Entrevista

Teixeira 'remonta' pasta do Desenvolvimento Agrário em meio a seca no RS e conflitos no PA

Agenda focada na produção de alimentos, no combate à fome e no fortalecimento de programas como o PAA está na rota

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Deputado Paulo Teixeira (PT) é autor do PL 2184/20, que propõe que lucro contábil do BC seja destinado a ações de combate ao coronavírus - EVARISTO SA / AFP

Enquanto o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dá os seus primeiros passos em 2023, o recém-recriado Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) analisa de perto o conjunto de perdas registradas nas políticas da agricultura familiar desde maio de 2016, quando a pasta foi extinta pelo então governo Temer, para traçar detalhes da rota que será percorrida adiante.

O ministro Paulo Teixeira afirma que o MDA está em fase de "remontagem" e aponta para o combate à fome e à violência no campo como algumas das prioridades já colocadas no horizonte da pasta. Ele prevê para o início de fevereiro a entrega a Lula de um plano para os primeiros cem dias de governo.

Em entrevista exclusiva concedida ao Brasil de Fato, o chefe da pasta mencionou alguns detalhes do percurso que já vem sendo delineado, como é o caso de uma ação interministerial para combater a seca que assola o Rio Grande do Sul. Teixeira também vislumbra alterações no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), de forma que a política conceda mais crédito rural a pequenos produtores, e a recomposição do orçamento para a reforma agrária em 2024. Para 2023, o valor deixado pela gestão Bolsonaro é irrisório – apenas cerca de R$ 2,5 milhões para aquisição de terras.  

:: Paulo Teixeira assume Desenvolvimento Agrário com papel estratégico no combate à fome ::

"O desafio é grande e o país, maior ainda", afirma o ministro, ao citar também a necessidade de fortalecimento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Confira a seguir a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato – Com a volta do MDA, vocês tiveram que se debruçar sobre a situação atual das políticas voltadas à agricultura familiar, que vinham sendo sufocadas nos últimos anos. Vocês receberam um relatório produzido pelo núcleo de transição a respeito da área de Desenvolvimento Agrário, mas também já tiveram algumas semanas da gestão para ver mais de perto os problemas acumulados nesse último período. Qual o diagnóstico inicial deste primeiro mês de governo em relação à agricultura familiar?  

Paulo Teixeira - Houve um abandono das políticas para a agricultura familiar, um abandono do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que é um programa de fortalecimento da agricultura familiar, um programa bem-sucedido. O Brasil tinha virado um exemplo para o mundo a partir do PAA para o combate à fome. E [houve] um enfraquecimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que também é tido como exemplo para o combate à fome, a alimentação adequada das nossas crianças por meio dos recursos do Ministério da Educação, que implica um piso de gastos de 30% dos recursos da merenda escolar com a agricultura familiar. Houve um abandono total dessa política.

A agricultura familiar hoje não chega a esse patamar de 30%. E também [houve] o abandono das políticas de estímulo, como a das compras públicas, que tinham sido aprovadas já desde o governo Dilma Rousseff. Então, o que nós vimos é uma diminuição da produção de alimentos e um encarecimento dos alimentos no país. E, também em consequência desse abandono e por outras razões, [houve] o ressurgimento da fome no Brasil.

Então, [houve] o enfraquecimento da agricultura familiar, com a diminuição da produção de alimentos e, consequentemente, inflação de alimentos e a volta fome pro nosso país. Eu acho que foi isso que nós vimos nesses quatro últimos anos e é o que estamos tentando reverter. 

O governo tem falado muito sobre o combate à fome. O senhor já tomou alguma medida sobre o assunto neste primeiro mês? E o que pretende fazer nos próximos meses como primeiras ações pra este momento de emergência social? 

Em primeiro lugar, nós tivemos que remontar esse ministério e, neste primeiro mês, o nosso esforço maior foi pela remontagem do ministério e da sua capacidade de dar respostas. Então, nós tivemos que trazer de volta inúmeros servidores que aqui já estiveram em outros governos e tinham ido embora, em função da extinção do ministério. Estamos, então, remontando.

Este primeiro mês também, além da escolha dos dirigentes, não só do ministério como do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], cujos dirigentes já escolhemos e se está esperando a homologação desses nomes, mas também na Conab e na Anater. Nós também promovemos diálogos com organismos internacionais. Eu estive com o diretor da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] para a América Latina, estive com o diretor da FAO para o Brasil, e tivemos também com o Ica [Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura], que é o órgão que funciona ao nível de América Latina para a agricultura.

Aqui no Brasil, nós dialogamos com todos os movimentos que trabalham o tema da agricultura familiar. E, além de dialogar com eles, nós, num trabalho interministerial, estamos entregando para a Presidência da República o que será o plano de cem dias deste ministério. Ao mesmo tempo, nós nos deparamos com questões emergenciais. A primeira delas é que eu já fiz duas audiências com trabalhadores rurais, pequenos agricultores do Rio Grade do Sul sobre o tema da seca.  

