Entrevista

'O futebol feminino é uma metáfora para o exercício de liberdade'

Em conversa com o BdF, historiadora fala sobre a potência da modalidade e sobre os obstáculos para o futuro

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

A jogadora Ary Borges comemora um dos gols na primeira partida da Copa de 2023 com a colega Kerolin - © Brenton Edwards / AFP

Quatro décadas após a formação da primeira seleção brasileira feminina de futebol e com a modalidade recebendo os primeiros e históricos incentivos públicos e das federações para crescer, a luta pela igualdade no esporte parece ter chegado a um ponto único. 

Apesar de ainda carecer de investimentos, formação e políticas de incentivo, a bola jogada por mulheres "furou a bolha" na Copa do Mundo de 2023. A expressão foi usada pela historiadora do esporte Aira Bonfim, que conversou com o Brasil de Fato sobre o tema. 

Neste mês ela lançou o livro Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941), que trata da história da modalidade entre mulheres e da conjuntura que levou à proibição em 1941, no governo de Getúlio Vargas. A obra tem produção independente e já está disponível para aquisição

:: Futebol feminino surge nos anos 20, é proibido até 79 e enfrenta até hoje o machismo ::

Aira falou sobre os impactos dessa jornada na atualidade e as oportunidades que a paixão pelo esporte pode gerar para o país. "Dentro dessa história, temos mulheres periféricas, pretas, lésbicas, representantes do Nordeste recebendo o protagonismo, o que, talvez, em muitas áreas da sociedade não consigamos fazer. Esse futebol se torna uma metáfora para esse exercício de liberdade."

Ela também tratou da obrigatoriedade de que grandes clubes tenham times femininos no Brasil e na América do Sul e sobre a Estratégia Nacional para o Futebol Feminino, lançada pelo governo federal no início deste ano. A historiadora lembrou da importância da formação de base e dos debates políticos e sociais impulsionados pela modalidade.

"Nenhuma conquista é dada. Todas elas, de alguma forma, são tensionadas o tempo inteiro. A história nos ensina isso. Essas mulheres brasileiras já conquistaram muitas coisas no futebol. Quase nos permitimos esquecer que brasileiras já encheram o Estádio do Pacaembu com 80.000 pessoas em 1940. Por vezes negligenciamos e quase apagamos essa história. Esse futebol é muito oportuno para não esquecermos das nossas histórias. Não esquecer das violências, não esquecer das proibições."

A pesquisadora se refere à histórica partida entre os times femininos Cassino do Realengo e Sport Club Brasileiro, que reuniu dezenas de milhares de pessoas no Pacaembu. De acordo com jornais da época, a partida empolgou o público, mas desagradou conservadores. A reação ao crescimento do esporte jogado por elas, levou à proibição no ano seguinte. 

Confira os principais trechos da conversa seguir e ouça a íntegra no tocador de áudio abaixo do título deste matéria.

Modalidade cresceu

"O avanço é nítido e é uma percepção que vai muito além do pesquisador, do historiador ou até mesmo das pessoas que acompanham o nicho que é o futebol feminino. Podemos até pensar como uma bolha e essa bolha estourou.  

Se alguém não buscava informações antigamente, não conhecia sobre essa atuação do esporte de alto rendimento, principalmente. Agora você consegue ser afetado de outras maneiras. Você liga a televisão, tem propaganda, divulgação do maior do torneio mundial, os próprios campeonatos nacionais, transmissão tanto em TV aberta quanto fechada, mas também permitindo uma manutenção dos meios de comunicação alternativos, que deram muita visibilidade para a modalidade quando essas empresas de comunicação hegemônicas, por vezes, não queriam falar sobre esse futebol. 

Não poderia deixar de destacar a internet como um veículo muito importante dessa disseminação, de contribuir com a visibilidade para a modalidade que tenta se profissionalizar. Eu acho que ainda é um esforço a ser conquistado e perseguido.  

