entrevista

Pesquisadora defende cotas para garantia de direitos e ascensão a pessoas trans e travestis

Hailey Kaas afirma que melhorias em termos de educação, saúde e visibilidade vieram acompanhadas de retrocessos

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"A ofensiva se fortalece conforme conquistamos direitos", afirma Hailey Kaas - Divulgação

A chegada, em 2023, das primeiras duas parlamentares trans ao Congresso é um marco histórico na luta da população trans e travesti do Brasil por dignidade e direitos. Para a pesquisadora e ativista transfeminista Hailey Kaas, embora haja avanços a serem comemorados, como melhoras no acesso à educação e saúde e maior presença na esfera pública, ainda há muito trabalho a ser feito para garantir a essas pessoas uma vida digna, com possibilidades reais de ascensão social.

Sem políticas públicas, alerta, essa promessa pode se tornar vazia. "Vai continuar meia dúzia de pessoas trans com grana enquanto o resto está no corre."

Tradutora e escritora, Kaas dirige o Centro de Pesquisa Transfeminista, instituição que difunde pesquisas sobre questões trans no Brasil. Na internet, foi uma das pioneiras sobre o tema. "Houve uma melhora na forma com que a sociedade encara o assunto, até porque a mídia começou a pautar isso e a publicidade, também. Mas existe o lado negativo", afirma Kaas, citando projetos de lei transfóbicos e perseguição de alas radicais do feminismo.

Em entrevista à DW, a especialista defende a introdução de políticas afirmativas específicas para pessoas trans, como cotas, e ressalta que o Brasil ainda está longe de ter uma política representativa.

DW: Temos visto um aumento da presença de pessoas trans na política, com a eleição das primeiras mulheres trans ao Congresso em 2018. O que isso diz sobre o momento que vivemos hoje?

Hailey Kaas: Houve uma melhora na forma com que a sociedade encara o assunto, até porque a mídia começou a pautar isso e a publicidade, também. Mas tem o lado negativo, que é o backlash, como a notícia recente dos vários projetos de lei transfóbicos tramitando na Câmara e os ataques de feministas radicais. A ofensiva se fortalece à medida em que nós conquistamos direitos e visibilidade. Falar de cisgeneridade [quando a identidade de gênero corresponde à atribuída no nascimento] e de pessoas trans e travestis incomoda. Nosso lugar sempre foi de precariedade, do trabalho sexual, do desemprego, da evasão escolar. Nós estávamos à margem da sociedade, nunca em pé de igualdade. E à medida que a gente aparece e demanda direitos, faz barulho, elege parlamentares, a gente também cria inimigos.

O país, talvez a esquerda, tenha avançado nessa discussão. Mas ainda estamos longe de ter uma política verdadeiramente representativa, até porque duas parlamentares trans ainda é muito pouco frente ao contingente de pessoas trans que a gente tem. E também não devemos vê-las somente como representantes desse grupo, até porque não basta legislar pela causa; é preciso também defender outros direitos humanos.

Quais são os maiores desafios enfrentados pela população trans hoje no Brasil, e o que avanços e retrocessos você listaria?

Um dos maiores desafios é convencer as pessoas de que precisamos de políticas públicas específicas, como cotas. Tem quem ache que ser trans é uma escolha, ou que cotas só são necessárias para negros. Outro desafio é fazer com que as políticas afirmativas sejam dignas e efetivas, permitindo uma vida que não aquela precária que a sociedade nos reserva.

Vejo um avanço na questão do acesso à saúde. O SUS oferece hoje, além da cirurgia de confirmação sexual, também as de prótese mamária, de mamoplastia masculinizadora e a histerectomia [remoção do útero]. Temos mais centros que atendem pessoas trans, com profissionais especializados e tudo mais. Mas isso ainda está muito aquém do que deveria.

A melhora no acesso à saúde e à educação vem também na esteira de muitas perdas de direitos, como por exemplo as reformas trabalhistas e da previdência, que também afetam a população trans. É uma luta maior – que não é só nossa, mas dos trabalhadores em geral – por condições de vida mais dignas do que o que nos tem sido oferecido em meio à inflação e uma série de retrocessos do governo Bolsonaro.

O Brasil continua a ser o país que mais mata pessoas trans no mundo em números absolutos. Por que repetimos essa estatística ano após ano?