E para essa seca nós já temos uma proposta, que será discutida com a Casa Civil. Nós pedimos para a Casa Civil chamar uma reunião interministerial juntamente com Ministério da Agricultura, Ministério da Fazenda, Ministério do Desenvolvimento Social, Ministério do Desenvolvimento Regional para o enfrentamento à seca no Rio Grande do Sul.

E o segundo tema é que nós tivemos aqui a Human Rights Watch, entidade internacional que nos trouxe eventos de violência no campo com morte nos últimos quatro anos no Sul do Pará. Nós, então, já pedimos pra Casa Civil a realização de uma reunião interministerial para enfrentar o tema da violência no campo. Então, esses 27 dias que se completam hoje foram muito intensos pra estruturar os ministérios, suas políticas, construir um plano de cem dias, articulá-lo com os demais ministérios, enfrentar temas muito contundentes como os temas da fome, da seca e da violência no campo.

Falando um pouco sobre os programas, o Pronaf é um programa muito valorizado pelos movimentos do campo, mas há uma identificação de que, da forma como existe hoje, ele acaba priorizando os grandes produtores em detrimento dos de menor porte. Essa desigualdade existe inclusive no aspecto regional. O Nordeste tem mais de 50% dos camponeses brasileiros, mas recebe apenas 14% dos recursos do crédito rural. O senhor pretende fazer algum redirecionamento em relação a isso? 

O que está acontecendo é que o Pronaf, que é um financiamento muito virtuoso, hoje tem dois aspectos sobre os quais nós temos que refletir. O primeiro é que o Pronaf deixou de financiar a comida, o alimento, e está financiando mais a produção de commodities, da soja, e nós temos que, sem abandonar essa produção, estimular a produção de alimentos. Isso nós precisamos retomar.  

E o segundo lugar, talvez, pelas dificuldades econômicas, um grande número de agricultores, e estes em maior dificuldade, não estão conseguindo acessar o Pronaf porque têm algum tipo de dívida bancária, algum tipo de dívida que gera problemas cadastrais. Então, estamos em diálogo com o Ministério da Fazenda pra ver, de um lado, como é que faz esse programa em que as pessoas possam cadastrar novamente, tornar-se positivadas diante do cadastro de devedores, e o segundo aspecto é como construir um fundo de aval que vai ajudar que esses agricultores novamente tenham acesso ao Pronaf.

Nós precisamos agora resolver rapidamente esse tema, tanto da distorção do Pronaf abandonando a produção de alimentos como também esse desequilíbrio que faz com que regiões importantes como a do Nordeste tenham um menor volume de recursos, ainda que tenham um grande número de contratos. 

Olhando para a pauta da reforma agrária, o orçamento que o governo Bolsonaro deixou para a área é irrisório. Estão previstos menos de R$ 2,5 milhões para a aquisição de terras, por exemplo, que envolve uma série de etapas. A Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) aponta que essa verba só daria para custear água, energia, limpeza e segurança patrimonial. E o desafio é muito grande porque a reforma ficou praticamente paralisada durante alguns anos. O senhor tem algum plano para tentar recompor esse orçamento?  

Em primeiro lugar, o governo passado não adquiriu 1m² de terra. Eles abandonaram todos os processos que estavam em curso de desapropriação pelo descumprimento da função social da propriedade. Eles abandonaram, não fizeram uma aquisição e nos deixaram um orçamento pífio para esse objetivo. O próximo passo que nós temos que dar é de uma política de adjudicação [tipo de ato de expropriação] de novas propriedades, adjudicação diante daqueles proprietários que devam impostos ou estejam inadimplentes com os seus financiamentos e, por essa razão, eu acho que muitas dessas propriedades possam ser adjudicadas para fins de reforma agrária.

Seria uma forma de fazer caixa...

Seria uma maneira de aquisição de terra que não fosse pelo mecanismo tradicional de desapropriação para fins de reforma agrária, que às vezes também demora muito tempo. Esse mecanismo da adjudicação é um mecanismo também efetivo para aquisição de terras pra destiná-las para a reforma agrária.  

O Incra praticamente abandonou nos últimos anos o combate à grilagem de terras. Foi muito criticado com relação a isso, inclusive. Qual o seu plano para a reestruturação do Incra no que se refere a isso?

O Incra voltará a exercer um papel que lhe cabe no território brasileiro. É um instituto nacional de colonização e reforma agrária, então, de um lado, ele tem que desempenhar um papel importante no desenvolvimento dos assentamentos, no amadurecimento desses assentamentos para que eles produzam e sejam regularizados, recebam seus títulos. E, por outro lado, [precisa] voltar a arrecadar terras para fins de reforma agrária e incidir sobre conflitos no campo para evitar que esses conflitos possam transbordar para questões de conflitos maiores. Acho que este deve ser o nosso objetivo: fortalecer o Incra.  

