Análise

As Cozinhas Solidárias como política de combate à fome e à pobreza

Há um elemento primordial nesta forma de organização popular: a construção de redes comunitárias entre campo e cidade

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
As cozinhas solidárias funcionam organizadas por núcleos, onde os voluntários atuam preparando e entregando as marmitas - Foto: Maiara Rauber

Os últimos anos foram caracterizados por um cenário de generalização do empobrecimento de milhões de famílias de trabalhadores que foram atingidas pela quase completa ausência de programas e políticas sociais que garantissem condições mínimas para sua sobrevivência. O espalhamento da fome como expressão mais grave da pobreza no Brasil foi consequência de seis anos de redirecionamento do Estado para o atendimento de uma agenda política e econômica de acumulação de riquezas para aqueles que escolheram enriquecer ao custo da pobreza, da miséria, da fome, e muitas vezes – como ficou claro durante os períodos mais agudos da pandemia de Covid-19 – da vida de muitos milhares de nós.

Atravessado o período de maior tensão da transição governamental, soluções para reconstruir e reparar as vidas das famílias empobrecidas têm sido extraídas da sociedade civil para o campo governamental. Exemplo mais claro disso é o Projeto de Lei (PL), iniciativa do parlamentar Guilherme Boulos, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL-SP), para que as Cozinhas Solidárias sejam implementadas a nível nacional, enquanto um dos pilares dos programas sociais de combate à fome no país.  

Não é exagero afirmar que estamos olhando por uma janela histórica de oportunidades para efetivar formas de combate à pobreza que redesenhem programas e políticas sociais em diálogo com as demandas da sociedade e, principalmente, com a minoração da pobreza no longo prazo. Isto porquê estamos frente a um contexto e a uma conjuntura diferentes daquela do início dos anos 2000, quando muitos dos programas sociais que haviam suportado a saída do país do Mapa da Fome foram formulados e implementados com base nas experiências populares e institucionais dos anos de 1990.  

A janela que está aberta agora é uma que dá vista para um horizonte de experiências sociais redesenhadas por um ciclo de reformas que promoveu um tipo de desenvolvimento conectado aos Direitos Sociais à maioria da população: a exemplo do acesso ao emprego, à renda, à alimentação, à saúde e à educação. Os resultados eleitorais indicam que a memória social destas experiências, ao menos para a maioria da população, de alguma forma, segue enquanto um elemento central de expectativa de horizonte social no interior da democracia e em oposição – ainda que de forma tensionada – ao ultraneoliberalismo dos últimos quatro anos do governo do ex-presidente Jair M. Bolsonaro, do Partido Liberal, o PL.

As engenharias de urgência construídas a nível nacional pelos movimentos sociais do campo e da cidade, principalmente a partir de 2020, demonstraram a potência que a integração entre campo e cidade, em um circuito direcionado para atender às famílias de trabalhadores, pode adquirir na construção de formas mais sustentáveis, multisetoriais e de caminhos de acesso e fortalecimento de Direitos Sociais.  

O desafio que se coloca com a apresentação do PL é a construção de uma política pública que se oriente por experiências populares sem suprimi-las. A condição de fome é pauta central recente de movimentos populares que antes tinham suas principais bandeiras direcionadas à reforma agrária e à reforma urbana. Esta, assim como a con dição de pobreza, nunca deixou de existir plenamente, mas havia sido minorada pelo conjunto de políticas e programas sociais que foram desmanchados entre 2019 e 2022. A crescente violência no campo e urbana antes também minoradas – nunca extintas, pois são parte de um projeto de concentração de poder, terras e de segregação socioespacial – redirecionaram reivindicações historicamente consolidadas – pois, historicamente nunca resolvidas – para pautas que se mostraram mais urgentes, dentre elas, a condição de fome, especialmente a partir de 2020.

Cozinhas Solidárias, Cozinhas Comunitárias e Restaurantes Populares

Foi, em brevíssimo resumo, por este caminho e motivo que o projeto homônimo das Cozinhas Solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST, se tornaram o maior exemplo deste tipo de projeto popular a nível nacional. Com financiamento de editais públicos e doações da sociedade para a abertura das cozinhas e a compra de alimentos, milhares de militantes e voluntários das Cozinhas alcançaram cifras impressionantes de distribuição de alimentos em grande parte adquiridos diretamente de pequenos produtores, com destaque para o Movimento dos Pequenos Agricultores, o MPA, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST.  

