ATUALIZOU O MAPA

Rússia lança novo livro de História nas escolas: guerra coloca pedagogia à serviço do Kremlin

Novos livros didáticos oficiais apresentam leitura histórica elogiosa de Putin e hostil ao Ocidente e à Ucrânia

Rio de Janeiro |
Estudantes de uma escola russa participam de cerimônia patriótica durante abertura do novo ano letivo escolar, em setembro de 2023 - Yuri Kadobnov / AFP

A guerra está cada vez mais presente no ensino das escolas russas. Em setembro foi dado o início do novo ano letivo no país, desta vez com uma novidade: os livros didáticos de História da Rússia para estudantes do ensino médio ganharam uma nova versão com atualizações referentes aos recentes acontecimentos ligados à Ucrânia e à relação da Rússia com o Ocidente. O livro, disponível na internet, compreende a história da Rússia desde 1945 até o início do século 21.

O projeto é assinado pelo ex-ministro da cultura e atual assessor presidencial russo, Vladimir Medinsky, e pelo ministro da Educação da Rússia, Serguei Kravtsov. Na apresentação dos novos livros escolares, eles forneceram detalhes sobre as mudanças do conteúdo e deixaram explícito que a forma com que a história contemporânea da Rússia relacionada à guerra da Ucrânia reflete a visão do Estado russo sobre os acontecimentos.

"As seções sobre as décadas de 1970, 80, 90 e 2000 foram reescritas radicalmente, e uma seção sobre o ano de 2014 foi adicionada. Ela vai até os dias atuais, incluindo a operação militar especial", explicou.

Na parte que compreende o período de 2014 até os dias atuais, Medinsky deixou transparecer que a leitura dos fatos históricos que levaram à eclosão do conflito na Ucrânia têm como fio condutor uma narrativa que isenta a Rússia de responsabilidades pelo começo da guerra.


Ex-ministro da cultura, Vladimir Medinsky, apresenta o novo livro didático sobre história da Rússia, lançado oficialmente nas escolas do país a partir de setembro de 2023 / Yuri Kadobnov / AFP

"Este é um tema com o qual todos se preocupam. Este é um tema que se desenvolveu e não começa em 24 de fevereiro [início da guerra na Ucrânia], mas começa com uma pré-história. Há uma história sobre os Acordos de Minsk, sobre os acontecimentos da guerra em Donbass de 2014 a 2020. Sobre as tentativas do nosso país para normalizar esta situação", declarou.

Já o ministro da Educação da Rússia foi mais explícito nesse sentido, afirmando que o livro didático foi "aprimorado" com os "fatos básicos que são relevantes hoje": "Após a conclusão da operação militar especial - após a nossa vitória, respectivamente - continuaremos a aprofundá-lo", disse.

"Hoje, uma guerra de informação foi desencadeada contra o nosso país, e é muito importante resistir a ela. Graças ao 'Programa de História Unificada', as lições intituladas 'Conversas sobre o importante' irão dissipar as falsificações que a Internet está repleta, aquelas informações não confiáveis que estão sendo espalhada. Isso permite que você vença a guerra da informação", destaca.

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Outro ponto que chama atenção nos livros didáticos é a atualização do mapa da Rússia, que apresenta o território expandido do país, incorporando as regiões anexadas do leste da Ucrânia durante a guerra. Para os críticos do projeto, os novos livros escolares são uma peça de propaganda das ações do governo russo e apresentam distorções dos acontecimentos referentes à Ucrânia. É o que explica o presidente do sindicato "Aliança dos Professores", Daniil Ken, em entrevista ao Brasil de Fato.

De acordo com ele, o problema começa na própria autoria do projeto, assinada não por autoridades do mundo acadêmico e pedagógico, mas por políticos. Ken especifica que Medinsky "é conhecido não como pesquisador, nem mais como ministro, mas ele inventou, apoiou, e patrocinou como ministro da Cultura, a disseminação de uma série de fatos históricos não comprovados e histórias desonestas, por isso a princípio ele não pode ser autor de um livro didático de história".

"Em segundo lugar, tem a questão sobre como esse livro escolar foi escrito. Não se trata de um livro acadêmico que tenha alguns erros ou falsidades diretas, mas pela própria linguagem na qual foi escrito, é um livro propagandista, que tem termos como o assim chamado ‘ocidente coletivo’, etc. O que representa mais a retórica da propaganda televisiva e não é para estar em livros escolares para estudantes", afirma.


