Bahia

Novo Ensino Médio

Novo Ensino Médio deve ter implantação suspensa. Entenda críticas de alunos e professores

Ministro da Educação anunciou ontem que o NEM deve ser suspenso e promete diálogo com estudantes e professores

Salvador |
MEC anuncia suspensão do Novo Ensino Médio e promete diálogo com professores e estudantes - Secretaria de Educação da Bahia

O Ministério da Educação deve publicar nos próximos dias uma portaria que suspende a implantação do Novo Ensino Médio (NEM) e promete realizar debates e audiências públicas com estudantes, professores e gestores de escolas para definir os novos rumos a serem adotados. O anúncio feito ontem (03) pelo ministro da Educação, Camilo Santana, acontece após intensa mobilização de movimentos estudantis e sindicatos de professores de todo o país contra o NEM.

Instituída através de uma medida provisória, em 2016, ainda no Governo Temer, e transformada na Lei 13.415, em 2017, o Novo Ensino Médio (NEM) nasceu com a promessa de flexibilizar o currículo escolar e de garantir mais autonomia para os estudantes. No entanto, professores e estudantes apontam diversos problemas na execução do NEM.

Um dos principais é que as mudanças não cumprem com o propósito de ampliar os conhecimentos e, na prática, o NEM acentua as diferenças de qualidade entre os ensinos público e privado. Este novo modelo de ensino-aprendizagem oferece a base de disciplinas obrigatórias e abre espaço para que os estudantes escolham itinerários formativos. Esses itinerários são o conjunto de disciplinas que os alunos podem escolher para aprofundamento na área de conhecimento de seu interesse.

O que parece ser uma mudança promissora, por permitir ao estudante mais participação e escolha, na sala de aula tem diversos efeitos colaterais. É o que defende Luciana Costa, professora de História da rede estadual de ensino há mais de 20 anos. Com longa experiência em sala, Luciana ensina em escolas no bairro do Cabula e no Arenoso, em Salvador.

Luciana relembra o contexto em que nasce essa reforma. “Ela foi implementada em 2017, durante o governo de Michel Temer, em um cenário político bastante tumultuado. Foi logo após o golpe de Estado que destituiu a presidente eleita Dilma Rousseff. E, desde então, essa reforma é alvo de críticas de todos os setores da sociedade, principalmente dos setores que estudam e dos seus interessados”, declara a professora.

Ela nos explica que, a partir dessas mudanças, apenas Português e Matemática passam a ser obrigatórias no Ensino Médio. As outras disciplinas que compõem o currículo básico comum, tais como História, Geografia, Filosofia, Sociologia e Biologia, passam a ser ofertadas de forma flexível, a partir da escolha de itinerários formativos.


Luciana Costa é professora de História da rede estadual de ensino há mais de 20 anos e faz críticas contudentes ao NEM / Arquivo pessoal

Sandra Regina Mendes é professora da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), no Campus de Eunápolis, e pesquisa sobre o NEM em seu doutorado. Ela acredita que o oferecimento e a  composição desses saberes, dentro dessa proposta do novo ensino médio, não parte de uma perspectiva de formação integral e ampla da juventude

“Essa formação fragmentada hierarquiza os sujeitos. Isso é muito grave! Isso é extremamente prejudicial para as futuras gerações! Esses jovens que vão enfrentar, de antemão, um mercado extremamente problemático, onde a falta do trabalho, a falta do emprego, já é uma realidade” destaca Sandra.

Itinerários Formativos

“O aluno escolhe, se a escola tiver ofertando, os itinerários formativos. Ele quer ser matriculado, mas para isso a escola deve ofertar. E como parte obrigatória é apenas português e matemática. A escola não tem obrigação de oferecer todos os itinerários ou até de oferecer itinerários formativos. Com isso, a gente tem uma redução drástica da carga horária dessas disciplinas ditas obrigatórias do currículo comum”, afirma Luciana.

Para traduzir melhor a experiência prática, ela nos dá um exemplo. “No ensino médio a gente tinha duas aulas de história na turma do segundo ano. Agora, a gente tem somente uma aula de história e foi ofertada uma disciplina chamada ‘Projeto de Vida’, que tem carga horária de duas horas semanais. Quer dizer, a gente tem uma redução de História, Filosofia e Sociologia para ofertar essa disciplina”, afirma Luciana, preocupada com os impactos disso na vida formativa da juventude, mas também com a preparação e o acesso ao ENEM.

