Volta ao relento

Com 45 mil pessoas em situação de rua em SP, prefeitura apreende barracas com aval da Justiça

Com derrubada de liminar que proibia tirar barracas, "estão tirando com mais alegria e violência" , denuncia padre Julio

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

A prefeitura de SP estava proibida de retirar as barracas desde o último 17 de fevereiro; agora, a liminar caiu - Rovena Rosa/Agência Brasil

Nesta segunda-feira (3), pessoas em situação de rua na região central da capital paulista amanheceram sob uma força tarefa de fiscais municipais, com a Guarda Civil Metropolitana (GCM) e a Polícia Militar (PM) apreendendo suas barracas e pertences. A ação da gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) acontece depois que o governo municipal conseguiu a derrubada de uma liminar que, desde 17 de fevereiro, proibia a remoção de barracas em locais públicos durante o dia. 

"Já tiraram tudo lá no Parque da Luz", relata o padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua. "Retiraram, agora o que eles ofereceram?", se indigna.  

"Nós, como moradores de rua, somos seres humanos, somos cidadãos igual a todos. A prefeitura chegou aqui, não pediu nada, tomou tudo de nós: nossas barracas, nossos pertences, documentos, tudo o que temos", relata um senhor em situação de rua no bairro da Luz, em depoimento divulgado por Lancellotti. "Te deram um contra-lacre? Ofereceram algo para vocês?", pergunta o padre, ao final do vídeo. "Não, só porrada", responde o homem. Contra-lacre é um documento que confirma a apreensão dos pertences. Em tese, ele deve conter a lista de itens apreendidos e o endereço para que o dono possa retirá-los da custódia da prefeitura.

O padre Julio foi um dos autores, junto com o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL) e outras seis pessoas, da ação popular na 7ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo que havia conseguido o impedimento da apreensão das moradias provisórias nas calçadas. A liminar foi derrubada na última sexta-feira (31) pelo desembargador Ribeiro de Paula. O deputado e os movimentos entrarão com recurso. 

"Com a liminar ou sem a liminar, a prefeitura age sempre da mesma forma. Eles mesmos têm um decreto que não podem tirar objetos de sobrevivência. E tiram", avalia Lancellotti, se referindo ao decreto de 59.246 de 2020, que proíbe fiscais municipais de recolher objetos como documentos, livros, malas, fogareiros, colchonetes, mantas e barracas desmontáveis de quem vive nas ruas.  

"Eles tiram da mesma forma. E agora, estão tirando com mais alegria e mais violência, porque agora caiu a liminar. E quem reage, apanha. Quem reage é reprimido, não tem outra saída. Eles vêm com PM, com GCM, com força policial para tirar", descreve.  

Na sexta-feira santa (7) a Via Sacra com a População de Rua, que é organizada anualmente pela Pastoral, será uma manifestação para denunciar a situação. Está marcada para as 9h no Largo São Bento.  

Multidão vivendo nas calçadas 

De acordo com um censo divulgado no início de 2022, feito pela empresa Qualitest contratada pela prefeitura, 31.884 estão em situação de rua na capital paulista. Segundo a pesquisa, em dois anos o número de barracas aumentou 330%. 

A metodologia do censo, no entanto, foi questionada por grupos que atuam com o tema há décadas, como o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) e a Rede Rua. Para as organizações, há ao menos 45 mil pessoas vivendo nas calçadas de São Paulo.  

:: Famílias, barracas e recém-desempregados: cresce novo perfil em situação de rua na pandemia ::

No último sábado (1), o prefeito comentou ser "muito importante essa decisão que caça a liminar". Defendendo "a lei e a ordem" na cidade, Nunes disse que "rua não é endereço, barraca não é lar. Não é digno pessoas nas ruas expostas ao sol, chuva, sem banheiro, sem chuveiro, torneira".  

Segundo Ricardo Nunes, a prefeitura está ampliando os Centros de Acolhidas e fazendo o que chamam de "Vilas Reencontro", com casas de 18 metros quadrados e contrataram 3.599 vagas em hotéis para famílias com crianças e idosos.    

Condições insalubres e precárias dentro dos equipamentos da Prefeitura, no entanto, fazem entidades de defesa dos direitos humanos questionar a dignidade que o prefeito diz defender para essa população. O Brasil de Fato reverberou, no ano passado, uma infestação de percevejos causando feridas nas pernas de quem buscava abrigo no Centro Temporário de Acolhimento (CTA) da Brigadeiro Galvão. 

Um relatório da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de São Paulo, divulgado em 2022, revelou que no Centro de Acolhida Zaki Narchi, em Santana, 500 homens dormiam em colchões com percevejos em um galpão cheio de pombos. Os banheiros, na ocasião da inspeção, tinham os vasos sanitários entupidos.  

Em nota, a prefeitura de São Paulo informa que tem "a maior rede socioassistencial da América Latina que conta, atualmente, com quase 21 mil vagas de acolhimento para a população em situação de rua".  

Se todas as vagas fossem preenchidas, ainda assim, de acordo com o cálculo da própria prefeitura (tido como subnotificado pelos movimentos), um terço da população em situação de rua seguiria sem acolhimento. 

Guilherme Boulos disse, também em nota, ser "absurdo que a Prefeitura considere que a população sem teto viva nas ruas por vontade própria, e não por estarem abandonadas pelo poder público". Segundo ele, "a questão dos sem teto precisa ser resolvida de maneira estrutural, e não com o uso de violência para tirar o pouco que sobrou de quem já não tem quase nada."

Edição: Thalita Pires