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Rio de cachaça

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A primeira vez que desci o São Francisco foi em dezembro de 1969. A viagem começou às 9 horas da manhã, e lá pelas 10 fui ao bar - Catarina Barbosa/Brasil de Fato
Já pensou se este rio fosse de pinga e aquele afluente ali fosse de limão?

Estão de novo falando em colocar um trem-bala, para ligar São Paulo ao Rio de Janeiro em pouco mais de uma hora. Gosto muito de trem, mas não pretendo viajar nesse. Para mim, o gostoso das viagens de trem era o tempo que as viagens demoravam, e quase ninguém ficava sentado em seu lugar. A gente andava muito dentro dele, ia de um vagão a outro, conversava com todo mundo, contava causos, aprendia muito com isso.

Eu me lembro, por exemplo, que para ir de trem de Fortaleza ao Crato, no sul do Ceará, gastei quinze horas, se fosse de ônibus seriam umas sete horas. Mas não me arrependi nem um pouco: encontrei gente boa de conversa no trem e aprendi bastante. De Belo Horizonte a Salvador, gastei quatro dias. De São Paulo a Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, viajava só durante o dia, parava pra dormir, e a viagem durou seis dias.

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Mais devagar ainda, e muito divertida, era a viagem de vapor pelo rio São Francisco, de Pirapora, no norte de Minas Gerais, até Juazeiro, na Bahia, divisa com Pernambuco. Eram sete dias para descer o rio, a favor da correnteza, e doze pra subir.

Achava interessante que parecia que quase todo mundo se conhecia, só eu e uns poucos passageiros éramos de fora.

Nos 1.371 quilômetros de viagem, cada um que entrava era saudado por todo mundo.

A primeira vez que desci o São Francisco foi em dezembro de 1969. A viagem começou às 9 horas da manhã, e lá pelas 10 fui ao bar. Todas as mesas estavam ocupadas. Dois rapazes me viram procurando um lugar pra sentar e me chamaram pra compartilhar a mesa com eles.

Um deles era o José Fontes, filho de um comandante de vapor famoso no Vale do São Francisco. O outro não disse como se chamava. Depois de umas cervejas, perguntei seu nome e ele falou meio constrangido, que se chamava Gisélio.

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E explicou: o pai dele era apaixonado por uns livrinhos de bolso de uma série chamada “Gisele, a espiã nua que abalou Paris”. Queria ter uma filha para lhe dar o nome de Gisele. Veio um menino, ficou sendo Gisélio. Ficamos amigos.

No terceiro dia de viagem, depois de bebermos muita cerveja e muita cachaça, vi o Fontes de pé, contemplando um afluente do São Francisco. Sem eu perguntar nada, ele falou: “Já pensou se este rio fosse de pinga e aquele afluente ali fosse de limão?”.

Edição: Douglas Matos