Em busca da taça

A última Copa da Rainha: conheça a história de Marta, a melhor jogadora de todos os tempos

Em 6 anos, a menina do sertão alagoano se torna a melhor do mundo; hoje protagoniza a luta por igualdade no futebol

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Marta, aos 17 anos, na sua primeira Copa do Mundo em partida contra a França, em 2003 - Tim Sloan/AFP

"Rainha do futebol", a melhor jogadora da história, Marta Vieira da Silva estreia na próxima segunda-feira (24) a sua sexta e última Copa do Mundo. Aos 37 anos, acumula recordes. Eleita pela Fifa a melhor jogadora do mundo por seis vezes, sendo cinco consecutivas, é a maior artilheira da seleção brasileira - masculina e feminina. 

"A pessoa que ela é, palavra nenhuma vai descrever", declarou Kerolin, atacante da equipe que disputa a Copa pela primeira vez, ao dizer que o sonho de conquistar o título é também para coroar a trajetória de Marta.  

"Uma coisa que temos muito em nossa mente é trazer esse caneco para ela, porque ela merece, pela história que ela tem, por quem ela é", contou Kerolin no bate-papo Rainhas da Copa, citando que o time se inspira na conquista da Argentina na Copa do Mundo masculina de 2022, que deu ao Messi o título que lhe faltava.  

Depois de quase 11 meses se recuperando de um rompimento do ligamento cruzado do joelho, Marta voltou aos gramados vestindo a camisa do Brasil em fevereiro deste ano. Ao longo de mais de 20 anos de carreira, ela participou ativamente do processo que elevou o patamar do espaço e reconhecimento do futebol feminino.  

Nesta Copa feminina de 2023, pela primeira vez foi instituído no Brasil ponto facultativo para servidores públicos não irem ao trabalho nos dias de jogos da seleção. Essa é a segunda vez na história que o campeonato vai ser transmitido em TV aberta.  

Além disso, no início deste ano a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anunciou que todas as equipes que participam do Campeonato Brasileiro deverão ter, obrigatoriamente, equipes femininas. Desde 2019, a regra vale apenas para as que disputam a série A.  


Na Austrália e Nova Zelândia, seleção brasileira busca o seu primeiro título em Copa do Mundo - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Tudo isso era quase impensável quando Marta começou a jogar bola. Ainda assim, para ela, ainda falta muito. Nas oitavas de final da última Copa do Mundo feminina, em 2019, o Brasil foi eliminado por 2x1 pela França em um jogo acirrado, na prorrogação. Instantes depois do apito final, no calor deste momento e com lágrimas nos olhos, Marta fez uma das suas falas mais marcantes.    

"É querer mais, é treinar mais, é se cuidar mais, é estar pronta para jogar 90 e mais 30 minutos, quantos minutos for. É isso que eu peço para as meninas". E então ela se volta para a câmera, evidenciando que já não é mais com a repórter que fala.   

"Não vai ter uma Formiga para sempre. Não vai ter uma Marta para sempre. Não vai ter uma Cristiane. E o futebol feminino depende de vocês para sobreviver. Pense nisso. Valorize. Chore no começo, para sorrir no fim", termina categórica, com uma frase que sintetiza sua própria caminhada no futebol.  

A menina de Dois Riachos 

Marta nasceu em 19 de fevereiro de 1986, sete anos depois da revogação da lei que, ao longo de 38 anos, proibiu o futebol feminino no Brasil. Natural de Dois Riachos, uma cidade de 11 mil habitantes no sertão de Alagoas, ela foi criada pela mãe e a avó. O pai deixou a família quando Marta tinha um ano de idade.  

Sua casa era um salão com telhado de zinco e cômodos divididos por tecidos. Ali cresceram ela e os irmãos mais velhos, Angela, José e Valdir. Tereza Vieira criou os filhos trabalhando na prefeitura, com limpeza e servindo café.    

