é uma questão a ser resolvida nas próximas décadas.

Leia também: O milésimo gol de Pelé, uma saga

Edição: Glauco Faria