Subnotificação

Censo da população de rua de São Paulo não mostra a realidade, contesta movimento

Quem acompanha a situação fala em um crescimento maior e teme que dados subestimados prejudiquem políticas públicas

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Homem em situação de rua revira o lixo em São Paulo, realidade compartilhada por outras grandes cidades brasileiras - Roberto Casimiro/Fotoarena

O número de pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo cresceu 31% durante os dois primeiros anos da pandemia de covid-19. É o que mostra o novo Censo da da População em Situação de Rua, realizado na capital paulista entre outubro e dezembro de 2021 e divulgado neste domingo (23).

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Segundo a gestão do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), hoje há 31.884 pessoas vivendo nas ruas da cidade, o que representa 7.540 a mais do que o constatado no último censo, realizado em 2019. Naquele ano, eram 24.344 pessoas nessa situação. O total atual é também o dobro do registrado em 2016, quando havia 15.905 sem-teto. 

Os números espantosos, porém, não refletem a realidade das ruas. Coordenadores de organizações que trabalham diretamente com essa população apontam que há subnotificação e isto, segundo eles, pode prejudicar o desenvolvimento de políticas públicas para atendimento assistencial, de saúde ou de trabalho dessa população. 

Ao longo desta segunda (24), o coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo, padre Júlio Lancellotti, divulgou relatos em suas redes sociais de pessoas que vivem em calçadas, atendidas pela pastoral, que afirmam não terem sido abordadas por agentes censitários da empresa Qualitest, contratada pela gestão Nunes para realizar o levantamento. “Está aí, esse censo é uma mentira”, ressaltava o pároco. 

CadÚnico fala em mais de 36 mil sem-teto

O secretário do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), Darcy da Costa, também fala em problemas metodológicos no levantamento e destaca que a contagem “não reflete a realidade”.

Costa explica que as irregularidades já haviam sido observadas pelos movimentos no levantamento anterior, quando o número de sem-teto também foi questionado. À época, enquanto o município indicava quase 25 mil pessoas em situação de rua, dados do Cadastro Único, do Ministério da Cidadania, mostravam 33.292 famílias sem-teto em dezembro de 2019 na cidade de São Paulo. 

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De acordo com o MNPR, em julho de 2020, o total de pessoas desabrigadas aumentou para 36.322.

“Uma pesquisa que aponta 31 mil está abaixo daquilo que já estava cadastrado. E a gente sabe que tem várias pessoas que ainda não conseguiram se cadastrar no CadÚnico para receber também o Auxílio Brasil. Temos muitas pessoas que estão em situação de rua e que não estão recebendo o benefício, principalmente essa leva que tem chegado à situação de rua (recentemente). É claro para a gente que esse número não reflete a realidade das pessoas em situação de rua, está muito abaixo”, contesta. 

A prefeitura de São Paulo nega inadequações na pesquisa. Segundo o município, a Qualitest, também responsável pelo censo de 2019 e vencedora do novo edital no valor de R$ 1,7 milhão, obedeceu a metodologia científica e os prazos distintos de conclusão.

A cidade foi dividida em regiões e setores censitários, onde 220 colaboradores, entre recenseadores, observadores/facilitadores e supervisores atuaram em busca ativa. Entre as quase 32 mil pessoas em situação de rua, 19.209 estavam em logradouros públicos. E outras 12.675 estavam abrigadas em Centros de Acolhida da rede socioassistencial do município. 

Longe da realidade

No entanto, como no levantamento de dois anos atrás, cada local foi visitado uma única vez e sempre em horário noturno, após às 23h.

O que é insuficiente, segundo os movimentos, para conseguir identificar todas as pessoas que vivem em situação de rua em uma determinada região. “Se as pessoas estão dentro de uma barraca em um horário em que estão dormindo, eles não querem ser acordados e o recenseador coloca uma estimativa, o que não é a realidade da situação”, observa Darcy da Costa.

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“Se isso começa a se repetir muito chamamos de vícios, porque foi o que aconteceu em 2019 e aconteceu agora novamente com a mesma empresa. Eles cometeram os mesmos equívocos. Se não conseguem acessar a população em situação de rua, ou se há alguma dispersão no momento da contagem do território por conta da zeladoria urbana e da própria GCM, que vai fazer a zeladoria no local e alvoroça a população naquele momento, perde-se completamente também a contagem. E aí se faz uma amostragem, supondo que naquele local tenha tantas pessoas. A gente acredita que, por esses motivos, eles não conseguem apurar o mais próximo da realidade possível”, acrescenta. 

Com o dado subestimado, o risco é que essa população, que já é invisibilizada também não seja alcançada pelas políticas públicas. “Porque tudo agora será construído em cima de uma estimativa de 31 mil pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo”, lamenta o MNPR.

Qualquer que seja o dado, o contingente de pessoas em situação de rua já é maior que o número de habitantes na maioria das cidades do estado. Segundo o próprio governo municipal, das 645 cidades paulistas, 449, ou 69,6%, tem uma população menor do que a quantidade de sem-teto aferida na capital. 

O impacto do desemprego

Homens com idade economicamente ativa média de 41,7 anos e 70,8% pretos ou pardos ainda formam o perfil majoritário de quem está nas ruas. Os indicadores, contudo, também sinalizam um crescimento no número de famílias vivendo em situação de rua.

Enquanto em 2019, 20% da população de rua dizia ter a companhia de alguma pessoa que considerava integrante de sua família, em 2021 esse percentual subiu para 28,6%. O número do que os recenseadores classificam como “moradias improvisadas”, como barracas nas ruas, também cresceu 330% em 2021. 

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A conclusão da secretaria municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) é que a “provável ida de um perfil mais familiar” para a situação de rua seja “possivelmente por motivação econômica”. A população de mulheres nas ruas também aumentou de 14,8% para 16,6% em 2021.

Assim como a população trans/travesti/agênero/não binário/outros que passou de 2,9%, em 2019, para 3,1%. Conflitos familiares (34,7%) e a dependência de álcool e outras drogas (29,5%) continuam entre os principais motivos apontados pelos entrevistados para estarem em situação de rua. Mas com a pandemia e as consequências econômicas, a perda de trabalho/renda (28,4%) se soma como o terceira e principal razão.

Parabéns para quem?

Os distritos da Subprefeitura da Mooca registraram o maior aumento de concentração de pessoas em situação de rua no período: de 1.419 pessoas para 2.254. Aumento de 170% em apenas dois anos. Já na Sé, o aumento em números absolutos foi de 973 pessoas.

O relatório final indica crescimentos bastante significativos da população em situação de rua também na periferia de São Paulo. Com exceção de São Mateus (-180) e (-42), ambos na zona Leste, houve aumento no número de pessoas vivendo nas ruas superior a 100% na maioria dos distritos.

Entre eles, Perus e Santana-Tucuruvi, na zona norte; Itaquera, na Leste; e Ipiranga, Vila Mariana, Jabaquara e M’Boi Mirim, nas zonas Sudeste e Sul.

Darcy da Costa conclui que no aniversário de 468 anos da cidade de São Paulo, celebrado nesta terça (25), a capital tem muito a desejar.

“A cidade cresceu com uma concentração de renda muito forte e está no momento de rever e garantir às pessoas a moradia como um direito, e não como um produto. São Paulo precisa rever esses conceitos e é possível estabelecer uma política de moradia social para quem não tem.”