"Só entrei na escola com 9 anos. Apesar de a escola ser pública, minha mãe não tinha dinheiro para o material. Faltava tudo lá em casa. Comer um doce, tomar um refrigerante, essas coisas só eram possíveis quando estávamos na casa de algum parente que tinha uma situação melhor. Mas não passamos fome", contou Marta em entrevista à TPM

Com a mãe no serviço boa parte do tempo, a menina ficava na casa da avó e foi ali, aos 6 anos, na brincadeira com os primos, que começou a jogar bola. Além dela, só meninos. Descalça no chão de terra, começou ali a enfrentar - às vezes no tapa – as ofensas, machismos e gritos de "mulher-macho" que tantas vezes ouviria.  

A família leva jeito para o futebol. Os primos de Marta eram considerados os craques da cidade. Até hoje, eles têm um time amador, o CSA de Dois Riachos, apelidado de Rasga Bola.  

Tereza voltava do trabalho e fazia que não via quando passava pela filha jogando no meio dos meninos na rua. Achava estranho, mas não implicava. Em diversas entrevistas, Marta ressalta que a mãe é sua maior inspiração.  

"Ela teve que se virar com quatro filhos numa cidade muito pequena, no sertão de Alagoas, onde a dificuldade é 10 vezes mais, por não ter muita opção de trabalho. Ela não conseguiu fazer uma faculdade, enfim, ir para escola. A gente que, aos poucos, foi ensinando ela a escrever o nome. Mas a força de vontade dela, a perseverança com que criou os filhos, foi o que me motivou", relata Marta em depoimento à ONU News.  

"A gente luta constantemente para que as pessoas possam ter uma vida decente", acrescenta a jogadora. Não "ficar rico, viver no luxo", defende, se diferenciando um tanto do estereótipo de ostentação de grande parte dos atletas de ponta do futebol masculino. "Mas sim ter uma vida decente, ter onde morar, o que comer, o que beber." 

Além da mãe, figura importante na história de Marta foi seu primeiro treinador. José Júlio de Freitas, o Tota, é descrito por ela como seu "escudo". Brigava com todo mundo que a insultasse ou que queria impedi-la de jogar. Muitas vezes, comprou material para a menina do próprio bolso.  

Permitiu que ela jogasse no seu time – de novo, era a única menina. Enquanto os garotos se reuniam no vestiário, ela colocava a roupa masculina, com os calções passando dos joelhos, no banheirinho ao lado. Até hoje, Tota dá aulas gratuitas de futebol para crianças num ginásio que leva seu nome, o único coberto de Dois Riachos.    

Na TV, Marta não encontrava referência feminina. Assistia os jogos masculinos e gostava, especialmente, de ver o Rivaldo. Canhoto como ela, vestia a  camisa 10 da seleção brasileira. "Era tudo o que eu queria atingir também, né", disse em vídeo gravado pela CBF.  

Naquela época, mal imaginava que atingiria. Se contentava ainda em disputar a Copa Infantil de Futsal da região, que acontecia na cidade vizinha, Santana do Ipanema (AL). No ano seguinte em que brilhou no campeonato, as ameaças dos meninos de que, se tomassem mais uma caneta dela, quebrariam sua perna, se intensificaram.  

O técnico de um dos times disse que se ela jogasse, retiraria sua equipe do campeonato. O torneio, então, mudou de nome. Virou Copa AABB de Futsal Masculino. O organizador da competição, Luiz Euclides dos Santos, apesar de ter cedido à pressão, foi fundamental para a carreira de Marta. Tempos depois, perguntou se ela tinha interesse de fazer testes no Fluminense e no Vasco da Gama, tinha contatos no Rio de Janeiro. Ela não titubeou. 

Quando não estava com a bola nos pés, Marta se virava para ajudar no sustento de casa. Empurrava carrinho de mão na feira, vendia roupas, sacolés, lavava pratos na casa de famílias conhecidas. Quando chegava o caminhão de feijão, pedia para colher o resto dos grãos que sobravam dentro do veículo. Às vezes levava para casa, às vezes vendia no armazém.  

Cidade grande 

Foi desse jeito, e também com doações, que conseguiu juntar R$ 360 para a viagem ao Rio. Marta tinha 14 anos e o ano era 2000, faziam quatro anos que o futebol feminino tinha se tornado um esporte olímpico. Na plataforma da rodoviária, dona Tereza chorou.    

