Revolta

Para entender o atual momento da crise no Haiti

A proposta de criação da força de intervenção foi uma resposta ao pedido formal do atual presidente haitiano

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Manifestante protesta em Porto Príncipe, capital do Haiti; país enfrenta grave crise - Richard Pierrin / AFP

Nos últimos meses, o Haiti passou a ocupar novamente um lugar de destaque nos principais jornais do Brasil e do mundo – mesmo que breve. A intensificação da crise humanitária no país e a possibilidade de uma intervenção militar internacional, sob respaldo da ONU, colocou o drama haitiano dentre os principais temas da política internacional, principalmente quando consideramos as relações dos EUA com seu entorno regional – e, com isso, com o Brasil. A eleição de Lula também reacendeu a questão haitiana: foi durante seu primeiro governo, em 2004, que o Brasil decidiu participar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do país, tornando aquele engajamento um importante meio de projeção da política externa brasileira e uma plataforma significativa de atuação internacional dos militares, com conexões com a política de segurança pública adotada no Rio de Janeiro. Para entendermos melhor o atual momento da conjuntura, as possibilidades de atuação e como a crise haitiana se desdobrou, é preciso observar atentamente os últimos principais acontecimentos.

Em outubro, os EUA propuseram, junto com o México, duas resoluções no Conselho de Segurança da ONU. A primeira, aprovada, estabeleceu um regime de sanções multilaterais contra indivíduos, instituições ou empresas tidos como associados às gangues armadas haitianas e responsáveis direta ou indiretamente por ações violentas que ameaçam a paz, segurança e estabilidade do país. Já a segunda resolução, seguindo uma posição aventada pela República Dominicana desde junho de 2022, visava criar uma força de intervenção militar e policial, mas sua deliberação foi suspensa por tempo indefinido após Rússia e China manifestarem resistência. Fato importante no caso da intervenção é a recusa dos próprios EUA em participar da missão, posição manifestada, inclusive, por lideranças militares norte-americanas. No entanto, mesmo que os EUA não queiram participar diretamente da intervenção, o governo norte-americano tem buscado convencer os governos de outros países da região, como Canadá e Brasil, a liderarem a operação. Um caminho semelhante àquele adotado em 2004, quando se iniciou a Minustah.

A proposta de criação da força de intervenção foi uma resposta ao pedido formal do atual presidente e primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, que se encontra em posição cada vez mais enfraquecida politicamente pelo crescimento da oposição armada e desarmada e pelo aprofundamento da crise humanitária e institucional no país. Desde o assassinato do então presidente Jovenel Moïse em julho de 2021, os atos de violência cometidos pelas gangues urbanas em disputas pelo controle de territórios e de rotas essenciais para o escoamento de produtos no país têm aumentado expressivamente, principalmente na capital, Porto Príncipe. De acordo com Ulrika Richardson, coordenadora de assuntos humanitárias da ONU no Haiti, atualmente cerca de 60% da cidade está sob domínio destas gangues armadas.

Fato recente mais significativo e que nos ajuda a entender o timing do pedido de Henry foi o controle, entre setembro e novembro, do maior terminal portuário do país por uma união de gangues chamada “G9 e aliados”, liderada pelo ex-policial Jimmy “Barbecue” Cherizier – que aparentemente mantinha vínculos com o presidente Moïse. O terminal de Varreux é responsável por armazenar boa parte do combustível utilizado no Haiti, e durante o bloqueio o fornecimento de energia para o provimento de serviços públicos essenciais, como hospitais, escolas, e sistemas de saneamento básico, foi fortemente afetado. A ocupação do terminal ocorreu logo após Henry anunciar em setembro a retirada de subsídios aos combustíveis, em meio a uma escalada das manifestações de oposição e intensificação da violência armada no país ao longo de 2022, impulsionada também pela alta global de preços de combustíveis e alimentos causada pela guerra entre Rússia e Ucrânia.

O pedido de Henry ao Conselho de Segurança da ONU também veio poucos dias após o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, ter manifestado apoio a que o Haiti solicitasse urgentemente ajuda internacional e “determinasse as características da força internacional de segurança” que iria intervir no país. Além do apoio expresso dos secretários-gerais da OEA e da ONU, dos governos dos EUA, do México e da República Dominicana, o gesto também foi visto favoravelmente por parte de associações que podemos dizer representar a oligarquia que governa o Haiti: Associação das Indústrias do Haiti, Associação Turística do Haiti, Câmara de Comércio e Indústria do Haiti, Câmara Americana de Comércio no Haiti e Câmara de Comércio e Indústria Haitiano-Canadense. Para a oposição, no entanto, trata-se de um último gesto de desespero para que Henry se mantenha no poder. Além da crise social e econômica pela qual passa o Haiti, o sistema político semipresidencialista do país também se encontra em ruínas devido à recorrente postergação da realização de eleições. O mandato de toda a Câmara terminou em 2020, sem que se tivesse novos representantes eleitos, o parlamento se encontra praticamente inexistente e Henry, que também já deveria ter deixado o cargo, atua por meio de decretos. Outro dado importante é que o que resta do Senado, com apenas 10 de seus 30 membros, manifestou contrariedade à realização de uma intervenção internacional.