É um esforço de educação, uma vez que as meninas ainda não têm tanta acessibilidade ao aprendizado desse futebol e de uma comunicação de maior qualidade. Não se trata apenas de uma empresa (de comunicação) aderindo à modalidade, mas ela também se reeduca, com questões de pautas feministas e com outras proposições de temas transversais na sociedade, como o próprio racismo e homofobia, uma vez que é a partir desse futebol feminino que conseguimos ter uma transparência em relação a afetividade das próprias jogadoras.

Então, falar disso com mais clareza, com mais paz, com mais tranquilidade, é algo que, infelizmente, o futebol masculino ainda deixa muito atrás. Consequentemente, já desde 2015, os movimentos feministas e os movimentos de mulheres em geral do Brasil e do mundo permitiram que estivéssemos, hoje, colhendo frutos de luta. Nunca foi uma concessão das entidades esportivas, nunca foi uma concessão das empresas patrocinadoras, nunca foi nenhuma concessão masculina. 

O futebol não nasce popular. Ele tem um histórico de lutas, inclusive de lutas masculinas. Desde as suas legislações iniciais temos interrupções, proibições, que não afetaram só as mulheres, mas homens trabalhadores braçais, homens negros. Então acho que a história das mulheres é quase que uma tradução de uma oportunidade, de uma educação que podemos ter pelo esporte. Para melhorar a qualidade, não só dos atletas, dos praticantes, das pessoas que trabalham, mas também da própria população, que ele se torne uma metáfora de liberdade na vida."

Times femininos nos grandes clubes

"Novamente o futebol aparece como uma grande ferramenta para equiparar algumas desigualdades. A desigualdade de gênero é apenas um fator que atravessa o futebol. Há várias violências que atravessam o futebol masculino também. No entanto, por vezes, desmobilizamos a força de transformação a partir dessa modalidade, que está em um outro patamar. 

Talvez, quando olhamos essas estruturas todas de mercado, quem esteja fora da curva seja o futebol masculino. Você tem cada vez menos capacidade de interferência e de mobilização por meio dos atletas, dos clubes - que agora são empresas - das entidades esportivas. 

No caso das mulheres, temos o mundo inteiro ali – uma vez que a Fifa é quase uma ONU, pensando nas suas representatividades - com a cobrança em relação a essas desigualdades e as faltas de oportunidades em geral de as mulheres fazerem parte desse universo futeboleiro. Seja por meio da modalidade de futebol feminino, mas também como um futebol de mulheres trabalhando com esse esporte, inclusive no seu nicho masculino, nas bases, em todas as suas variações. 

É importante ressaltar que essas determinações têm vindo de cima para baixo via Fifa. Não é algo que acontece porque os dirigentes são bonzinhos, mas sim é uma demanda social, que surge de muitas frentes diferentes. Os movimentos de mulheres, há muito tempo, já afetam a própria entidade. Desde a década de 1970, quando não existia uma oficialidade em torno da modalidade de mulheres que jogavam bola.

Então, também existe interesse da entidade de centralizar essas decisões. Porque dá dinheiro sim o futebol feminino. Isso foi uma grande balela, uma grande fake news que nos fizeram acreditar. Assim como que o jogo é feio, que o jogo é lento e tantas outras mentiras.  

Mais recentemente, por meio dessa pirâmide de estruturas de poderes das entidades, temos a Conmebol com essa determinação que vai orientar os países de América do Sul e, de alguma forma, ela vai fazer essa orientação para que seja cumprida uma lista de regras. Entre essas regras temos um investimento em uma representação do clube, com um projeto de futebol feminino.  

É importante pensar que, por mais que aparente ser uma reparação histórica reparadora, nunca é para sempre. Nem precisa. É um sistema de qualidade desse clube, uma vez que ele tem esse compromisso de participar dos maiores eventos que essas instituições de futebol estão promovendo na América do Sul e, consequentemente, no mundo. 

