DISPUTA JUDICIAL

Entenda: o que está acontecendo na Cruz Vermelha da Venezuela

Advogado Mario Villarroel foi afastado pela Suprema Corte após denúncia do Ministério Público; especialistas opinam

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
MP apresentou denúncia com o testemunho anônimo de oito trabalhadores - Federico Parra/AFP

O Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) da Venezuela destituiu o presidente da Cruz Vermelha venezuelana, Mario Villarroel, e nomeou uma junta interventora para a entidade. A sentença publicada no dia 4 de agosto veio após o Ministério Público abrir uma investigação contra Villarroel por supostos casos de "assédio e maus tratos" contra funcionários e voluntários da organização.

A decisão gerou críticas de diversos agentes civis no país e no exterior. ONGs e setores da imprensa classificaram a medida judicial como "preocupante" e afirmaram que ela teria acendido um alerta sobre possíveis ações do governo contra organizações civis.

A ação chegou a ser comparada com a decisão do governo da Nicarágua que ocorreu em janeiro deste ano, quando o Congresso decidiu fechar a Cruz Vermelha nicaraguense sob alegações de que a organização teria agido com parcialidade durante os protestos contra o presidente Daniel Ortega em 2018.

O Brasil de Fato conversou com o advogado venezuelano Jesús David Rojas, doutor em Direitos Humanos e coordenador do programa de pós-graduação da Escola Nacional de Magistratura da Venezuela, para entender melhor o tema.

“É um procedimento que, aparentemente, até o momento, parece transparente, nada está sendo escondido e, a princípio, ninguém está sendo atacado. Agora, o Estado venezuelano tem o dever de investigar qualquer pessoa que seja acusada de supostos atos irregulares”, afirma.

Para Rojas, o que ocorreu com a sede venezuelana da organização humanitária não pode ser comparado com o caso nicaraguense, pois o que aconteceu com a Cruz Vermelha da Venezuela foi uma ação judicial tomada pela Suprema Corte após um pedido do MP, enquanto que na Nicarágua ocorreu uma ação política, já que dependeu da correlação política dentro do Parlamento, que possui maioria do partido governista.

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Além disso, o advogado destaca que enquanto na Nicarágua a Cruz Vermelha foi fechada, na Venezuela a intervenção foi decretada “para manter a instituição funcionando". "O TSJ atua para preservar os interesses dos venezuelanos que requerem assistência sanitária, alimentar e humanitária da Cruz Vermelha venezuelana", afirma.

O professor explica que a intervenção decretada pela Suprema Corte venezuelana tem o caráter de medida cautelar e também serviria para evitar que atuais diretores da entidade obstruíssem as investigações, já que as acusações são contra toda a equipe de Villarroel.

 

Federação Internacional vai trabalhar em conjunto

Na última quarta-feira (09), a delegação da Federação Internacional de Sociedades da Cruz Vermelha (IFRC, na sigla em inglês) visitou Caracas e se reuniu com a junta interventora nomeada pelo TSJ. Organização autônoma de caráter internacional, a IFRC funciona como um elo entre o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), com sede em Genebra, na Suíça, e as Sociedades Nacionais, no caso, a Cruz Vermelha Venezuelana. De acordo com documentos publicados no site oficial do CICV, "cada um desses componentes tem a sua identidade legal e o seu papel próprios".

Pelas redes sociais, a Cruz Vermelha Venezuelana afirmou que recebeu os delegados da IFRC para "trabalhar conjuntamente com a junta reestruturante em um plano estratégico para garantir a integridade de nossos voluntários, atualizar nossos estatutos e promover eleições democráticas dentro de um prazo de 12 meses".

Além da missão da IFRC, chefiada pelo representante da Secretária-Geral, Walter Cotte, estiveram presentes embaixadores estrangeiros na Venezuela, como o argentino Oscar Laborde. Pelas redes sociais, ele afirmou que "as apresentações foram muito claras e interessantes" e que a embaixada argentina se dispõe a "colaborar em tudo o que pudermos para a boa conclusão do processo".

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Um dia depois do encontro, na última quinta-feira (10), Cotte também se pronunciou sobre a reunião com a junta interventora. O representante da IFRC disse que a entidade está comprometida em “trabalhar em conjunto” com a nova direção da Cruz Vermelha Venezuelana e que havia se reunido também com a vice-presidente da Venezuela, Delcy Rodríguez.

"Para garantir que a Cruz Vermelha Venezuelana seja sustentável, imparcial, neutra, independente e autônoma, nos comprometemos a trabalhar de maneira articulada para cumprir com as tarefas solicitadas pelo TSJ à junta reestruturante", disse.

Antes da visita, a IFRC havia emitido um comunicado afirmando que "qualquer intervenção nas nossas Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha levanta sérias preocupações" e que a entidade possui "seus próprios mecanismos para lidar com situações quando um membro de uma Sociedade Nacional pode ser considerado um contraventor".

Ao Brasil de Fato, Eder Peña, pesquisador da questão humanitária na Venezuela, afirma que a visita transmitiu “segurança e transparência” ao processo de intervenção. “A nova direção, em seu primeiro comunicado, disse que iria trabalhar em conjunto com seu referente internacional. E o referente internacional, agora, diz o mesmo. Então, até agora, não ocorreu nenhum problema, nenhum impasse, nada que poderia levar alguém a dizer que há algo obscuro no processo”, diz.

O advogado Rojas também afirma que a visita traz mais segurança ao processo, já que ela estaria "comprometida em trabalhar com a nova direção".

