Crise

ONU: Situação no Haiti é comparável à de países em guerra

País caribenho enfrenta onda de violência entre gangues rivais que deixou mais de 400 mortos em seis meses

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Pessoas aglomeradas após episódio de violência entre gangues em Porto Príncipe, Haiti - Richard Pierrin/AFP

A insegurança na capital haitiana, Porto Príncipe, atingiu níveis semelhantes aos de países em guerra, afirmou a ONU nesta segunda-feira (24), em um relatório no qual destaca o aumento de assassinatos e sequestros no país caribenho e pede o envio de uma força internacional para a ilha.

"O povo haitiano continua enfrentando uma das piores crises de direitos humanos em décadas e uma grande emergência humanitária", destaca o relatório do secretário-geral da ONU, António Guterres.

"Devido ao elevado número de mortos e ao crescente número de áreas controladas por grupos armados, a insegurança na capital atingiu níveis comparáveis com os de países em situação de conflito armado", acrescenta.

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O número de homicídios registrados no Haiti aumentou 21% nos últimos meses, passando de 673 no último trimestre de 2022 para 815 entre 1º de janeiro e 31 de março deste ano. Já o número de sequestros cresceu 63% nesse mesmo período de referência, de 391 para 637.

De acordo com o relatório, grupos armados "continuam a competir para expandir o controle territorial em toda a região metropolitana de Porto Príncipe, espalhando-se por bairros até agora poupados". O documento também observa o aumento da violência e da frequência de confrontos " entre gangues e com a polícia, que têm custado a vida de muitos civis.

Como resultado, "a situação de habitantes de áreas controladas por grupos armados continua bastante ruim" e, em áreas recentemente alvo desses grupos, as condições "pioraram significativamente". O relatório destaca em particular a situação catastrófica dos habitantes de Cité Soleil, na região metropolitana da capital, onde franco-atiradores posicionados em telhados atacam pedestres nas ruas.

"Os moradores se sentem sitiados. Não podem mais sair de casa por medo da violência armada e do terror imposto pelas gangues", disse a coordenadora humanitária da ONU para o Haiti, Ulrika Richardson, num comunicado no domingo.

Mais de 70 mortos em seis dias

Entre os dias 14 e 19 de abril, os confrontos entre gangues rivais deixaram quase 70 mortos, incluindo 18 mulheres e pelo menos duas crianças, e 40 feridos.

"Reitero a necessidade urgente do envio de uma força armada internacional especializada", em particular para ajudar a polícia a restabelecer a ordem, defendeu Guterres no relatório.

O secretário-geral da ONU havia retransmitido em outubro um pedido de ajuda do primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, apelando ao Conselho de Segurança pelo envio dessa força. Embora alguns países tenham indicado vontade de participar, nenhum se apresentou para assumir a liderança da missão.

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Nos últimos seis meses, ataques armados deixaram mais de 400 mortos no país, segundo um relatório da Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti (RNDDH), que exige explicações das autoridades diante do aumento dos ataques contra a população civil. Desde novembro do ano passado, ao menos oito ataques contra a população foram promovidos por gangues que disputam territórios na região metropolitana da capital.

Ataques armados esporádicos e massacres contra a população haitiana se intensificaram no país desde o início de 2023. A RNDDH relata que, além dos assassinatos, as gangues promovem estupros coletivos de mulheres e meninas. O relatório da rede destaca ainda que mais de 50 regiões conhecidas antigamente pela tranquilidade sofreram ataques desde o início do ano.

Entre os dias mais sangrentos da atual onda de violência, está a noite de 29 para 30 de novembro, quando 72 pessoas foram mortas e 29 mulheres e meninas foram estupradas em Sous Matela. Centenas de casas foram incendidas.

Clima de terror

A RNDDH condenou o clima de terror instaurado no país e acusou a coligação política no poder de proteger os criminosos e dar carta branca às gangues para atacar a população civil. A organização pediu que o governo volte atrás de medidas aplicadas entre fevereiro e outubro de 2022, que teriam levado à intensificação do conflito.

Com o recebimento de equipamentos e veículos da comunidade internacional, principalmente dos EUA, a Polícia Nacional do Haiti decidiu ocupar e controlar territórios para confinar gangues em seus redutos, dificultando a movimentação dos criminosos. Mas "a revogação pelas autoridades estatais desse plano estratégico de controle permitiu às gangues armadas controlar a região metropolitana", destaca a RNDDH.

Linchamento público

Diante da violência de grupos armados, uma multidão em Porto Príncipe espancou e ateou fogo nesta segunda-feira 13 supostos membros de gangues até à morte, depois de retirarem esses homens da custódia da polícia, disseram agentes policiais e outras testemunhas.

A Polícia Nacional do Haiti disse, num breve comunicado, que agentes pararam e revistaram um ônibus do transporte público em busca de contrabando e confiscaram armas dos suspeitos antes de estes "serem infelizmente linchados pela população". A declaração não deu mais detalhes sobre como a multidão conseguiu controlar os suspeitos.

Uma testemunha que se identificou como Edner Samuel disse à agência de notícias Associated Press (AP) que a multidão levou os supostos criminosos para longe da polícia e que estes foram espancados, apedrejados, cobertos de gasolina e queimados.

A terrível violência evidencia a raiva da população em relação à situação em Porto Príncipe. Gangues assumiram o controle de 60% da cidade desde o assassinato do então presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021.

Grave crise socioeconômica e política

O Haiti vive uma grave crise socioeconômica e política, que se intensificou nos últimos meses. O país sofre com uma espiral de violência e com o reaparecimento da cólera, num surto que já deixou 669 mortos desde outubro.

O primeiro-ministro haitiano, Ariel Henry, pediu ajuda militar internacional para combater as gangues em outubro de 2022, mas ainda não obteve uma resposta.

Max Leroy Mésidor, arcebispo da capital do país, Porto Príncipe, disse nas redes sociais que a situação no país "piora a cada dia" e que o Haiti está "mergulhando no caos absoluto". O arcebispo acusou o governo de "indiferença" para com as vítimas do surto de cólera e dos grupos armados que têm cometido crimes de violência sexual e sequestro.

 O Comitê Internacional da Cruz Vermelha também pediu respeito pela missão médica no país e afirmou que a atividade da organização tem sido dificultada pelas restrições de circulação impostas devido ao risco "de ser apanhado em fogo cruzado", o que limita em grande medida o acesso aos serviços de saúde.

Nos últimos meses, os Estados Unidos e o Canadá aplicaram sanções a vários líderes políticos haitianos pelo envolvimento com o narcotráfico, lavagem de dinheiro e financiamento de algumas dessas gangues.

A crise provocou um aumento da migração do Haiti, através de rotas marítimas perigosas, para os países vizinhos. Um relatório da Anistia Internacional, apresentado no início de abril, aponta que 40% da população do país está em situação de emergência alimentar.

cn/lf (AFP, Lusa, EFE, AP)