59 anos do Golpe

Memória não diz respeito somente a familiares de mortos e desaparecidos, diz Mateus Guimarães

Nesta entrevista, o sobrinho de Honestino Guimarães fala sobre memória e as discussões atuais sobre o Golpe de 1964

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
"Em relação à memória do golpe civil-militar, a importância está justamente na reflexão sobre toda a violência que resultou a partir dele e que continua acontecendo diariamente", observa Mateus - Emilia Silberstein/UnB Agência

Há 59 anos o então presidente da República João Goulart foi deposto por um golpe militar que duraria mais de duas décadas e deixaria marcas profundas na sociedade brasileira.

Nesta data, o estudante Honestino Monteiro Guimarães cursava o 3º ano no Centro Integrado de Ensino Médio (Elefante Branco) em Brasília e teve seu destino totalmente alterado em razão do novo regime instalado no país. A discussão sobre a trajetória de Honestino e sua família fazem parte de um amplo debate sobre a memória de um golpe de Estado concretizado em 1º de abril de 1964 que seguiu por décadas de autoritarismo, truculência, torturas e assassinatos.

Honestino se tornou uma peça-chave na discussão sobre o período da ditadura militar no Brasil por sua atuação no movimento estudantil. Quando ocorreu o golpe ele já atuava no movimento secundarista, mas ganhou maior projeção ao ser aprovado no curso de Geologia da Universidade Brasília (UnB), em 1965, onde foi eleito presidente do Diretório Acadêmico de Geologia. Ele ainda foi presidente da Federação dos Estudantes da UNB (Feub) e da União Nacional do Estudantes (UNE). Em razão se sua atuação no movimento estudantil, Honestino foi preso em 1967, 1968 e 1973 e, depois, foi desaparecido em 1976.

Foi apenas em 1996 que o Estado Brasileiro reconheceu a responsabilidade pela morte de Honestino. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato DF,  Mateus Gumarães conta que foi muito "difícil e doloroso" para a família lidar com todo o processo, que envolveu prisões, desaparecimento e depois a morte do tio, especialmente para a mãe de Honestino, Maria Rosa.


Memorial em homenagem a Honestino Guimarães na Universidade de Brasília / Foto: Flávia Quirino

Mateus chama atenção para a falta de justiça na transição da ditadura para a democracia no Brasil. Para ele, o fortalecimento da extrema direita no país é resultado de uma "falha" na forma que encaramos a nossa história. "O que estamos lidando aqui não é com a direita saudável e necessária para a democracia, mas com um extremismo chamado fascismo", destaca. 

Brasil de Fato DF: Qual a importância que você atribui à luta pela memória do Golpe de 64?

Mateus Guimarães: A memória nos permite essencialmente duas coisas: compreender de onde nós viemos e aprender com os erros e acertos do passado. E esses são dois elementos fundamentais para que possamos refletir melhor sobre que futuro queremos construir e dar, no presente, passos mais firmes nessa direção.

Especificamente em relação à memória do golpe civil-militar, a importância está justamente na reflexão sobre toda a violência que resultou a partir dele e que continua acontecendo diariamente, atingindo de maneira mais brutal os jovens pretos nas periferias, os povos indígenas e as comunidades mais vulneráveis, mas ameaçando também a segurança e a vida de todos, sem distinção.

Assim como o processo de escravidão dos povos indígenas e africanos, a ditadura é, antes de tudo, um chamado à reflexão se é isso o que desejamos para o nosso futuro, não só enquanto nação, mas enquanto humanidade.

Em toda essa história, existe sim a dimensão das questões políticas, ideológicas e socioeconômicas. Mas, sobretudo nesse contexto de polarização, é muito importante que as pessoas entendam que se trata de uma questão de princípios e valores, pois estamos falando sobre o direito à vida. E o respeito à vida deve ser um princípio universal incorporado por todos e cada um de nós, independente de partidos, ideologias, religiões ou qualquer outra circunstância.

Enquanto isso não acontecer, nunca nos sentiremos verdadeiramente livres e seguros. Como Luther King dizia, "a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar".

Como foi para a família lidar com as prisões, desaparecimento e a morte de Honestino Guimarães, em 1976?

Foi muito difícil e doloroso, especialmente para a nossa avó, Maria Rosa

Qual sua avaliação sobre a Comissão da Verdade, que ocorreu entre os anos de 2011 e 2014? Foi um sopro de esperança? Houve frustração com os resultados práticos da Comissão?

Desde o início percebemos uma pressão muito grande dos militares e demais grupos envolvidos contra o processo. Havia um discurso falacioso de que a então presidenta Dilma estava motivada por sentimentos de revanchismo. Se uma pessoa pisa no pé de alguém, qual seria a revanche desse alguém? Pisar no pé da pessoa, certo?

Ora, os desaparecidos políticos foram perseguidos, sequestrados, presos, torturados, mortos e ocultados pelo Estado brasileiro. E nunca se viu alguém do movimento pela Memória, Verdade e Justiça dizer que quer perseguir, sequestrar, prender, torturar, matar e ocultar os responsáveis por esses graves e hediondos crimes que foram cometidos.

Por mais que tenha realizado um trabalho importante, parece que a Comissão da Verdade precisou ceder à pressão e acabou não se concretizando como um avanço maior para a justiça de transição no Brasil.

Além disso, o trabalho dela e da Comissão de Anistia pareciam ser tratados de modo meio periférico e até isolado no conjunto do Estado, quando, na realidade, necessitam de centralidade e transversalidade nas políticas públicas, dada a profundidade das marcas que esse período ainda guarda no conjunto da máquina pública e de toda a sociedade.