Como começou a investigação?

No dia 28 de julho, o procurador-geral da Venezuela, Tarek William Saab, anunciou a abertura de um inquérito contra Mario Villarroel "e sua equipe" por "suposto assédio e maus tratos contra voluntários e trabalhadores da Cruz Vermelha Venezuelana". De acordo com a decisão do TSJ, o MP apresentou a denúncia com o testemunho anônimo de oito pessoas, entre trabalhadores e voluntários da instituição, que teriam substanciado as acusações do procurador.

Denúncias de abusos supostamente cometidos pelo agora ex-presidente da Cruz Vermelha venezuelana não vieram apenas do MP. Segundo vítimas ouvidas pelo jornal El Estímulo, os supostos casos de assédio dentro da organização se aprofundaram nos últimos anos e Villarroel teria se utilizado dessas práticas para perseguir quem discordasse de suas decisões. Ao anunciar a abertura do inquérito, o procurador-geral venezuelano afirmou que a identidade dos voluntários e funcionários "serão preservadas durante a investigação".

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Políticos opositores e algumas organizações civis, no entanto, afirmam que há motivações políticas por trás da sentença. Isso porque o anúncio de Saab veio dias após o deputado chavista Diosdado Cabello dizer publicamente, durante um programa na TV estatal exibido no dia 19 de julho, que havia recebido denúncias sobre a atuação do agora ex-presidente da entidade. Segundo o parlamentar, Mario Villarroel e seu filho, Miguel Villarroel, que era vice-presidente da Cruz Vermelha venezuelana, haviam "utilizado a instituição para acumular poder e resolver assuntos pessoais".

As declarações de Cabello repercutiram de forma negativa na imprensa, que acusou o deputado de supostamente tentar "perseguir" organizações não governamentais no país. Para sustentar as acusações, muitos críticos citaram um Projeto de Lei apresentado pelo parlamentar em janeiro que teria a pretensão de regularizar e fiscalizar o financiamento de ONGs na Venezuela.

Durante seu discurso de apresentação do PL, o chavista afirmou que possuía "uma lista de ao menos 62 ONGs que operam com fins políticos" no país. O Projeto de Lei apresentado pelo deputado ainda não entrou em vigor. Ele foi aprovado em primeira discussão no Parlamento, mas ainda terá que ser submetido à consulta popular para retornar ao Congresso e, só então, ser votado novamente.

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Eder Peña explica que as suspeitas em relação ao trabalho de algumas ONGs ocorrem porque há, por parte do governo, a preocupação sobre financiamentos externos e possíveis motivações políticas das organizações. “Há muitos tipos de ONGs, algumas humanitárias e outras políticas. O governo sempre tenta não atrapalhar o trabalho das humanitárias, mas está visando ampliar a fiscalização sobre as organizações com outros focos de atuação”, explica.

Sobre a relação do governo com a Cruz Vermelha, Peña diz que ela sempre foi estável e que “muitas instituições do Estado, após a crise, passaram a recomendar que venezuelanos recorressem à Cruz Vermelha e tudo isso acontece com normalidade”.

“A relação da intervenção na Cruz Vermelha com motivos políticos é feita a partir de elementos soltos, porque na verdade que detonou foi o pedido de investigação feito pelo MP e está restrita ao tema trabalhista e do ambiente de trabalho que havia dentro da Cruz Vermelha, a menos que essa nova direção demonstre algo em uma auditoria e comece um processo de investigação mais profundo”, explica Peña.

Afinal de contas, a intervenção é legal?

De acordo com o advogado Jesús David Rojas, a intervenção na Cruz Vermelha Venezuelana “não tem nenhuma relação com o projeto de lei [apresentado por Diosdado Cabello] porque ele ainda não foi aprovado e, portanto, não está em vigor e não poderia ser utilizado pelo TSJ para justificar a decisão”.

Para ele, a jurisprudência adotada pelo TSJ para nomear a junta interventora está baseada no que a própria sentença da Corte afirmou serem "interesses difusos e coletivos dos cidadãos venezuelanos".

"São interesses das pessoas que precisam de assistência humanitária da Cruz Vermelha Venezuelana. Esses seriam os interesses difusos e coletivos que estão sendo defendidos, porque a Corte entende que a instituição não pode parar de funcionar enquanto ocorrem as investigações", diz.

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O TSJ, por sua vez, já anunciou os membros da junta interventora. Na presidência, estará o empresário Ricardo Cussano, ex-presidente da Fedecamaras, a maior entidade patronal do país. Após sua nomeação, ele afirmou que iniciaria "um processo de restauração da institucionalidade da Cruz Vermelha venezuelana".

Logo após a visita da Federação Internacional a Caracas, o presidente destituído da Cruz Vermelha venezuelana, Mario Villarroel, se pronunciou pela primeira vez sobre o caso. Em um vídeo publicado em suas redes sociais, o advogado nega todas as acusações feitas pelo MP sobre os supostos casos de assédio contra funcionários e diz que a Suprema Corte não respeitou sua presunção de inocência e direito à defesa.

Rojas afirma que, em tese, “a decisão do TSJ admite recurso que pode ser apresentado pelos citados uma vez que eles sejam notificados”. “Inclusive deveria ser feita uma convocatória pública para que qualquer pessoa que possa se sentir interessada no tema participe do processo e exponha o que bem entender, provas que corroborem ou que refutem as acusações”, diz.

Edição: Rodrigo Durão Coelho