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Tino comercial

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Achei gozado, porque sempre que alguém me encomendava botina eu nunca cobrava, dava de presente. Virou hábito do Toninho vender botinas - Unsplash
Na empresa em que trabalhava, gostaram da botina dele e encomendaram

Uma coisa que eu não tenho é vocação para ganhar dinheiro, e muito menos pra acumular o que ganho. Já tive bons empregos, de ganhar relativamente bem, mas gastava tudo. Uma vez, ganhava tanto que achava injusto. Mandava um pouquinho pros meus pais, todo mês, mas só um pouco, pra não viciar, como eu dizia. 

E sobrava... Mantive um apartamento no centro de São Paulo e muitos amigos desempregados ou ganhando pouco moravam nele, de graça. Anos depois perdi esse emprego e o que me sobrou dele foi um carro com três anos de uso. Nenhuma grana acumulada.

Desde menino eu tinha o hábito de usar botina, chamada sapatão em Minas Gerais e borzeguim no interior paulista, e na época isso era raro na cidade de São Paulo. Um dia tinha que ir para minha terra, em Minas, num sábado de manhã, pra voltar domingo à noite, e dei carona a um conterrâneo, o Toninho.

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Em Guaxupé (MG), faltando poucos quilômetros pra chegar em Nova Resende, dei uma parada numa fábrica de botinas, porque um amigo pediu que eu comprasse um par pra ele. O Toninho entrou na fabriqueta e gostou, comprou também, pra ele e pra um irmão.

No sábado seguinte, fui à casa em que morava esse amigo, com irmãos e irmãs dele, e me contaram que ele tinha viajado pra Guaxupé, levando duas malas enormes, vazias, para voltar com elas cheias de botinas. Na empresa em que trabalhava, gostaram da botina dele e encomendaram. Venderia por bem mais que o dobro do preço de custo.

Achei gozado, porque sempre que alguém me encomendava botina eu nunca cobrava, dava de presente. Virou hábito do Toninho vender botinas.

Uns três meses depois, com o lucro, ele já tinha comprado uma perua Vemaguet que enchia de botinas e ia vender em portas de faculdades, porque estudantes começavam a gostar delas.

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Mais uns meses, ele abriu uma loja de botinas em Pinheiros, vendendo também outros objetos de couro, como cintos e bolsas. Depois abriu mais outras em outros bairros, e começaram a surgir concorrentes, porque botinas entraram na moda.

E ele abriu então uma fábrica de botinas, bolsas e cintos, que abastecia as lojas dele e também as dos concorrentes. Quando vi, ele tinha ficado rico. E pensei, sorrindo, que tudo começou com uma carona no meu carro.

Uma vez ouvi o pai dele falar orgulhoso: “o Toninho tem tino comercial”. Tino comercial... Tá aí uma coisa que nunca tive.

 

*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Douglas Matos