O Incra é uma instituição que tem muita capilaridade, muita presença no território nacional, ainda que em muitos lugares os escritórios estejam muito abandonados. Nós vamos fazer uma política de recuperação. Tudo isso depende de construir um orçamento para o Incra e para o MDA para o ano de 2024, já que para 2023 nós recebemos esse orçamento aí, com pouca capacidade de alterá-lo. É por essa razão que nós, então, devemos fazer um trabalho de fortalecer o orçamento do Incra. Não foi possível em 2023, mas isso é debate que faremos com o Ministério da Fazenda para construir um bom orçamento para 2024.

O governo tem alguma meta de assentamentos de famílias?

Ainda não. É cedo para colocar uma meta de novos assentamentos em função, digamos assim, da pobreza do orçamento. O orçamento não permite. Você mesma me trouxe os números do orçamento, aprofundando a minha depressão (risos). Você trouxe os números para me deixar triste, mas o que nós temos que fazer é, apesar dos números que você trouxe, temos que pensar em lutar por um bom orçamento pra 2024.  

O senhor disse, ao assumir o cargo, que pretende manter o que chamou de "amizade incômoda" com movimentos populares. Esses mesmos movimentos têm, em geral, reservas à influência da ala ruralista nas pautas da agricultura familiar. Como o senhor pretende gerenciar isso no âmbito da Conab, por exemplo, cuja gestão tem sido disputada pelo ministro da Agricultura, que fala em "gestão compartilhada"?  

Eu acho que a definição sobre a Conab já foi feita no decreto presidencial em que a Conab foi subordinada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário. Essa questão já está pacificada e todas as questões, todos os papéis que a Conab puder desenvolver para a agricultura empresarial, o chamado "agronegócio", ela vai fazer. Nós não queremos apartá-la de um papel maior. A Agricultura como um todo terá na Conab uma empresa que vai cumprir o seu papel de fortalecimento da agricultura, por isso nós vamos atender às demandas do Ministério da Agricultura sem que com isso a Conab deixe de ficar subordinada a este ministério.


Paulo Teixeira (à esq.) e Edgar Pretto (à direita) durante coletiva de imprensa no início de janeiro no recém-recriado MDA / MDA/Divulgação

O presidente indicado pelo senhor para assumir a Conab, Edegar Pretto, foi apresentado publicamente no último dia 6, mas ainda não foi efetivado no cargo, e inclusive o nome dele precisa passar pelo conselho administrativo da Conab, cujos membros ainda são os mesmos indicados pelo Mapa do governo Bolsonaro. Essa demora para a efetivação do Edegar tem relação com intenção do MDA em trocar primeiro os membros do conselho, até para evitar barreiras que impeçam essa nomeação? 

É natural que nessas novas gestões das empresas você tenha que modificar o conselho de administração para se nomear a direção. Então, a direção da Conab e do Incra espero eu que nesta semana já estejam resolvidas.


Indicação de Edegar Pretto (à dir.) para assumir Conab partiu de Lula (à esq.) e se insere em contexto de retomada das políticas públicas agrárias voltadas à agricultura familiar / Stuckert/Divulgação

O MDA, mesmo que não tenha uma grande estrutura, ficou com um tamanho razoável porque inclui Incra, Anater, Conab, Ceagesp e Ceasa de Minas Gerais. Essas últimas, inclusive, estavam na cartilha de privatizações do governo anterior. Como é que o senhor pretende conduzir essa guinada dessas empresas agora? A Ceagesp, por exemplo, é a maior companhia de abastecimento da América Latina.

Nós vamos pedir ao Ministério da Fazenda para retirar a Conab e a Ceagesp do plano de privatização porque são empresas que cumprem um papel fundamental e, no caso do Ceagesp, é empresa lucrativa. Então, estamos pedindo pra tirar do plano de privatização e fazer uma gestão que possa aumentar o resultado positivo dessas três empresas, que são Conab, Ceagesp e Ceasa Minas.

O senhor mencionou o plano dos cem primeiros dias de governo. Quando pretende entregar isso ao presidente Lula?

Ainda não foi entregue porque aqui estamos em fase de apresentação. [Isso] ainda não foi amadurecido no plano do governo. Estamos ainda nos 30 primeiros dias. Acho que no começo de fevereiro esse plano será entregue.

O senhor poderia nos antecipar algo aqui sobre o que está sendo pensado para esse horizonte de curto prazo?

A curto prazo é ativar junto com o MDS o PAA, ativar junto à Educação o PNAE, para que tenha o patamar de 30% [de compras] da agricultura familiar, e ativar um plano de compras públicas para que os órgãos públicos comprem da agricultura familiar. Nós temos que resolver esse problema cadastral, que também acho que na próxima semana estará resolvido, que é a transição da DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf] para o CAF [Cadastro Nacional da Agricultura Familiar]. Vamos resolver nas próximas semanas também.

Nós queremos desenvolver um plano de agricultura urbana baseado nas hortas comunitárias. Nessa parceria com o MDS das hortas você também tem as cozinhas e restaurantes comunitários, que acho que são centros de ação para o combate à fome no Brasil. O desafio é grande e o país maior ainda. Eu olho para o mapa e vejo que ele é um continente. Nesse continente, nós temos um enorme desafio. 

Edição: Thalita Pires