Este seria o que podemos considerar um modelo exemplar de ação pois foi “testado” a nível nacional e apresentou resultados integrados, sustentáveis e positivos. Há um elemento primordial nesta experiência de organização popular que não se caracteriza pela entrega do alimento em si, mas pela construção de redes comunitárias e que integram campo e cidade, combatendo a pobreza de ponta a ponta enquanto viabiliza o Direito à Alimentação.  

Porém, quando analisamos o campo do social, é preciso considerar que a experiência de abertura de cozinhas coletivas para a distribuição de refeições tem seus momentos de aparição na história do Brasil contemporâneo, principalmente pelas mãos de associações de bairro e comunitárias. A experiência em si não é algo novo, e a forma como apareceu em diferentes momentos não tem semelhanças entre si, pois os motivos são diferentes. Da mesma forma, a distribuição de cestas básicas também não é uma novidade e sim uma constante, com seus picos de maior ou menor intensidade, e a própria abertura de Restaurantes Populares já se constitui uma política pública.    

Portanto, há uma diferenciação fundamental colocada entre Cozinhas Solidárias, Cozinhas Comunitárias e Restaurantes Populares. Confundir os termos é confundir não só as diferentes experiências sociais que nos informam sobre o que ocorre no país, mas também fechar a janela de oportunidades que foi aberta pela conjuntura política recente. 

As Cozinhas Solidárias possuem em comum com as Cozinhas Comunitárias a entrega gratuita de alimentos, ambas se diferenciam dos Restaurantes Populares que cobram pelas refeições. Porém, entre as Cozinhas Solidárias e as Comunitárias, não podemos perder de vista a existência do termo “solidariedade”, que remete a uma solidariedade de classe; ou seja, a um valor social e não a um valor individual que apela à nossa consciência enquanto indivíduo. A solidariedade enquanto um valor de classe nos lembra não só que estamos mais próximos dos nossos que estão nas filas das quentinhas do que parece, mas também que são nossas ações e expectativas coletivas que modelam a sociedade na qual vivemos. Na dimensão das Cozinhas Solidárias, este é um valor social que está localizado na própria experiência de formação, organização e mobilização dos movimentos sociais, sejam os de reforma agrária ou urbanos. Assim, a entrega da refeição não é o fim, mas o meio, inclusive para a construção do momento no qual a distribuição massiva de refeições não seja mais necessária pois, espera-se que em um futuro muito próximo as pessoas tenham recursos suficientes para não passar fome, e que as Cozinhas Solidárias sejam, por exemplo, pontos de convivência e acolhimento coletivos e pessoais.

A abertura e a presença das Cozinhas Solidárias têm demonstrado que a formação de redes comunitárias e entre o campo e a cidade são formas sustentáveis de ampliação da cidadania e de fortalecimento da democracia em uma escala menor, não porque menos importante, mas porque mais próxima do cotidiano, dos vizinhos e da presença de pessoas que são locais e que organizam as cozinhas e as tornam pontos de referência à população e ponte para a descoberta de direitos e o acesso a serviços públicos, consolidados ou a serem reivindicados.  

Por atingirem camadas da população que empobreceram em escala e ritmo brutal em período recente, as Cozinhas Solidárias, localizadas tanto em regiões centrais quanto em regiões consideradas periféricas, atendendo a um público difuso de trabalhadores, se tornam pontos de articulação para possíveis mudanças sociais cotidianas que podem se somar em escalas ampliadas pela reivindicação de demandas da população, constituindo um eixo entre Estado e sociedade mais plural, aberto e democrático, pois estão orientadas por um valor solidário que não se circunscreve ao valor – humanitário – da emergência da fome. Há o desenvolvimento de atividades para gestantes, de alfabetização, creches, acolhimento e a formação de hortas urbanas, indicando a possibilidade de remodelação dos espaços urbanos.  

Todas estas características, aqui mencionadas brevemente, estão contidas nos conceitos de Soberania Alimentar e de Segurança Alimentar, que são termos políticos e não somente técnicos, ou seja, dependem de condições sociais singulares para se realizarem. Dentre estas, está o próprio fazer da política pelos cidadãos. Isto passa pela articulação com a produção de pequenos agricultores, reposicionando a forma de produção, aquisição e consumo de alimentos pela população, para garantir que alimentos saudáveis estejam disponíveis respeitando características culturais, em quantidade disponível e segura. Ao mesmo tempo, com a previsão da aquisição de alimentos pelas Cozinhas Solidárias, os camponeses podem planejar sua produção, realizar a transição para uma produção sem veneno e se fixarem no campo.  

Por meio dos conceitos de Soberania e Segurança Alimentar, articulados na experiência das Cozinhas Solidárias, compreendemos, na prática, que o combate à fome caminha junto, mas é precedido pelo combate às relações sociais que geram a pobreza. Todos estes são valores sociais que dialogam com a Constituição de 1988 e suas qualidades democráticas.  

Por sua vez, as Cozinhas Comunitárias, em geral, são aquelas ligadas ao terceiro setor, a grupos comunitários, religiosos, associações de bairro, iniciativas de indivíduos não necessariamente organizados em um movimento social e assim por diante.  Podem apresentar diferentes orientações políticas, visões de mundo, motivos para serem abertas, serem alinhadas a valores democráticos, ou não, terem fundo empreendedor e/ou voluntarista. A entrega da refeição é a finalidade que as caracteriza, e pela própria diversidade de atores que as constituem, o mapeamento de um projeto de sociedade que expresse um valor comum se torna tarefa difícil.  

Sua atuação pode ser rápida, a existência de curto, médio ou longo prazo, pode estar ligada a ONGs já consolidadas que atuam também com a distribuição de cestas básicas, podem ter muitos ou poucos recursos, protocolos internos de seleção das famílias a serem atendidas, ou não. Podem adquirir alimentos de pequenos produtores eventualmente, ou o fazer de grandes redes empresariais de distribuição de alimentos. As Cozinhas Comunitárias cumprem um papel emergencial importante e se espalham com facilidade, funcionam em cozinhas domésticas, construídas, improvisadas, ou não, cedidas por instituições, ou alugadas a partir de um esforço conjunto de indivíduos. Não há constante em sua caracterização quando analisadas em um quadro ampliado. Atendem, em geral, parcelas populacionais definidas em acordo com seus próprios objetivos e que passam a ser consideradas seu público alvo, se localizam em regiões definidas com seu motivo de origem. Podem ou não ser fiscalizadas, ter controle de caixa, contar com o apoio de editais das esferas governamentais ou de ONGs.  

Há ainda, e por fim, a experiência institucionalizada dos Restaurantes Populares, que são implementados em municípios com mais de cem mil habitantes e localizados em regiões de grande movimentação diária de trabalhadores. Os Restaurantes Populares comercializam as refeições a preços módicos, atendem população diversa e sofreram com o desfinanciamento das políticas públicas dos últimos anos. Sua finalidade é servir a refeição, e as pessoas que trabalham em suas unidades são selecionadas pelo município ou estado. Alguns possuem certa burocracia de acesso à isenção para trabalhadores em diferentes condições, outros podem exigir apenas o pagamento da refeição. A regra varia de acordo com parcerias locais e com a disponibilidade de atendimento do município ou estado.    

Esta diferenciação é importante ao se debater sobre a formulação, extensão e durabilidade de uma política pública deste tipo, é a localização das diferenças que permite compreender as múltiplas experiências já existentes e a potencialidade de cada uma delas. O desafio da formulação institucional de um tipo de mobilização popular específico como o das cozinhas, coloca em perspectiva que no campo das políticas públicas brasileiras, não se trata apenas de unir diferentes experiências sociais e/ou institucionais. Mas de selecionar escolhas políticas que direcionaram um projeto de sociedade que, em partes, será construído com a implementação de determinada política.  

Formular a síntese de diferentes experiências, considerando suas peculiaridades, interesses e níveis de alcance, passará por eleger prioridades políticas e sociais, assim como o tipo de impacto nas relações sociais e interesses que são responsáveis pela geração de pobreza e, portanto, da fome.

Denise De Sordi é doutora em História Social, pesquisadora da FFLCH/USP e da COC/Fiocruz. É especialista em políticas e programas sociais e nas relações entre movimentos sociais e Estado no Brasil contemporâneo. Desde 2020 se dedica a pesquisas que analisam a emergência das Cozinhas Solidárias e comunitárias enquanto formas de mobilização social que têm revitalizado a esfera pública brasileira.  

Edição: Glauco Faria