Não sabemos se a violência realmente aumenta ou diminui porque há suspeita de subnotificação desses assassinatos. Muitos morrem e ninguém fica sabendo, ou não há informação que identifique essa pessoa como trans. Ainda assim, o número é altíssimo. Ainda temos uma cultura muito machista e transfóbica, principalmente no que diz respeito à vulnerabilidade das pessoas trans enquanto trabalhadoras sexuais, principalmente nas regiões mais remotas do Brasil. Às vezes, a própria polícia é o algoz.

Existe um pacto coletivo entre homens de que travesti, por não performar uma masculinidade esperada, está sujeita à morte e todo tipo de violência. É uma transfobia fruto de uma visão misógina de que aquele corpo não pode performar feminilidade porque isso seria degradante. E por mais que esses mesmos homens se sintam atraídos – porque na verdade não se trata, a meu ver, de repulsa física, já que muitas vezes eles mantêm relações sexuais –, há uma total desumanização e objetificação desses corpos, ao ponto de eles servirem para o prazer, mas serem descartáveis.

Esses homens que desejam sexualmente essas pessoas são os mesmos que as matam. É uma violência atrelada à não-elaboração desse desejo, de entender que tudo bem se sentir atraído por travesti. Na hora que eles percebem que eles têm uma relação ou se atraem por um corpo que a sociedade inteira considera como monstruoso existe essa não-elaboração na psique desses homens ao ponto de eles partirem para a violência física para poder, talvez, até matar esse desejo de alguma forma.

Como fazer avançar debates tão essenciais para a sobrevivência e dignidade da população trans sem virar alvo da extrema-direita e sofrer reveses?

Isso está ligado à forma como os movimentos sociais se organizam. É fundamental criar uma ideia de movimento trans ligado aos movimentos feminista, LGBTQIAP+, antirracista, indígena. Tem que ser interseccional, mas também, a meu ver, socialista – no sentido de abarcar um projeto político de emancipação de todas as pessoas oprimidas num sistema em que é impossível avançar sem retroceder.

Qual é o papel que você atribui à internet no aumento da visibilidade de pessoas trans na esfera pública, com essa nova geração de influencers? Dá para falar em protagonismo trans?

Não sei, porque são poucos influencers trans e com uma quantidade de seguidores muito inferior. Temos hoje pessoas muito hábeis em explicar para o público leigo o que é ser trans. Ter mais influencers trans significa também empoderar economicamente essas pessoas, mas ainda há um déficit do ponto de vista de acesso a políticas públicas.

A questão da cirurgia de confirmação sexual pelo SUS é um exemplo disso: não são muitos hospitais que fazem no Brasil e a fila de espera é gigantesca. Tem gente que não tem como pagar pelo procedimento, que custa entre R$ 50 mil e 60 mil. Para fazer pelo plano de saúde, muitas vezes é preciso entrar na Justiça para conseguir. Eu mesma não tenho plano de saúde e já tem mais de dez anos que quero realizar a cirurgia. Tive que abrir uma vaquinha. As redes sociais trouxeram essa possibilidade de solidariedade, de você construir redes de cuidado, de atenção e solidariedade, mas também promovem muito discurso de ódio – inclusive de feministas radicais trans excludentes.

Acha que a sociedade corre o risco de estagnar numa diversidade rasa, onde a promessa de ascensão social se realiza para pouquíssimas pessoas trans e travestis?

Sim, principalmente se deixarmos a representação da população trans nas mãos do empresariado. Mas estaria mentindo se dissesse que não tem impacto nenhum a marca fazer ação com uma pessoa trans. Só que esse impacto é quase como enxugar gelo, se não houver política pública e verba para a população trans, se não fortalecermos essas pessoas economicamente. É preciso garantir o acesso ao ensino superior e ao mercado de trabalho, porque esse sistema falido que é o capitalismo cada vez mais obriga as pessoas a se hiper qualificarem. Quando a pessoa trans consegue ascender ao ensino superior, a graduação já não vale mais nada. Aí para você entrar numa empresa tem que falar inglês, espanhol, alemão, ter pós-graduação, mestrado, doutorado. Todos esses empecilhos afetam a população trans desproporcionalmente.

A promessa de ascensão social se cumpre para poucos porque a gente não tem um projeto de conquista de direitos, com um horizonte de superação desse sistema e que permita a ascensão social para todos. Sem isso, vai continuar meia dúzia de pessoas trans com grana enquanto o resto está no corre.