Novos livros didáticos de história são lançados oficialmente em agosto de 2023. Livros têm mapas da Rússia atualizados com regiões ucranianas anexadas. / Yuri Kadobnov / AFP

No livro muitas vezes é mencionada a “agressividade” do Ocidente e a atitude negativa dos países ocidentais em relação à Rússia, contendo citações contundentes como “o objetivo do Ocidente é desmembrar a Rússia”, que poderia ser facilmente encontrada nos discursos oficiais do presidente Vladimir Putin ou outros membros de alto escalão do governo.

De acordo com o professor de História e dono de um popular canal de YouTube sobre história da Rússia, Alexander Shtefanov, o livro reflete uma visão da história “revanchista e cheia de ressentimentos” em relação ao Ocidente.

"Qualquer pessoa que abriu este livro provavelmente notou que havia muitas citações diretas de Putin, embora não rotuladas como citações. Os autores simplesmente traduzem as declarações de Putin para a linguagem do material educativo", disse em entrevista à Novaya Gazeta.

Shtefanov considera que é alarmante o fato de que a ideologia do Kremlin "já encontrou o seu caminho nos livros escolares". Por outro lado, ele observa que a parte ideológica se estabeleceu "em uma passagem relativamente pequena do livro didático", referente aos acontecimentos de 2014 até os dias de hoje, ou seja, na última parte do livro.

Dessa forma, o professor de história acredita que os danos pedagógicos ainda são baixos, porque grande parte do que foi adaptado da história do século XX permanece fiel aos livros didáticos antecessores. Mas se a parcela ideológica “se espalhar ainda mais, pode ser o início de um processo muito desagradável”, completa.

A adoção de um novo conteúdo escolar se insere em um projeto anunciado ainda no ano passado, intitulado "Conversas sobre o importante", que se baseia na inserção de atividades extracurriculares com temas ligados ao patriotismo e aos valores russos. Dentro do escopo destas aulas a princípio não nocivas e não diretamente atreladas à guerra, já havia uma construção da retórica de heroísmo do exército russo em sua operação militar e as justificativas da Rússia em suas ações na Ucrânia.

Com o novo ano escolar, essas aulas se tornaram mais oficiais no calendário escolar, assim como a versão russa sobre o conflito com a Ucrânia nas escolas. De acordo com Daniil Ken, o lançamento do novo livro didático faz parte de um aprofundamento desse processo.

Para ele, a adição de acontecimentos contemporâneos desde a anexação da Crimeia - nos livros escolares é classificada como "reintegração" ou "retorno à pátria" - até a atual guerra da Ucrânia tem um caráter “totalmente não escolar, mas simplesmente uma propaganda que justifica a guerra, elogia Putin”.

O presidente do sindicado "Aliança dos Professores" aponta que, por exemplo, quando o livro trata da situação política da Ucrânia, o conteúdo é categórico em afirmar que o país tem "regime político ilegal, que chegou no poder através de uma rebelião, uma ‘revolução colorida’". Daniil Ken não descarta que esse tópico é complexo e é uma discussão que tem seu mérito, no entanto, ele destaca que “quando se dá uma resposta fácil, qualquer resposta simples será desonesta”. “O novo livro escolar russo oferece uma resposta simples de que é um governo ilegal”, acrescenta.

O sistema de ensino na Rússia possui um documento oficial que se chama "Lista federal de livros didáticos", que é uma enumeração de livros autorizados para serem utilizados nas escolas. Durante o último ano, desde o início do projeto "Conversas sobre o importante" até o lançamento do novo livro didático, aumentou a pressão sobre o corpo docente nas escolas russas sobre qual material usar.

Daniil Ken aponta que a "Lista federal de livros didáticos" foi fortemente diminuída neste último ano, sobretudo os livros de história, estudos sociais, geografia e literatura. "São justamente aquelas matérias que devem formar a visão de mundo das pessoas, e os professores não conseguem escolher quais livros escolares usar, eles sentem muito que essa mudança do programa escolar é uma ordem política do Kremln", completa.

Edição: Thales Schmidt