comida ou guerra?

No governo Bolsonaro, ex-comandante da Rota militarizou Ceagesp com 22 PMs em cargos técnicos

Durante presidência do coronel Mello Araújo, trabalhadores teriam sido forçados a pedir demissão sob ameaça de morte

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Hoje, a Ceagesp recebe, em média, no Entreposto Terminal São Paulo (ETSP), 8.280 toneladas por dia, de frutas, legumes, verduras, flores, pescados, entre outros produtos, produzidos no Brasil ou fora do país
Hoje, a Ceagesp recebe, em média, no Entreposto Terminal São Paulo (ETSP), 8.280 toneladas por dia, de frutas, legumes, verduras, flores, pescados, entre outros produtos, produzidos no Brasil ou fora do país - Divulgação

Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), foi amplamente militarizada. Dos 26 cargos comissionados para empregados sem vínculo com a Administração Pública disponíveis na Companhia, 22 foram ocupados por policiais militares.

As nomeações aconteceram durante a presidência do coronel da reserva Ricardo Nascimento de Mello Araújo, ex-comandante da tropa das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), nomeado para o cargo por Bolsonaro em 23 de outubro de 2020. A informação foi obtida pelo Brasil de Fato via Lei de Acesso à Informação (LAI).

Dos 22 policiais militares, oito estavam lotados no gabinete da presidência, divididos entre os cargos de assistente executivo e assessor técnico. Todos pediram demissão com Mello Araújo no dia 6 de janeiro deste ano. A atual presidência é ocupada interinamente por Hamilton Ribeiro Mota, ex-prefeito de Jacareí, que aguarda o nome definitivo, que será escolhido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

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Além dos PMs, Mello Araújo nomeou o ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, Antônio Ferreira Pinto, para o cargo de diretor de operações, com salário de R$ 30.530. A contratação ocorreu em 4 de janeiro de 2021, dois meses após o ex-comandante da Rota assumir presidência da Ceagesp.

Dos 23 policiais nomeados na Ceagesp, incluindo o coronel Ricardo Nascimento de Mello Araújo, 19 são da reserva e quatro não estão mais nos quadros da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Assistente executivo da Presidência, Renato Nobile é ex-policial da Rota e, em 2019, após um sargento da Polícia militar fardado pedir seu namorado em casamento, publicou um texto em seu perfil fazendo ameaças ao noivo.

"Desgraçado, canalha e safado. Desonra para a minha corporação. Esse tinha que morrer na pedrada", afirmou Nobile, primeiro policial militar promovido ao cargo na Ceagesp por Mello Araújo, em 3 de novembro de 2020, com o salário de R$ 9.675.

Confira no final da reportagem a relação com todos os policiais militares nomeados na Ceagep pelo ex-presidente Mello Araújo entre 3 de novembro de 2020 e 12 de maio de 2022.

A presidência

Bolsonaro surpreendeu quando anunciou que Mello Araújo como presidente da Ceagesp. Sem qualquer relação, experiência ou conhecimento técnico sobre o entreposto, o ex-comandante da Rota passou a comandar uma complexa engrenagem de 585 trabalhadores em sua administração direta e que abriga, ainda, 2.148 permissionários atacadistas, 249 permissionários varejistas, 362 ambulantes e 3.499 carregadores autônomos.

Em seu discurso de posse, Mello Araújo fez uma promessa específica. "Essa grande empresa de reconhecimento internacional, com segundo maior giro financeiro do país, que só perde para a Bolsa de Valores, vai ser privatizada", afirmou o ex-comandante da Rota.

Quase três anos depois, em 19 de janeiro deste ano, Paulo Teixeira, ministro do Desenvolvimento Agrário (MDA), pasta que passou a abrigar a Ceagesp, anunciou que o entreposto sairá do Plano Nacional de Desestatização, onde estava desde 2019.

Antes da Ceagesp, Mello Araújo já havia tido destaque na imprensa, não exatamente por seus bons serviços como policial. Em entrevista ao portal UOL, em 2017, o ex-comandante da Rota afirmou que recomendava aos seus comandados que abordassem os cidadãos da periferia e de bairros ricos de forma diferente.

"É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele (policial) abordar tem que ser diferente. Se ele for abordar uma pessoa na periferia da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins, ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado", afirmou Mello Araújo.

"Da mesma forma, se eu coloco um policial da periferia para lidar, falar com a mesma forma, com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando", concluiu o ex-presidente da Ceagesp.

O policial e o gestor

O clima de medo frequentou os corredores e quiosques da Ceagesp durante o período da presidência de Mello Araújo. Trabalhadores relataram ao Brasil de Fato que os policiais militares andavam armados na sede do entreposto, na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, e que ameaçavam os que discordavam da gestão do ex-comandante da Rota.

Um dos episódios de violência ocorreu em 4 fevereiro de 2022, quando Mello Araújo teria invadido a sede do Sindicato Trabalhadores em Centrais de Abastecimento de Alimentos do Estado de São Paulo (Sindbast), que fica dentro da Ceagesp desde 1986, com "seguranças armados que intimidavam os funcionários e diretores do sindicato."

O incidente, confirmado ao Brasil de Fato por um trabalhador do sindicato, foi exposto no site da entidade. "Na invasão, o presidente provocou aglomeração e não usava máscaras. Quando questionado sobre essa postura, disse que precisava falar e que a máscara o atrapalhava, demonstrando ignorância em relação aos equipamentos de prevenção à pandemia, sendo, ele próprio, um vetor de propagação do vírus."

Desde agosto de 2021, Mello Araújo tentava expulsar os sindicalistas da sede. Em nota de repúdio à medida, assinada por seis centrais sindicais e pelo Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), se tornou pública a tentativa do ex-comandante da Rota de forçar a demissão de um trabalhador com uso de violência.