Em uma carta que escreveu para si mesma quando jovem, publicada em 2015, a atleta começa com "Querida Marta de 14 anos de idade, entre no ônibus. Não pense nisso… No quanto você está assustada… No quanto você está nervosa… No quanto todo mundo disse que você não podia fazer isso… Que você não deveria fazer isso…"

"E você sentia que a mãe não estava lá por você. E, de certo modo, ela não estava mesmo", ela segue falando com a criança que foi. "Ela nunca teve a chance de ir aos jogos ou assistir a você jogar", relembra. "Mas ela está lá por você. Porque todas as vezes – todas as vezes – que alguém na cidade chegava para conversa, ela sempre, sempre, dizia a mesma coisa: 'deixa ela'". 

Depois de três dias de uma viagem em que tentava dormir pouco para não perder, pela janela, a paisagem do mundo fora de Dois Riachos antes nunca visto, Marta chegou à capital carioca. No Vasco se deslumbrou ao ver, pela primeira vez, um campo com mulheres jogando futebol. No primeiro toque que deu na bola o chute foi tão forte que acertou a cara da goleira e, ainda assim, garantiu o gol - com bola, com goleira, com tudo.  

Nem chegou a fazer o teste no Flu. No primeiro dia já foi selecionada pelo Vasco e fechou um contrato em que não tinha salário, mas uma ajuda de custo de R$ 400. Antes de completar 15 anos já era a melhor jogadora do campeonato brasileiro sub-17. 


Carteirinha de Marta da Federação de Futebol do Estado do RJ, quando jogava no Vasco / Divulgação

Em 2002, para lidar com sua crise financeira, o Vasco resolveu extinguir o time feminino. Devastada, Marta se virou como pôde. Jogou o campeonato paulista pelo São José do Rio Preto e depois viveu pouco mais de um ano em Belo Horizonte, jogando pelo Santa Cruz. Mas foi em 2003, na Copa do Mundo feminina, que sua carreira daria uma guinada.  

Do Brasil para o mundo 

Como Pelé quando estreou na Copa, Marta tinha 17 anos. O Brasil perdeu nas oitavas de final para a Suécia, mas o jogo de Marta, que marcou três gols no torneio, chamou a atenção do presidente do clube sueco Umeå IK, que estava na plateia.  

Naquela época uma emissora da Suécia transmitiu uma reportagem especial sobre o Robinho, que se destacava no Santos, e acrescentou, como nota de rodapé, um trecho sobre futebol feminino. Citou uma jovem promissora, de nome Marta Silva. 

Quando o telefone tocou e ela ouviu um homem com sotaque de português de Portugal dizendo se tratar de uma proposta da Suécia, Marta teve certeza: era trote. Só que não. Na carta a si mesma jovem, ela dá o spoiler: "Você vai se tornar uma atleta na Suécia. Honestamente, sem ir para a Suécia você não vai se tornar a jogadora que você é. E é lá que começa a ficar divertido". 

"Bem, na Suécia, isso significa trazer um pouco de seu estilo brasileiro de jogo para os gramados. O jogo será um pouco…amarrado, um pouco… preso. Um pouco… sistemático. Ensine a eles, Marta — como improvisar, como eles podem se expressar", segue ela. "E faça história".  

Fez. Colecionou títulos e artilharia por onde passou. Depois de quatro anos na Umeå IK, jogou no Los Angeles Sol (EUA), Santos, FC Gold Pride (EUA), New York Flash (EUA), Tyreso (Suécia), FC Rosengard (Suécia) e está, atualmente, no Orlando Pride (EUA). 

Neste clube que conheceu as últimas mulheres com quem publicamente anunciou se relacionar. Ao mesmo tempo em que nunca deu entrevistas sobre ser parte da comunidade LGBTQIA+, diferentemente da forma como o tema é tratado no universo do futebol masculino, Marta posta aberta e naturalmente sobre seus relacionamentos com outras mulheres. Chegou a se tornar noiva da zagueira do Orlando Pride, Toni Deion, mas o término aconteceu em 2022. Atualmente namora outra jogadora da equipe, Carrie Lawrence.