Há outros itens. Por exemplo, segurança do vestiário, dormitório da base, tamanho do campo, condições estruturais de segurança. Até o momento foi necessário revalidar esses compromissos porque os clubes não estavam colocando em prática. Para desenvolvermos uma modalidade, nada melhor do que uma estrutura que já existe, já está pronta. Desde os vestiários, academia de ginástica, toda a equipe contratada por esses clubes, que já davam assistência para as bases masculinas.  

Tudo isso é um investimento que, de alguma forma, pode voltar e ser aprimorado e melhor aproveitado para desenvolver esse futebol na América do Sul e, consequentemente, nas estruturas mundiais, como está acontecendo nos dias de hoje. É nítido que existem projetos diferentes. Essa seriedade ainda não é cobrada do jeito que deveria ser. As federações de cada um dos estados do Brasil não atuam da mesma maneira em relação aos projetos femininos.  

Ainda existe muito descaso, muita desigualdade, falta de compromisso e falta de mulheres, inclusive dentro desses bastidores. Claro que os homens podem e deveriam trabalhar com elas, mas eu acho que é mais urgente ainda oportunizar que mulheres competentes possam a ascender a esses cargos." 

Estratégia Nacional para o Futebol Feminino 

"Nós saímos das trevas em relação ao desenvolvimento esportivo para mulheres. Especialmente pensando que esse esporte é uma ferramenta muito acessível e popular, no que diz respeito à afetação. Não quer dizer que esse esporte é acessível às pessoas em 2023. Cada vez mais temos uma condição de menos obrigatoriedade de acesso de crianças e adolescentes nas escolas à prática de educação física, por exemplo. Temos menos espaços nas grandes cidades para prática de lazer e esportes e, de alguma forma, temos também uma cultura um pouco reducionista, que, por vezes, só oferece o futebol. 

O futebol talvez seja mais fácil de se aprender a jogar para oportunizar que crianças experimentem modalidades, conheçam esportes, brinquem os esportes. Para que se tornem atletas, se quiserem, seja para olimpíadas, paraolimpíadas e qualquer outra competição municipal, regional. 

Tudo isso é muito importante. É um ciclo. Quando reconhecemos nossos ídolos e nossos atletas, fomentamos a base. Nesse exercício de existência de um Ministério do Esporte, você visibiliza nessa ferramenta, esse lugar que nos compete no esporte. Um esporte que talvez, pela primeira vez, esteja sendo observado não só na alta performance no alto rendimento. Temos uma representante mulher. Ana Moser (ministra do Esporte) é atleta, tem representatividade. Ela é uma mulher lésbica, então, de alguma forma, também atravessa muitos preconceitos em torno desse universo das mulheres que praticam esportes. 

Nos discursos que temos ouvido, ela tem incentivado muito essa acessibilidade, de um esporte de lazer, que permite pensar de forma muito pragmática uma política de cidades e de saúde. Uma política de felicidade, que talvez ainda não tenha um ministério, tem um atravessamento direto em uma população que cada vez menos faz atividade física, que está viciada nos seus celulares, que está ansiosa. 

São temas do presente e aí, usamos o esporte, uma atividade de muitos anos, com a qual poderíamos ter uma qualidade de vida mais acessível a pessoas de um Brasil imenso e continental. Estamos sem informações em relação às estruturas esportivas no nosso país, porque ficamos muito tempo sem ministério. Tem um trabalho gigantesco de rearticulação das entidades esportivas. Para que, novamente, possamos ter compromissos de futuro.  

Isso não é fácil e demora. Demanda investimentos. Recentemente, tivemos uma parceria com o CNPQ para pensar uma ciência para promover essa reestruturação esportiva no nosso país. Eu sou fruto dessa ciência esportiva. Sei, na prática, o quanto colhemos ao longo desses 10 anos, o quanto entendemos melhor sobre futebóis, como trabalhamos no sentido de viabilizar políticas públicas por meio do futebol. 

Desde uma Copa do Mundo, como estamos vendo hoje - que é uma corrida, um esforço tremendo, que começamos em 2015, em rede, em coletivos de lugares muito diferentes - mas também viabilizando outras práticas, como o próprio futebol de várzea, o ambiente das torcidas organizadas. Todos esses espaços são ocupados por uma população não tão atlética assim, mas que vive e dá sentido de identidade para os esportes." 

Repetir o business do masculino? 

"Ao estudar o passado, temos capacidade de fazer análises mais críticas sobre esse lugar onde podemos chegar. Nesse sentido, acho que que temos capacidade de ser muito mais criativas do que o que já foi entregue em relação ao futebol masculino. De alguma forma, anarquizando um pouco o capital gerado por esses futebóis, existe um capital simbólico atribuído ao futebol de mulheres que talvez o futebol masculino esteja muito aquém. Para além de recursos, dinheiro e patrocinadores, acredito em um futebol em que possamos humanizar as pessoas a partir dele e reconhecer a humanidade delas. 

Dentro dessa história, temos mulheres periféricas, pretas, lésbicas, representantes do Nordeste, recebendo o protagonismo, o que, talvez, em muitas áreas da sociedade não consigamos fazer. Esse futebol se torna uma metáfora para esse exercício de liberdade. Essa oficialidade do futebol feminino se dá na década de 1980. (Faltam) esses reconhecimentos, mesmo que atrasados, a uma geração pioneira, que ainda está viva, mas não desfruta de uma aposentadoria. Temos uma oportunidade de reconhecer mulheres protagonistas, uma vez que isso também é uma novidade. 

O feminismo nos permite olhar para o tempo perdido, reinaugurarmos de outra maneira, com menos rivalidade, com mais empatia em relação as trajetórias das pessoas. A partir disso, olhando para o futuro, acho que é um futebol libertário. As mulheres podem ser o que elas bem entenderem a partir dessa profissão. De novo as redes sociais permitiram reconhecermos essas mulheres nessas diferenças. Talvez seja esse público feminino que tem transformado esse futebol. Se o futebol masculino, há 100 anos, foi feito de homens para homens, há pouquíssimo tempo atrás, esse futebol feminino também foi idealizado para consumo masculino.  

Não é à toa que houve tanta sexualização, um silenciamento em torno da sexualidade, das escolhas que essas que essas mulheres tinham, uma higienização da identidade dessas mulheres. São violências igualmente simbólicas. Hoje, temos condições de superar essas violências, a partir de uma mulher negra faz três gols numa abertura de Copa do Mundo, por exemplo. Também existe uma tensão nessa estrutura, que passa por um mercado ainda machista, misógino, excludente, elitista. Talvez tenhamos muita dificuldade daqui para frente para reavaliar o quanto conseguimos caminhar e qualificar uma estrutura profissionalizante para uma mulher que queira viver dessa vida de atleta.  

Nenhuma conquista é dada. Todas elas, de alguma forma, são tensionadas o tempo inteiro. A história nos ensina isso. Essas mulheres brasileiras já conquistaram muitas coisas no futebol. Quase nos permitimos esquecer que brasileiras já encheram o Estádio do Pacaembu com 80 mil pessoas em 1940. Por vezes negligenciamos e quase apagamos essa história. Esse futebol é muito oportuno para não esquecermos das nossas histórias. Não esquecer das violências, não esquecer das proibições.  

Quando alguém liga uma televisão e pode assistir uma Copa do Mundo, tem muitas mensagens colocadas ali, inclusive para pensarmos o que queremos, o que ainda continuamos fazendo errado. Se em 1941, durante o estado novo, proibimos o futebol feminino no que viria a se tornar o país do futebol, em 2023, somos o país maior quantidade de legislações em níveis municipal, estadual e federal que proíbem pessoas trans de competirem profissionalmente e em estrutura amadora.  

A festa é boa, mas a luta continua. Quero que, daqui a quatro anos, estejamos em dias de glória. Eu quero também essa taça para nós, quero um torneio sendo realizado nesse Brasil, uma vez que investimos muito do nosso sangue, da nossa energia e dos nossos recursos para construir estádios. Um futebol que nos permite conversar sobre todas essas questões sociais é um futebol muito potente. O masculino que aprenda conosco."

Edição: Thalita Pires