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Fake news e liberdade de expressão: a difícil batalha nos EUA contra a desinformação

Liminar proibiu interação entre oficiais do governo e funcionários de redes sociais

Nova Iorque |
A Casa Branca vai recorrer da decisão, mas a composição da corte - e da Suprema Corte, em última instância - não ajuda - AFP

Na última terça-feira (4), dia da independência dos Estados Unidos, um juiz federal emitiu uma liminar proibindo oficiais do governo do presidente Joe Biden de entrarem em contato com funcionários de redes sociais. 

A liminar veio após uma ação movida pelos procuradores-gerais dos estados de Louisiana e Missouri, ambos republicanos. Segundo eles, Biden estaria tentando censurar opositores no ambiente virtual, utilizando do poder da Casa Branca para pressionar plataformas digitais a removerem postagens de cidadãos estadunidenses.

O processo envolve postagens com desinformações sobre a pandemia de COVID-19 e a integridade das eleições de 2020. De acordo com os procuradores, a Casa Branca teria ferido o direito à liberdade de expressão, garantido pela Primeira Emenda da Constituição, ao cobrar plataformas para que identificassem e derrubassem tais postagens.

A liminar proíbe que diversos oficiais do alto escalão do governo tenham qualquer tipo de interação com funcionários de redes sociais, dentre eles os Secretários de Saúde e Segurança Interna, chegando até ao Cirurgião-Geral dos Estados Unidos.

O governo entrou com uma ação na quinta-feira (6) pedindo a derrubada da liminar. A Casa Branca afirma não haver censura por parte do governo federal e que a limitação prejudicaria os esforços de combate às fake news no país. Na segunda-feira (10), o pedido do governo foi negado.

“Não parece realmente entrar no que nós consideraríamos os princípios fundamentais da censura”, afirma Roy Gutterman, professor de comunicação da Syracuse University e diretor do Centro Tully de Liberdade de Expressão. Segundo o professor, “parece que se tratavam de críticas de oficiais do governo, talvez algumas críticas fortes, talvez algum encorajamento sutil para se derrubar conteúdos, mas não parece ter chegado ao nível de um oficial do governo dizer ‘não, você não pode publicar isso’”.

Desde 2016, com a eleição de Donald Trump, a questão das fake news é central nos Estados Unidos, assim como em todo o mundo. Ainda no ano passado, a então porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, falou do assunto ao ser perguntada sobre a compra do Twitter por Elon Musk.

“Nossas preocupações não são novas”, afirmou Pskai em 2022, “há muito tempo conversamos, e o presidente há muito tempo fala sobre suas preocupações sobre o poder das redes sociais, incluindo o Twitter e outras, para espalhar desinformação, assim como a necessidade de essas plataformas serem responsabilizadas”.

Segundo as palavras do juiz Terry A. Doughty, que concedeu a liminar, as evidências mostram um cenário quase distópico. Na decisão, o juiz afirma que  o governo parece ter assumido o papel de Ministério da Verdade, em alusão ao livro 1984, de George Orwell.

Para o cientista político John Beck, especialista em Primeira Emenda e liberdade de expressão, porém, as redes sociais demonstram não ter interesse em combater as fake news sem que exista alguma pressão externa.

“As redes sociais não querem se autocensurar”, disse Beck em entrevista ao Brasil de Fato, “nós vimos isso em relação a Elon Musk, o Twitter e outras plataformas digitais. Eles preferem deixar tudo passar. Talvez eles censurem alguma coisa, mas eles preferem não fazer muito e certamente preferem não receber esses pedidos do governo ou de qualquer governo, na verdade”.

Mentira protegida pela constituição

A batalha judicial criará um importante precedente que decidirá os rumos não só do combate às fake news, como também da leitura da famosa Primeira Emenda da Constituição. A corte que decidirá o caso é conservadora, o que tende a ser um desafio para Biden. Caso o processo chegue à Suprema Corte, as chances do governo também não são boas.

Garantidora da liberdade de expressão, a Primeira Emenda protege até mesmo discursos de ódio e de apologia ao nazismo. Um pilar do sistema jurídico dos EUA que pode ser usado contra o próprio sistema democrático.

Roy Gutterman argumenta que “a mentira para uma pessoa é a verdade para outra”. Ele explica que “mesmo a mentira, dependendo do contexto, pode ser permitida. É muito difícil criar uma regra sólida sobre algo que envolve uma coisa tão abstrata e aberta à interpretação”.

Os defensores de um controle maior sobre as fake news, porém, afirmam que uma ação mais contundente do governo é importante. Mais que isso, é fundamental para garantir que discursos perigosos, como teorias da conspiração sobre a COVID-19 ou mesmo aqueles que incitaram a invasão do Capitólio, não se propaguem.

“A tradição americana é a de tentar não interferir com a liberdade de expressão, a não ser que vá tão longe ao ponto de tentar fomentar uma ação perigosa”, explica John Beck, “as pessoas podem falar qualquer coisa, mas se começarem a pedir por algum tipo de ação […] ninguém pode gritar 'fogo!' em um teatro lotado, porque isso levaria a pisoteamentos, pessoas pulando umas nas outras, poderia levar a mortes e acidentes. Um discurso perigoso, como o que pode encorajar pessoas a invadirem o Capitólio dos EUA”.

Edição: Thales Schmidt