"Temos travado batalhas praticamente diárias contra o autoritarismo criminoso do coronel, atual presidente da Ceagesp. Citamos, por exemplo, a perseguição que trabalhadores da Ceagesp vêm sofrendo, sendo até obrigados a se demitirem – sob coerção armada e violenta – em clara afronta às normas aprovadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como no caso de três trabalhadores, incluindo um dirigente sindical, que foram acusados, com 'provas' forjadas e já desmentidas, de roubo de energia elétrica", divulgaram as centrais.

Em entrevista à Folha de São Paulo, em agosto de 2021, o presidente do Sindbast, Enilson Simões de Moura, o Alemão, afirmou que foi ameaçado de morte pelos policiais militares da Ceagesp. O Brasil de Fato procurou o sindicalista para confirmar a informação, mas ele preferiu não comentar e disse que o processo está na Justiça, correndo em sigilo.

História

A Ceagesp foi criada em 1969 pelo governo de São Paulo, mas passou a ser controlada pela União em 1997, durante a gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Atualmente, está vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar. A companhia é a maior central de abastecimento da América Latina.

Hoje, a Ceagesp recebe, no Entreposto Terminal São Paulo (ETSP), uma média de 8.280 toneladas por dia, de frutas, legumes, verduras, flores, pescados, entre outros produtos, produzidos no Brasil e no exterior.

O faturamento anual da Ceagesp cresceu na última década. Em 2012, a companhia faturou R$ 80 milhões, sendo R$ 79,9 milhões em serviços prestados e R$ 62 mil em produtos vendidos.

Em 2022, o faturamento foi de R$ 152 milhões, distribuídos em R$ 1,3 milhões em venda de produtos e R$ 150 milhões em serviços prestados, de acordo com informações fornecidas pela Ceagesp.

Outro lado

O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar afirmou, em nota, que "as denúncias serão apuradas pelas autoridades competentes e os responsáveis punidos no rigor da lei". Ainda de acordo com a pasta, o atual governo "preza por relações de trabalho pautadas no respeito e na valorização das trabalhadoras e trabalhadores."

Também em nota, a Ceagesp respondeu. "A gestão anterior foi encerrada em 06 de janeiro de 2023, após renúncia coletiva da diretoria e da equipe de coronel Mello Araujo. Desde 1º de janeiro de 2023, após publicação do Decreto nº 11.338, pelo Governo Federal, a CEAGESP passou a compor a estrutura do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). Anteriormente, estava vinculada ao Ministério da Economia. Interinamente, em 09 de janeiro de 2023, o senhor Hamilton Ribeiro Mota foi oficializado ao cargo de diretor-presidente da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (CEAGESP)."

Todos os 22 policiais militares nomeados na Ceagesp:

Nome: Renato Nobile
Cargo: Assistente Executivo da Presidência
Salário: R$ 9.675

Nome: Rodrigo Manzzoni de Oliveira
Cargo: Gerente do Departamento de Engenharia e Manutenção
Salário: R$ 23.926

Nome: Danyel Laghi
Cargo: Gerente do Departamento dos Entrepostos do Interior
Salário: R$ 23.926

Nome: Carlos Augusto Almeida da Silva
Cargo: Gerente do Departamento de Entreposto da Capital
 Salário: R$ 23.926

Glauco Tsuneimatu
Diretor Administrativo e Financeiro
Salário: R$ 30.530

Nome: Rinaldo Matias da Silva
Cargo: Assistente Executivo da Presidência
Salário: R$ 15.347

Nome: Laudo Natel Iasulaitis
Cargo: Assessor Técnico da Presidência
Salário: R$ 15.347

Nome: Francisco Jose Deamo
Cargo: Assistente Executivo da Presidência
Salário: R$ 9.675

Nome: Jose Issa Junior
Cargo: Assistente Executivo da Presidência
Salário: R$ 9.675

Nome: Lauriano Elias Cezario
Cargo: Assistente Executivo da Presidência
Salário: R$ 7.682

Nome: Jorge Ferreira de Lima
Cargo: Assistente Executivo da Presidência
Salário: R$ 6.100

Nome: Edson Carlos da Silva
Cargo: Assistente Executivo da Diretoria
Salário:  R$ 7.682

Nome: Sergio Duraes
Cargo: Assistente Executivo da Diretoria
Salário: R$ 7.682

Nome: Sandro Keler Maronezi
Cargo: Gerente do Entreposto de Pescados de São Paulo
Salário: R$ 10.908

Nome: Carlos Tenorio de Almeda
Cargo: Coordenador da Coordenadoria de Integridade, Riscos e Conformidade
Salário: R$ 15.351

Nome: Alessandro Augusto Mendes Barreiro
Cargo: Assistente da Coordenadoria de Integridade, Riscos e Conformidade
Salário: R$ 7.682

Nome: Larissa Cristina Garcia Vogel
Cargo: Assistente da Coordenadoria de Integridade, Riscos e Conformidade
Salário: R$ 7.682

Nome: Idalmo Brugnoli
Cargo: Assistente Executivo da Presidência
 Salário: R$ 7.682

Nome: Jose Carlos de Lima
Cargo: Assistente Técnico da Diretoria
Salário: R$ 12.185

Nome: Edson dos Santos
Cargo: Assistente Executivo da Presidência
Salário: R$ 6.100

Nome: Claudio Pereira Silva
Cargo: Assistente Técnico da Diretoria Administrativa e Financeira
 Salário: R$ 6.100

Nome: Carlos Alves de Almeida
Cargo: Assistente Técnico da Diretoria Operacional
Salário: R$ 6.100

 

Edição: Thalita Pires