11 de setembro de 73

'Nueva Canción Chilena' foi a trilha sonora da utopia socialista de Salvador Allende

Movimento sociocultural da década de 1960 segue inspirando gerações ao valorizar o povo e sua luta por dignidade

Brasil de Fato | São Paulo (SP) | |

Ouça o áudio:

Mural em Santiago homenageia Victor Jarra - Reprodução

A década de 1960 viveu espremida entre duas forças contrárias: a sensação de que mudar o mundo era possível e a repressão brutal de governos reacionários que se esforçaram ao máximo para impedir essas mudanças. 

Aqueles anos começaram com Fidel Castro e Che Guevara mostrando que o socialismo era possível, mesmo nas proximidades dos Estados Unidos. A revolução cubana inspirou jovens em toda a América Latina, que, preocupados com justiça social, passaram a valorizar como nunca as riquezas vindas da cultura popular. 

Nesse contexto, poucos movimentos socioculturais foram tão relevantes como a Nueva Canción Chilena, que, ao resgatar a musicalidade, as temáticas e a luta do povo mais carente, tornou-se a trilha sonora tanto do governo de Salvador Allende (1970-73) como segue inspirando os setores mais progressistas, décadas depois.

"O movimento da Nueva Canción Chilena talvez tenha sido um dos mais maduros de sua época", disse ao Brasil de Fato o pesquisador e sociólogo Francisco Prandi.

"Esse jeito de fazer canções, de pensar a cultura refletia uma conjuntura de muita ebulição, em que parecia ser possível tocar os céus com as mãos. O que artistas como Violeta Parra, a grande pioneira, Rolando Alarcón, Patricio Manns, Víctor Jara, Ángel e Isabel Parra, Inti Illimani e Quilapayún fizeram, foi se apropriar de elementos diversos da sua cultura e dar a eles um conteúdo social que não era apenas de denúncia mas também de afirmação de um novo mundo", explica. 

Prandi ressalta que, "como todo movimento cultural, não foi uma invenção que veio do nada". Suas origens vêm da década de 1950, principalmente com Violeta Parra (1917-1967). 

Parra passou muitos anos em andanças pelo Chile, aprendendo canções do povo, descobrindo uma sensibilidade que não encontrava eco na cultura socialmente aceita da época. Já um nome conhecido, ela fez amizade com o poeta Pablo Neruda e foi, aos poucos, trocando os boleros e valsas por músicas de cunho social. Mesmo morrendo antes do auge do movimento, sua atitude influenciou toda uma geração. 
 

A chilena Violeta Parra nasceu em 4 de outubro de 1917, ano do início da Revolução Russa, e morreu em 1967, três anos antes do início do governo Allende / Divulgação

Um dos marcos históricos é a abertura de La Peña de los Parra em Santiago, no ano de 1965. A palavra "peña" pode ter um significado elástico, indo de 'festa' a 'encontro de bar', até 'grupo' ou 'bando'. Fato é que o centro cultural aberto por Violeta e seus filhos tornou-se o epicentro do gênero, reunindo todos os seus expoentes como Victor Jarra, Rollando Alarcon e Patricio Manns.

Nomes que foram crescendo de importância e popularidade e, a partir de 1970, assumiram a defesa da Unidade Popular, coalizão partidária de esquerda que alcançaria o poder pelo voto, alçando o marxista Allende à presidência.


Grupo Cuncumen com Salvador Allende / Reprodução


Prandi afirma que, nos anos do governo Allende, é possível delimitar três fases da Nueva Cancion, sendo a primeira uma continuação do período anterior, de construção de ideias. 

"Depois, no período de crise do governo, começam a surgir as chamadas canções contingentes. Estas serviam muitas vezes para ridicularizar adversários, denunciar sabotagens", diz ele.

"Por fim, o momento posterior ao golpe, quando já não fazia mais sentido cantar canções triunfalistas. Entra aí o que chamam de canção de exílio, a música que fala dessa nova realidade, de resistência à ditadura", complementa.

O golpe de Pinochet esmagou o movimento com a mesma violência com que tratou alguns de seus principais nomes, como Victor Jarra. Quem não morreu se exilou. Mas o legado desses artistas segue vivo, formando parte da identidade de revolucionários de esquerda na América Latina. Ouça abaixo uma seleção de músicas chave da Nueva Canción Chilena:

 

Em outros países

O movimento chileno foi talvez o mais importante da onda de músicas de esquerda na década de 1960 na América Latina. Mas não foi o único. Atahualpa Yupanqui representou para a Argentina o que Violeta Parra o fez para os chilenos, resgatando desde a década de 50, elementos que seriam cristalizados na década seguinte, no chamado Nuevo Cancionero. A também argentina Mercedes Sosa fez a ponte entre os dois países, regravando - e levando para um público maior - a obra de Violeta. 

Ecos deste jeito de fazer música ocorreram em menor ou maior escala por todo o continente. A Trova cubana e a musica de protesto uruguaia são co-irmãos. Até no Brasil, descontada a barreira da língua, é possível ver a influência na obra de Geraldo Vandré e Chico Buarque, para citar poucos. 

Seja como for, o movimento - ou movimentos, dependendo do ponto de vista - ensinou a inúmeras gerações uma forma de sentir, fazer arte, resgatar a conexão com os setores mais pobres e sonhar um futuro justo que vive até hoje, modernizado, talvez, porém o mesmo na sua essência. 

Edição: Rodrigo Chagas