Essa também é a preocupação de Melissa Almeida. A estudante acaba de ingressar no ensino superior, mas, ano passado, estudou no Colégio Estadual Abdias Menezes, em Vitória da Conquista, onde vivenciou de perto esse novo ensino médio. Ela acredita que essa nova proposta potencializa a desigualdade de ensino. “Eu sou totalmente contra. Principalmente, depois de passar pela experiência no meu colégio. É algo que, em lugar de preparar, desprepara os alunos. Tira a base curricular necessária para a formação”, declara Melissa ao enfatizar a mudança como um retrocesso.

A estudante defende que, em 2022, foi possível notar grandes impactos na vida dos alunos que já entraram nesse formato de novo ensino médio com os outros que não faziam parte da proposta. “O novo currículo esvazia a base curricular necessária para os alunos. O número de evasão dos estudantes foi enorme, principalmente, os socioeconomicamente vulneráveis e aqueles que moram em zonas rurais”, declara Melissa ao enumerar as desvantagens percebidas por ela.


Sandra Regina Mendes é professora na UNEB e pesquisa sobre o NEM / Arquivo pessoal

Uma outra questão trazida pela educadora Luciana Costa é que, no caso das escolas públicas, professores concursados estão lecionando as disciplinas eletivas do novo currículo sem as devidas formações. “Eu sou professora de História e tenho as disciplinas ‘Projeto de Vida’, ‘Trilhas Ancestrais’ e também ‘Inclusão digital’. São muitos componentes curriculares para os quais não tivemos formação”, declara a professora Luciana.

Em sintonia com professora Luciana Costa, Melissa também tem a percepção de que os novos conteúdos, e a forma desplanejada como são inseridos, desorganiza a gestão escolar. “A carga horária para quem trabalha e estuda é cansativa. Além disso, notei uma dificuldade dos próprios professores. Não existe uma preparação para ensinar a matéria eletiva do itinerário formativo. Fica um vácuo de aulas que ensinam muitas coisas e, no fundo, não ensinam nada”, pontua Melissa ao demonstrar indignação com as dificuldades de acesso às matérias básicas.

Ensinos público e privado

“A reforma do ensino médio é, na verdade, um total desmantelamento da educação, principalmente, da educação pública no Brasil”, afirma Luciana ao destacar que, nas escolas privadas, o aluno ainda pode seguir com as disciplinas do currículo comum, no turno normal de aula e, no contraturno, podem estudar as matérias eletivas, os tais itinerários formativos.

“Na escola pública, isso não acontece. Essas disciplinas foram implementadas dentro do horário de aula. Aumentou o número de disciplinas e tem outras absurdas que não fazem o menor sentido para o estudante”, destaca professora Luciana Costa, ao afirmar que, caso a reforma seja feita desta maneira, vai gerar uma precarização total da educação pública.

A professora Sandra Regina também levanta perguntas provocativas. “Para quem sobra esse processo formativo fragmentado? A quem se destina essa fragmentação do conhecimento? Quem é que não precisa conhecer o mundo em sua complexidade?”, indaga ao mensurar uma relação entre distribuição do conhecimento e classe.


Melissa Viana passou pelo novo ensino médio no Colégio Estadual Abdias do Nascimento / Arquivo pessoal

 
“A gente pode perguntar para a escola privada se ela vai abrir mão de uma formação ampla e de oferecer todos os processos formativos aos estudantes que ela atende. O estudante vai escolher um processo formativo só e pronto?”, pergunta Sandra, já ciente de que os processos vão ser distintos.

A opinião das pessoas ouvidas nesta matéria, apesar de não se conhecerem, destacam os mesmos pontos e seguem em unanimidade. “Se já não tinha uma qualidade muito boa antes, agora, com a carga horária reduzida e, ainda podendo escolher, com muitas aspas, uma única área, muitos conhecimentos importantes para a vida em geral, para a cidadania, vão ser deixados para trás”, conclui Melissa.

Na previsão da professora Sandra, as distâncias entre os ensinos público e privado vão se intensificar, caso o NEM continue a ser implantado desta forma. “A gente pode afirmar que as igualdades entre o atendimento à escola pública e o atendimento à escola privada nesse processo de reforma é bem problemático. O desafio, agora, é repensar o ensino médio. Aliás, ele precisa não apenas ser repensado. Eu acho que ele precisa, de fato, ser revogado”, declara.

“Esperamos, sim, que essa reforma seja revogada. Eu não vejo possibilidade da gente fazer ajustes. Ela está de tal forma que não é possível de ser ajustada. Sabemos que vai ser uma luta difícil, mas é a minha”, conclui Luciana.

Edição: Gabriela Amorim