INTEGRAÇÃO REGIONAL

Aproximação com países sul-americanos deve fazer bem à Venezuela, diz pesquisador

Professor da UFMG avalia que cúpula promovida pelo Brasil é vitória diplomática para a região inteira

Botucatu (SP) |
Lula e o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em Brasília - Evaristo Sá/AFP

A presença do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e a forma como Luiz Inácio Lula da Silva (PT) o recebeu na véspera do evento e se referiu à crise venezuelana, dizendo ser uma "narrativa" construída sobre o país vizinho, rendeu debates na reunião de cúpula de países sul-americanos, realizada nessa terça-feira (30) em Brasília.

Os presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Guilherme Boric, questionaram o tom da fala de Lula e fizeram críticas à atuação do governo venezuelano. Em seu discurso durante o encontro, Maduro afirmou que "parece haver consciência, espírito e vontade para abrir uma nova etapa, com tolerância, respeito e diálogo permanente". Olhando na direção de Lacalle Pou, afirmou: "Se alguns de vocês tiverem dúvida sobre a Venezuela, eu estou disposto a debater o que quiserem, onde quiserem e quando quiserem". Com respeito e "sem intervencionismo", completou.

Lula, que condenou as sanções impostas contra a Venezuela, se ofereceu para mediar diálogos com a oposição e reiterou sua posição no final do evento. Disse que sempre defendeu a ideia de que cada país é soberano para decidir o seu regime político, seu modelo eleitoral e questões internas de maneira geral.

Para analisar a reunião de cúpula como um todo e particularmente o caso venezuelano, o Brasil de Fato conversou com Dawisson Belém Lopes, professor de Política Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele acredita que a democracia na Venezuela está "disfuncional" e que a aproximação com os países da América do Sul pode exercer uma influência benigna, transformando a qualidade do processo político venezuelano. Leia a entrevista.

Brasil de Fato: Quando a Unasul foi criada, vivíamos uma onda de esquerda. Depois veio a onda da direita, tentando desfazer o que havia sido erguido antes. E agora parece que vivemos a onda do "deixa disso", em que presidentes à esquerda e à direita falam em relativizar as ideologias. Esse posicionamento tem chances de vingar e se refletir num processo de integração consistente e duradoura?

Dawisson Belém Lopes: Concordo. Parece ser o momento da síntese. Vemos a América do Sul se reunir em torno de um projeto mais pragmático, talvez com menos coloração político-partidária. Nos encontramos num limbo, em busca de uma nova plataforma de integração, e hoje foi dado um passo importante.

Analisando os 12 países, e particularmente aqueles com maior peso político e econômico, você vê um clima favorável à criação de um processo de integração que leve em conta a opinião de todos, como afirmou Lula?

O simples fato de Lula ter colocado representantes de 12 países é muito significativo. Esse legado já existe. Está reaberta a mesa de conversas e a possibilidade de coordenação entre os atores na América do Sul. Acho que agora o Brasil volta a liderar, ou pelo menos tem a pretensão de exercer um papel de liderança no contexto regional.

A integração, a formação de um bloco regional, é mesmo a melhor forma de tornar as economias sul-americanas mais competitivas frente ao comércio internacional, aos países e blocos mais ricos?

É inevitável operar em escala. Ao redor do mundo existe mobilização nesse sentido. Afinal de contas, vivemos um momento de competição feroz por mercados e ganhos de escala definem o jogo, são capazes de redesenhar os fluxos econômicos. Isso sem falar das cadeias de suprimentos, de produção, que se dão no nível regional e global. Mas com a regionalização da economia, com a pandemia, a preocupação de securitizar o suprimento de certos bens, vem muito a calhar esse novo impulso integracionista da América do Sul.

A América do Sul vive um momento de crises e instabilidades político-institucionais em vários países. Como isso se reflete na tentativa de retomar a integração?

Dificulta, mas não houve período na história em que a América Latina estivesse estável. Então, segue tudo como dantes. Não há nada de excepcional.

Por outro lado, há uma quantidade considerável de presidentes do campo progressista. Isso é um aspecto favorável da conjuntura atual, ou não é bem assim?

Não neste momento. É um momento de se operar numa base mais pragmática, enfatizando aspectos como a alavancagem econômica dos países, aumentar potenciais para investimento estrangeiro, melhorar a inserção nas cadeias globais de produção. Por outro lado, há o meio ambiente como um tema que conecta as partes. Vejo esse como um momento pós-ideológico da integração, a tentativa de buscar plataformas comuns à direita e à esquerda.

Você acha que a Unasul será ressuscitada ou o caminho será outro?

Acho que a Unasul será reabilitada, sim. Seguramente não para cumprir as mesmas funções de outrora, isso fica evidenciado na fala do Lula. Ainda que volte a ter cobertura de todo o continente, vai ter que ser repensada, transformada, de modo a atender essa nova necessidade, com correntes ideológicas mais heterogêneas. Acho que mesmo dentro da esquerda, há muito desencontro, muita diversidade.

O Brasil tem chance de retomar um papel de liderança regional de fato?

Este sempre foi um papel que o Brasil ou se negou a exercer ou nunca esteve à altura. Com o Lula, já em sua primeira passagem pelo Planalto, o Brasil parece ter reinterpretado essa função e buscado desenvolver mais essa vocação. Agora, quando o Lula chama para si e convoca a reunião, parece ser finalmente o exercício da liderança, de promover o diálogo. A própria senioridade, o fato de Lula ser um político veterano, o ajuda.

Um dia antes de dizer que as ideologias devem ser relativizadas na construção da integração, Lula recebe Nicolas Maduro e se refere à crise venezuelana como uma "narrativa" construída contra o país vizinho. Lacalle Pou, presidente do Uruguai, e Gabriel Boric, do Chile, dizem ter ficado surpresos. Outros presidentes podem ver nisso um sinal de que, no fundo, as preferências ideológicas vão ditar o rumo das conversas sobre integração?

Essa é a questão mais divisiva de todas. Mas a declaração do Boric foi superdiplomática. Ele a fez de fora e respeitosa, enaltecendo o processo diplomático. Antes de fazer a crítica, comentou sobre a alegria de ver a Venezuela reintegrada ao foro.

A Venezuela cumpre ou não os requisitos para ser chamada de democracia?

Temos um problema instalado na Venezuela sim, de falta de independência dos poderes: um Judiciário aparelhado, um Legislativo que foi destituído de funções. A oposição não tem alavanca. É diferente de dizer que Maduro não tenha suporte popular. Acredito que seja hoje o principal político da Venezuela, mas houve uma operação de sufocamento da oposição. E o problema é que quando um regime político não dá à sua oposição condições objetivas de questionar a coalizão dominante, temos um problema sim. Não dá para tergiversar a esse respeito. A democracia na Venezuela está disfuncional e precisa ser resgatada.

Deveria haver alguma condição para que a Venezuela participe do processo de integração? Ou o processo de integração é importante demais e deve avançar respeitando idiossincrasias locais?

Esse processo de aproximação da Venezuela com os países da América do Sul tem o condão de exercer uma influência benigna, de transformar no limite a qualidade do processo político venezuelano. Não é pelo isolamento que se vai conseguir a normalização da democracia venezuelana, mas antes pelo fluxo contínuo, intercâmbios e integração cada vez maior. O que aconteceu nos últimos dias foi uma vitória diplomática para a região inteira.

Edição: Thales Schmidt