Rio de Janeiro

Impacto

Maioria das crianças com síndrome congênita da zika está fora das escolas na Baixada

Pesquisa aponta que ensino remoto foi um dos fatores que afastou as crianças da educação infantil na pandemia

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Pesquisa identificou fragilidade nos dados do Ministério da Saúde e na consolidação de estratégias intersetoriais da saúde, educação e assistência - Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil

Uma pesquisa inédita no Rio de Janeiro constatou que a maioria das crianças com deficiência múltipla em decorrência da síndrome congênita do zika vírus não frequentam escolas na Baixada Fluminense. Além das dificuldades socioeconômicas e de locomoção, o ensino remoto afastou as crianças da educação infantil durante a pandemia.

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O projeto da pesquisadora Márcia Denise Pletsch, do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (IM/UFRRJ), investiga a importância da escolarização no desenvolvimento dessas crianças desde 2018. Com isso, tem o objetivo de ampliar o acesso à educação inclusiva com ações em diversas frentes.

Iniciada durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), a pesquisa logo se deparou com a falta ou total ausência de informações atualizadas do Ministério da Saúde sobre a síndrome. O grupo então recorreu às bases de dados das secretarias municipais de assistência social e saúde para realizar um levantamento confiável e mais próximo da realidade local. 

“Durante o governo anterior, várias bases de dados pararam de ser alimentadas, uma delas foi o Boletim Epidemiológico onde a gente tinha atualização da síndrome congênita do zika vírus, das mães afetadas, casos confirmados, em avaliação. O dado mais confiável nesse momento histórico do Brasil é a base. Existe uma diferença grande entre os dados federais e os que os gestores locais têm”, afirma a professora Márcia Pletsch.

Nesse contexto, a coordenadora do grupo de pesquisa do Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional (ObEE/UFRRJ) considera que o cenário pode ser ainda pior. “Para se ter uma ideia, tem município que a assistência social tinha 54 crianças [com a síndrome do zika] no cadastro e só duas constavam matriculadas na escola”, exemplifica.

A primeira etapa da pesquisa acompanhou a rotina das famílias, prioritariamente constituídas por mulheres. Pletsch, que atua na área da educação inclusiva há 25 anos, explica que historicamente a questão da deficiência no Brasil é permeada por fatores como gênero e raça. Ainda mais no caso das deficiências provocadas pelo vírus da zika.

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“A predominância é de mulheres sozinhas, e aqui na Baixada a gente não pode esquecer também as dimensões de raça e classe. São mulheres negras, totalmente vulneráveis socialmente, pobres e sozinhas para cuidar desse filho e dos outros filhos”, pontua a professora da UFRRJ.

Como resultado da primeira fase de avaliação em domicílio, a pesquisa verificou o interesse das famílias de se comunicarem com as crianças não oralizadas. Surgiu então uma parceria com profissionais de outras instituições como PUC-Rio, UERJ e Fiocruz para desenvolver o aplicativo “ComuniZIKA”. As atividades do aplicativo foram criadas junto com as mães e trabalham a interação, o pensamento e a linguagem. Ainda este ano o aplicativo será lançado em plataforma pública.

Educação inclusiva 

As iniciativas para a escolarização das crianças com a síndrome do zika envolvem nove municípios da Baixada e dois do Sul Fluminense por meio do Fórum Permanente de Educação Especial da Baixada Fluminense e Sul Fluminense, que conta com a participação de gestores da rede de Educação Especial, pesquisadores e financiamento da Faperj e do CNPq. 

“Até aqui a pesquisa tem nos mostrado o quanto a escola beneficia o desenvolvimento dessas crianças, não só no que diz respeito à avaliação individual, mas também nos relatos das mães. Elas nem cogitavam matricular os filhos em outro espaço que não fosse a escola infantil comum, inclusiva”, conta Márcia Pletsch.

Dados do Censo Escolar, do Inep, mostram a evolução no ingresso de estudantes portadores de deficiência na educação básica no Brasil. Em 1998, a maioria dos alunos estavam em instituições especializadas filantrópicas ou da rede pública, ou seja, segregadas. Na época, apenas 13% das crianças frequentavam turmas regulares.

Esse quadro mudou completamente a partir de 2008 quando a taxa de inclusão ultrapassou a de matrículas em escolas exclusivas pela primeira vez na série histórica. No mesmo ano, foi lançada a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e aprovada, por meio de emenda constitucional, a convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência.

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Para a professora da UFRRJ, a mudança de paradigma sobre a pessoa portadora de deficiência na sociedade ao longo das décadas é reflexo de avanços na legislação brasileira que fortaleceram o “debate da educação inclusiva no campo dos direitos humanos”. 

O último Censo Escolar, divulgado em fevereiro, confirma a predominância da da educação inclusiva nas redes de ensino e a preferência das famílias pela rede pública. Com exceção do EJA, todas as etapas da educação básica apresentam mais de 90% de alunos com alguma deficiência incluídos em turmas comuns em 2022, sendo a maior proporção na educação infantil.

“A proposta educacional na perspectiva inclusiva é um processo dinâmico como é o campo dos direitos humanos, inclusive de luta permanente. O lugar mais inclusivo no Brasil hoje são as escolas públicas. Temos problemas, desafios, mas também muitos avanços”, completa Pletsch que defende a intersetorialidade entre educação, saúde e assistência social para o desenvolvimento integral das crianças com a síndrome do zika. 

Políticas públicas

Na mesma perspectiva, foram analisados programas intersetoriais de municípios da Baixada Fluminense que atendem essas crianças. O resultado, além de consolidar a importância de estratégias de integração entre saúde e educação, identificou fragilidades. De acordo com a pesquisa, as ações acontecem, de forma geral, quando se tem demanda. Porém, faltam políticas estruturadas localmente.

“Estamos iniciando agora um segundo momento, desenvolvendo um piloto com dois municípios para pensar políticas locais e diretrizes intersetoriais para pessoas com deficiência, não só para crianças com zika”, afirma Márcia Pletsch, que também coordena o Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI/UFRRJ).

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Na opinião da pesquisadora, outro desafio é fortalecer políticas que já existem de maneira mais efetiva, como o Programa Saúde na Escola, criado em 2007 por decreto do Executivo no governo Lula. A iniciativa articula escolas e Atenção Primária à Saúde para promover ações de prevenção, promoção e atenção à saúde como avaliação psicossocial e controle do calendário vacinal.

Formação especializada

Um dos desdobramentos da pesquisa deu origem a uma parceria público-público entre a UFRRJ, a Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação (Secti) e a Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (CECIERJ) para oferecer o primeiro curso de especialização público em Educação Especial e Inovação Tecnológica.

O curso surgiu de um projeto piloto em parceria com mais de 50 profissionais para o desenvolvimento de diretrizes para a chegada das crianças portadoras da síndrome do zika em turmas de educação infantil na pandemia. 

“A especialização é uma conquista pública e para mim é um ato político de resistência. No estado do Rio, até essa especialização, 100% das vagas oferecidas na área de educação especial eram da iniciativa privada e agora temos mais de mil alunos de várias regiões do estado”, enfatiza Pletsch. Com duração de um ano, a primeira turma se forma em maio.

Outra iniciativa que visa incluir mais crianças com deficiências múltiplas nas escolas é a primeira licenciatura em Educação Especial do estado do Rio de Janeiro, oferecida pela UFRRJ, a partir deste ano. O início das aulas está previsto para abril.

Edição: Mariana Pitasse