Comunidade Guarani

Indígenas do litoral de SP relatam devastação da chuva e pedem ao STF urgência na demarcação

"A grande chuva deixou muita destruição e muitas feridas no útero da terra", diz Cristine Takuá, da TI Ribeirão Silveira

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Durante o temporal, houve um desbarrancamento ao lado da casa de reza, onde havia crianças dormindo - Cristine Takuá

Entre as milhares de pessoas afetadas pelo temporal que assolou o litoral norte paulista durante o carnaval, estão cerca de 600 indígenas do povo Guarani que vivem no território Ribeirão Silveira, entre Bertioga e São Sebastião. Salvaram suas vidas, mas viveram imenso estrago do ponto de vista material.  

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Além das casas e dos bens domésticos e pessoais, a escola e o único posto de saúde foram destruídos pela chuva que matou ao menos 65 pessoas em todo o litoral.

Na madrugada da "chuva grande" do último 19 de fevereiro, Cristine Takuá, professora indígena e moradora da aldeia conta que boa parte da comunidade estava concentrada na casa de reza, espaço sagrado do seu povo. "É a nossa verdadeira escola, onde a gente se cura, aprende, compartilha as boas e belas palavras com os nossos sonhos", explica. "Nesse momento, eu tive visões muito profundas das feridas no útero da terra. Do quanto a terra está machucada pelas ações humanas", diz.

"A chuva era incessante, muito forte, com raios, trovões. Aquele rodopio do vento. E no meio da madrugada a gente sentiu a terra dar uma tremida. E o barranco cedeu. Estávamos com várias crianças dormindo dentro da casa de reza naquele momento então foi muito assustador para nós", descreve. O deslizamento aconteceu a menos de dois metros da casa de reza. 

Em campanha para se reconstruir, a comunidade está coletando doações, em especial de alimentos, cobertores, eletrodomésticos, materiais de higiene pessoal e colchões. A Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização que articula coletivos do povo Guarani das regiões Sul e Sudeste, também disponibilizou um PIX para quem quiser fazer contribuições.  

:: Buscas por última vítima prosseguem em São Sebastião; já são 65 mortes confirmadas após chuvas ::

Impactos da não demarcação 

A Terra Indígena (TI) Ribeirão Silveira fica na Mata Atlântica, na fronteira entre os municípios de Bertioga (SP) e São Sebastião (SP) e, apesar de ser a mais antiga do litoral de São Paulo, está com o processo demarcatório estagnado.  

Diante da situação dramática vivida agora, a CGY apresentou uma nova petição para a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber, pedindo urgência na demarcação do território. No pedido, a organização indígena argumenta que a paralisação do processo piorou o impacto das enchentes. 

A situação instável, aponta a CGY, “impede a comunidade de se estruturar de maneira a mitigar os impactos de eventos climáticos extremos como esse, infelizmente cada vez mais frequentes, pois inibe a dispersão das famílias em toda a extensão de seu território de ocupação tradicional”. 

"A demarcação é extremamente importante para salvar vidas. Não só de quem mora dentro da aldeia, mas sim de todos os viventes que dependem da floresta, como os animais, que nós, indígenas, estamos acostumados a sempre estar junto", aponta Carlos Papa, liderança espiritual do território. 

Esperando uma canetada desde 2010  

Já foram finalizadas todas as etapas de estudos da TI Ribeirão Silveira, que teve a portaria declaratória publicada pelo Ministério da Justiça ainda em 2008. Falta só a assinatura do decreto presidencial.  

Em 2010, no entanto, não indígenas que se dizem proprietários de parte da terra tradicional impetraram um mandado de segurança com o objetivo de impedir a homologação da TI. Ellen Gracie, ministra do STF na época, atendeu o pedido em prejuízo da comunidade Guarani e, desde então, o processo está parado.  

"A gente não invadiu a terra de ninguém, porque nossa descendência é daqui mesmo. O branco que chegou até os indígenas", afirma o cacique da TI Ribeirão Silveira, Adolfo Werá Mirĩ. "E agora o branco quer que a gente prove na justiça que a gente é morador daqui. Mas nós somos daqui mesmo, como nossos antepassados", caracteriza.

Enquanto concedia a entrevista na tarde desta terça-feira (28), o cacique relatou, preocupado, que voltava a chover forte. 

Carlos Papa lembra que seus pais lutaram para que esse terra seja demarcada. "Meu pai e minha mãe não estão mais aqui entre nós. Mas a luta continua. E com certeza, se a sociedade olhar para a importância do meio ambiente e tiver preocupação com as mudanças climáticas, vai apoiar a importância da demarcação", defende. 

Agora, enquanto se reorganizam sobre um solo encharcado, os Guarani reforçam a urgência do caso, demandam ser recebidos como parte do processo e pedem a anulação da decisão anterior que impediu a homologação do território. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho