arena do povo

O teatro político brasileiro se encontra com os venezuelanos

Pouco praticado na Venezuela, o Teatro do Oprimido é uma ferramenta ideal para sua democracia participativa

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O Teatro do Oprimido, criado por Augusto Boal, é uma ferramenta ideal para a democracia participativa - Augusto Boal Institute

"Deu vontade de fazer parte!", exclama emocionada Carmen Navas, ao deixar o Teatro Nacional de Caracas onde, graças aos amigos cubanos e ao Festival Internacional de Teatro Progressista da Venezuela, a Companhia do Latão apresentou a peça O pão e a pedra. Na nação bolivariana - onde ao teatro e ao cinema ainda lhes custa representar a revolução - Sérgio De Carvalho traz a bomba do teatro épico com seus personagens sutis, contraditórios e, portanto, transformáveis. A obra estuda o momento político em que trabalhadores do setor metalúrgico - na maioria nordestinos recrutados por multinacionais - organizaram uma greve em 1979.

Carvalho escreve e mostra essa história popular do ponto de vista dos trabalhadores e trabalhadoras: a assembleia de 70 mil trabalhadores, a repressão policial, as lutas entre o velho e o novo sindicalismo (com voz off do jovem Lula como negociador), a esquerda estudantil, as igrejas progressistas capazes de organizar o mundo do trabalho.

Três horas apaixonantes em que as canções, o coro comentando a ação, a rotação do cenário, a metamorfose do operário João na operária Joana, os apartes e as citações revolucionárias nos ajudam a refletir sobre os "diferentes rumos possíveis do rio" (Brecht). Um teatro do "riso inteligente", uma aprendizagem coletiva onde cada "parte da vida" está ligada à história.

Para Sérgio, "o teatro é do povo e acredito que a força de uma ação dialética está na sua capacidade de ser viva e mobilizadora". As mãos que tentam buscar uma saída para o "sonho americano" da ditadura, as mãos dóceis, impertinentes, desconfiadas e rebeldes, as mãos que se submergem na carroceria da linha de montagem, a mão da mãe solitária que leva seu filho em casa, a mão ferida do novo empregado ou a mão que lava a roupa de trabalho, a mão que folheia a Playboy ou liga a televisão finalmente comprada, as tímidas mãos do casal de noivos empoleirados na roda gigante para tentar ver o mundo: todas essas mãos são também "nossas mãos, em outro lugar".

"Como construtora, representei mulheres vítimas de violência, junto com minhas amigas, porque algumas delas se calam, enquanto outras têm força para superá-lo." "Esta oficina mudou tudo para mim, entendi como passar do nível individual para o processo social", dizem Claudia e Yusgleidys, membras de um coletivo de autoconstrutoras, uma das muitas organizações de base da revolução bolivariana.

Julián Boal, convidado pelo festival venezuelano para ministrar uma oficina sobre o Teatro do Oprimido, fala sobre a importância de "quebrar a barreira entre quem pode falar de um palco e quem só tem o direito de ouvir". Pouco praticado na Venezuela, o Teatro do Oprimido é uma ferramenta ideal para sua democracia participativa. "O bom teatro político é sempre interessante em sua forma artística. Oferece a possibilidade de criticar os poderes e reconfigurá-los. Sua função é usar as técnicas teatrais mais críticas possíveis para ajudar a organizar o poder popular", explica Julian.

Essa relação fecunda e necessária entre o teatro político brasileiro e uma revolução em busca de imagens não para por aí. Em março de 2023, as autoconstrutoras participaram de uma oficina ministrada por Douglas Estevam, do Coletivo de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Douglas propôs que elas usassem suas próprias ferramentas e materiais para criar imagens, músicas e personagens.

Como Ursulina, que demorou a abrir a caixa de ferramentas do marido falecido e um dia pegou seu alicate para incorporar-se à obra. Ou Cláudia, a vendedora ambulante, que preferia continuar vendendo seus colares na rua até que Ursulina a convenceu a se juntar às construtoras. Ou Maira, a maquiadora, que veio com o seu estojo: "As minhas mãos já não servem apenas para iluminar a beleza da mulher venezuelana, mas também para a ajudar a construir a sua casa". Ou Miguel, o militar, cuja mulher exige que ele a abandone – "certeza que você tem uma amante na obra" – e que questiona o coro de mulheres em busca de uma ajuda. "Deixe ela vir e trabalhar com a gente!", elas respondem.

"De vendedora ambulante a construtora e agora atriz, sim, mudei muito", explica Claudia ao final da oficina. E Ircedia insiste: "nunca vamos parar de nos formarmos". Um convite que Sérgio de Carvalho, Douglas Estevam e Julian Boal já aceitaram, com o apoio do Movimento Sem Terra e da Escuela de Comunicación para los Movimientos Sociales Hugo Chávez. Julian propõe alternar formação, prática, reflexão e acompanhamento entre vários períodos formativos. E começar a trabalhar, por exemplo, com uma dupla de palhaços políticos nascidos dos movimentos de ocupação, para depois construir pequenas formas em torno do teatro do oprimido, antes de passar para formas mais elaboradas de teatro épico.


* Thierry Deronne: cineasta, pedagogo  e coordenador político pedagógico da Escuela de Comunicación para los Movimientos Sociales Hugo Chávez. 

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Chagas