Em 2006 Marta voltou, pela primeira vez, à sua cidade natal. Já tinha sido escolhida pela FIFA como a melhor do mundo. Foi recebida em festa. Mesmo pelos que a insultavam quando criança. Hoje o portal de entrada do município tem os dizeres: "Bem vindo a Dois Riachos, terra da jogadora Marta".  

Copa do Mundo 

China, Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2007. Semifinal contra os Estados Unidos. O Brasil já ganhava de 3x0 (um gol contra, um de Formiga, outro de Marta). A camisa 10 recebe a bola na ponta esquerda e fica de costas para a marcadora. Seu corpo vai para a direita, mas ela manda a bola para a esquerda.  

Com um toque de calcanhar, Marta e a bola – cada uma de um lado – deixam a estadunidense para trás. O público ovaciona no estádio. Ela invade a área, corta outra zagueira e marca o que talvez seja o gol mais bonito da sua carreira. É considerado um dos mais lindos da história da Copa feminina. 

Essa foi a vez que o Brasil foi mais longe no torneio. Não conseguiu arrancar a taça da Alemanha. Ainda assim, Marta foi a artilheira, escolhida a melhor jogadora da Copa e recebeu o prêmio Bola de Ouro. Em 2015, Marta chegou ao gol 110 pela seleção e superou o Pelé como a pessoa que mais marcou vestindo a camisa.  

Em 2019, um ano depois de aceitar o convite de ser embaixadora global da Boa Vontade pela ONU Mulheres, Marta faz um protesto durante a Copa do Mundo feminina, realizada na França. Logo no primeiro jogo que entrou igualou, com 16 gols, a marca do alemão Miroslav Klose como maior goleador em Copas do Mundo. Também se tornou a primeira da história, entre homens e mulheres, a marcar em cinco edições do torneio. 

Depois de atingir essas marcas ao balançar as redes num pênalti contra a Austrália, apontou para a chuteira preta que, ao invés de patrocínio, tinha um símbolo azul e rosa da campanha "Go equal", pela igualdade de gênero. Agora, às vésperas da Copa de 2023, Marta lançou com a Centauro uma marca de roupas esportivas com esse mote.  


Ao lado de Formiga, Marta protesta por igualdade de gênero em Copa do Mundo de 2019 / Pascal GUYOT / AFP

Igualdade   

"A Marta atleta se sente realizada. Mas o maior sonho mesmo é sentir que a nossa modalidade está caminhando para frente", expôs a jogadora em entrevista à CBF.  

"Que o futebol feminino não é só uma promessa. É uma realidade. Que as meninas possam mesmo sonhar em ser atletas, seguir uma carreira, viver do futebol. Sentar depois no futuro, na minha casa, no sofá e ver o futebol feminino na TV como algo normal, constante", defendeu. 

Em entrevista dada depois de assumir o posto na ONU voltado à equidade no esporte, Marta destacou que a conquista de taças não pode ser condicionante para que, independente de gênero, haja igualdade de condições.  

"Acho que a mudança será na gente. E a gente espera obviamente que isso mude em relação a tudo. Mas não é hora de impor isso para a gente, que a gente tem que ganhar um título para mudar a situação. A situação tem que mudar e todo mundo sabe que tem que mudar", enfatiza.    

Na ocasião de um dos tantos prêmios que recebeu, desta vez da ESPN em 2018, Marta foi categórica no discurso político. "Quero dedicar essa linda homenagem a todas as mulheres e meninas que lutam. A todas as profissionais do esporte, comentaristas, que a cada dia vem mostrando uma dedicação enorme e quebrando barreiras. É justamente por causa disso tudo que a gente continua na luta e não vai desistir. Nunca". 

O propósito, afirmou Marta, emocionada, é "simples". "Igualdade de gênero. Igualdade para todas e todos. Que tenhamos total liberdade para escolher o que a gente quer fazer. Seja no esporte ou em qualquer outra atividade".   

Edição: Leandro Melito