Portanto, são necessárias, sobretudo, mais ações de revisão e conscientização sobre a nossa história, tanto para as atuais, quanto para as futuras gerações. Sem essa centralidade e a dimensão da importância do tema, o risco é de acontecer o que aconteceu.

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Como foi lidar com a memória sobre o golpe de 64 nos últimos quatro anos, durante o governo do ex-presidente Bolsonaro?

É importante entendermos que o ex-presidente é resultado justamente da nossa falha em encararmos de frente a nossa história. Embora o fascismo seja um fenômeno mundial, é muito claro que ele se tornou presidente como resultado direto da falta da justiça de transição no Brasil.

Então, o primeiro ponto a considerar é que todos somos parte desse problema. Sobre ele comemorar, a reflexão principal talvez seja o fato disso não ter sido considerado uma aberração e algo repudiado pela sociedade como um todo. Isso é o que realmente incomoda e deveria incomodar a todos nós. É importante termos a consciência de que esse tema não é uma questão de esquerda e direita. Até porque a direita e a esquerda estão de acordo em relação à abominação da ditadura e na defesa da democracia desde o início da redemocratização.

O que estamos lidando aqui não é com a direita saudável e necessária para a democracia, mas com um extremismo chamado fascismo, que vem contaminando a política e é uma ameaça não só para a democracia, mas para a nossa própria sobrevivência enquanto espécie humana. 

Prestemos mais atenção: ele estava comemorando a tortura, a morte e as crueldades mais perversas cometidas contra outros seres humanos. Basta conhecer o relato de uma das centenas de mulheres que foram torturadas para compreender a aberração que comemorar e exaltar isso significa. Então, talvez a questão mais importante aqui seja refletirmos sobre de que modo estamos falhando com as pessoas que não se horrorizaram diante desse fato.

Que fenômenos sociais e culturais são esses que estão gerando tamanho descaso em relação à vida? Quais são as causas das causas de tanta insensibilidade? Onde estamos falhando na tão importante e necessária missão de cultivar a compaixão, o respeito e o verdadeiro amor ao próximo? O que é isso que está iludindo até mesmo cristãos ao ponto de caírem em tamanha contradição?

Acredito que a raiz de tudo isso está na ilusão da separatividade. E trazendo à tona a memória, se olharmos para a nossa história enquanto humanidade vamos constatar que foi justamente essa ilusão que originou não somente os capítulos mais sombrios, como também o desaparecimento de impérios e civilizações inteiras. Será que é esse o futuro que queremos para nós?

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Qual a expectativa pro futuro em relação a memória do golpe de 64, já que estamos em um novo governo, mas com a sociedade muito polarizada e com muita gente que ainda defende abertamente a ditadura?

As polaridades são um fenômeno natural, como a noite e o dia. Então, existem pessoas que naturalmente valorizam mais a segurança (geralmente mais afinadas com os ideais de direita) enquanto outras são mais abertas à experimentação e criatividade (geralmente, mais afinadas com os ideais de esquerda).

Precisamos, antes de tudo, ter mais maturidade e reconhecer que ambas são muito importantes e têm o seu valor para o conjunto da sociedade. Todos queremos nos sentir seguros e sem a abertura à experimentação, a vida seria muito monótona e ficaríamos entediados.

No entanto, a polarização, ou seja, a radicalização de um ou outro extremo, é um fenômeno forjado e que vem ameaçando a democracia em vários países. Existem, por exemplo, pautas importantíssimas que estão se arrastando há anos em parlamentos ao redor do mundo simplesmente porque são defendidas pelo partido A ou B e não estão conseguindo sequer dialogar sobre. Justo o diálogo que é a matéria-prima essencial da democracia.

Assim, é fundamental que a sociedade como um todo desperte para o fato de que a memória sobre o Golpe de 64 não é algo que diz respeito somente aos familiares de mortos e desaparecidos políticos, mas a todas cidadãs e cidadãos brasileiros.

Mas, para isso, é necessário sairmos da superfície desse debate e irmos para as camadas mais profundas. E aí é fundamental trazermos o saber científico para essa discussão.

Cientificamente falando, existem dois fatos importantes a serem considerados aqui. O primeiro é a comprovação feita a partir dos estudos sobre o DNA que, embora as diferenças entre nós sejam naturais e cada ser humano seja único, biologicamente somos 99,9% iguais. Todos temos as mesmas necessidades fundamentais e não há o menor sentido em gastarmos tanto tempo e energia em função do pouco que nos diferencia sendo que o que nos une é muito maior.

A segunda questão que a ciência também já comprovou é que não nascemos com nenhum tipo de sentimento de separação entre nós. É por isso que é tão fácil fazer um bebê sorrir: basta você sorrir que ele fará isso de volta. Porque nessa fase não reconhecemos qualquer tipo de distinção entre a gente e o "outro". Sendo assim, além de ilusória, a separação é algo que é aprendido ao longo da nossa vida.

Para concluir, já que estamos exercitando a memória, é importante lembrarmos e refletirmos sobre os aprendizados que esse desafio histórico recente que tivemos que foi o Covid nos traz. Um vírus que começou num vilarejo lá no interior da China, em questão de dias parou todo o planeta e causou tudo o que causou. Ou seja, existe uma mensagem muito clara e contundente aqui, escancarando o fato de que estamos totalmente interconectados. Afinal, todos respiramos o mesmo ar.

Então, é urgente repensarmos para onde estamos caminhando e alinharmos as nossas atitudes com o propósito maior da nossa existência, para evitarmos mais sofrimento. E para isso, é preciso resgatarmos esse senso de unidade, que tantas tradições espirituais nos ensinam. Essa é a nossa maior esperança.

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Fonte: BdF Distrito Federal

Edição: Flávia Quirino