Do lado dos EUA, os movimentos pela intervenção no Haiti não são novidades do atual momento da conjuntura. Desde 2019, grupos que acham sua expressão em jornais como New York Times e Washington Post têm defendido recorrentemente uma intervenção no país como única forma de solução da sua crise – que afeta a política interna nos EUA principalmente devido ao influxo de refugiados para Miami. Em setembro de 2021, o diplomata norte-americano Daniel Foote adquiriu notoriedade ao deixar o cargo de enviado especial dos EUA ao Haiti devido a críticas à política migratória de repatriação forçada por parte do governo Biden. Em sua carta, Foote também fez críticas ao reconhecimento e apoio que o governo norte-americano tem oferecido a Henry. Recentemente, com o aprofundamento da crise haitiana, o diplomata tem apontado que os EUA têm apenas duas opções para o país: aumentar o engajamento com o treinamento da Polícia Nacional Haitiana para conter o aumento do controle de territórios e a violência praticada pelas gangues ou enviar dezenas de milhares de tropas em algum momento no futuro próximo.

Por enquanto, a posição tomada por EUA e Canadá se apoia no uso de sanções contra membros da elite política e econômica haitiana, tidos como ligados a graves violações de direitos humanos, embora uma intervenção armada internacional não esteja completamente descartada.  Atualmente, a lista de pessoas sancionadas pelo Departamento do Tesouro dos EUA é formada por lideranças políticas, como o atual presidente do Senado haitiano Joseph Lambert, o ex-presidente do Senado Youri Latortue, o senador Rony Célestin, e o ex-senador Richard Fourcand, além de Jimmy Cherizier, Fednel Monchery e Joseph Duplan, tidos como responsáveis pelo massacre de La Saline em 2018 e sancionados desde 2020. Do lado canadense, além dos sancionados pelos EUA (com exceção de Richard Fourcand), estão também na lista o ex-senador Herve Foucard, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Gary Bodeau, o ex-presidente Michel Martelly, e os antigos primeiros-ministros Laurent Lamonthe e Jean Henry Ceant. Recentemente o Canadá passou sancionar membros da elite econômica haitiana, como Gilbert Bigio, um dos homens mais ricos do Haiti, além de Reynold Deeb e Sherif Abdallah. Por fim, a ONU está montando um painel de experts para decidir quais haitianos irão compor a lista de sanções da organização.

A retomada do porto de Varreux por forças policiais no início de novembro diminuiu o ímpeto de uma intervenção internacional no Haiti, embora ainda seja improvável que esta opção esteja completamente riscada das listas de possíveis ações promovidas pelo governo dos EUA. Recentemente, o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau não descartou a possibilidade da intervenção, declarando que estão buscando o engajamento de países do Sul para a ação.  Contudo, ainda em outubro, durante a campanha presidencial no Brasil, o Grupo de Puebla, espaço político formado por lideranças de esquerda latino-americanas, emitiu uma importante declaração criticando a posição de Almagro na OEA, na qual assinaram Celso Amorim e Aloizio Mercadante. A declaração do Grupo também reconheceu o papel das frequentes ingerências externas na recorrência das crises no Haiti e considerou urgente pensar alternativas a uma intervenção militar no país.

De todo modo, o que as experiências passadas nos mostram, considerando que o Haiti tem passado constantemente por intervenções militares estrangeiras desde 1994, é que elas têm o potencial de serem vistas por “empresários da segurança” como uma nova fórmula de pacificação e estabilização, ou um novo case de sucesso. Certamente, uma ação coordenada pela superpotência irá rapidamente conter a atuação dos grupos armados urbanos no curto prazo e enquanto a operação internacional durar. Mas, como disse Anthony Lake, conselheiro do presidente Clinton durante a intervenção de 1994: a intervenção dos EUA não iria garantir que, no longo prazo, o Haiti escapasse da sua trágica história. No caso dos EUA, Lake, no entanto, buscou tranquilizar o presidente norte-americano, preocupado com as consequências políticas da sua ação: “é provável que qualquer reincidência ocorra gradualmente e bem depois de nossa saída”.