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Cuba recebe G77 em Havana e defende atuação conjunta do Sul Global: 'mudar as regras do jogo'

Com presença de Secretário-geral da ONU, presidente cubano critica bloqueio dos EUA e defende os 'povos do sul'

Habana (Cuba) |
Presidente cubano Diaz-Canel no discurso de abertura - EFE / Ernesto Mastrascusa

A Cúpula de Chefes de Estado e de Governo do Grupo dos 77 (G77) e da China foi inaugurada nesta sexta-feira (15) em Havana, Cuba. Com a presença de mais de cem delegações, o evento tem como objetivo abordar os principais desafios dos países do Sul Global, principalmente em termos de ciência, tecnologia e inovação, e tentar coordenar ações conjuntas em diferentes organizações internacionais.  

Com a presença de vários líderes de Estado, o evento se estenderá até sábado (16), quando se espera chegar a um acordo sobre uma declaração conjunta do grupo que pede a "redução da lacuna tecnológica e científica entre os países do Norte Global e os do Sul". 

A cerimônia de abertura foi precedida por um trecho do discurso de Fidel Castro na "primeira Cúpula do Sul", realizada em 2000, também em Cuba. Em seguida, os discursos de abertura foram proferidos pelo presidente cubano Miguel Díaz-Canel e pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) António Guterres. 

"O Sul já não suporta o peso morto de todas as desgraças"

No início de seu discurso de inauguração, o presidente cubano enfatizou a importância do grupo que atualmente conta com 134 membros: "Hoje somos dois terços dos membros da ONU, onde reside 80% da população do planeta", disse.

Díaz-Canel também prestou homenagem ao ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, lembrando que ele costumava dizer que "nós, presidentes, vamos de cúpula em cúpula, enquanto os povos vão de abismo em abismo". Pedindo assim esforços conjuntos para coordenar ações conjuntas entre os países do Sul global a fim de "mudar as regras do jogo" e realizar a "democratização pendente do sistema de relações internacionais". 

"São os povos do Sul que mais sofrem com a pobreza, a fome, a miséria, as mortes por doenças curáveis, o analfabetismo, o deslocamento humano e outras consequências do subdesenvolvimento", disse Díaz-Canel. Ele descreveu a ordem econômica internacional como "injusta e ecologicamente insustentável".

Ele também afirmou que "esta será uma cúpula austera", já que em Cuba "temos falta de muitas coisas, mas temos uma abundância de sentimentos de amizade, solidariedade e fraternidade". Denunciou o fato de que "Cuba está literalmente cercada por um bloqueio que dura seis décadas e por todas as dificuldades que derivam desse cerco, que agora foi reforçado". Destacando que Cuba "não é a única que sofre com essa injusta ordem mundial".

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Descrevendo a situação global, disse o presidente cubano destacou que "estamos viajando no mesmo navio, mesmo que alguns sejam os passageiros e outros os servos. A única maneira de este navio mundial não acabar como o 'Titanic' é por meio da colaboração".

Díaz-Canel questionou o sistema internacional de patentes e fez uma denúncia especial sobre os gastos militares internacionais e a irracionalidade do fato de que esses recursos não poderem ser usados para melhorar as condições de vida da maioria.  

"As estimativas indicam que 9% dos gastos militares mundiais poderiam financiar a adaptação à mudança climática em 10 anos, e 7% seriam suficientes para cobrir o custo da vacinação universal contra a pandemia", estimou.

O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, também participa do evento e iniciou seu discurso de abertura afirmando que os países do Sul Global estão "presos em uma teia de crises globais". 

"A pobreza está aumentando e a fome está crescendo. Os preços estão subindo, a dívida é exorbitante e os desastres climáticos estão se tornando mais frequentes", disse Guterres. "Os sistemas e as estruturas globais falharam com eles", acrescentando que "a conclusão é clara: o mundo está falhando com os países em desenvolvimento".

O secretário-geral da ONU observou que, nas últimas décadas, os países do G77 e a China "tiraram centenas de milhões de pessoas da pobreza e se uniram nas Nações Unidas em busca de soluções globais e solidariedade".

"Para mudar isso, precisamos de ações em nível nacional para garantir a boa governança, mobilizar recursos e priorizar o desenvolvimento sustentável. E precisamos de ações em nível global que respeitem a propriedade nacional, com o objetivo de construir um sistema internacional que defenda os direitos humanos e cuide do interesse comum", disse ele.

Nesse sentido, Guterres reconheceu que "muitas instituições globais atuais refletem uma era passada". Destacou a necessidade de atualizar o Conselho de Segurança da ONU, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.

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Importância da Cúpula 

A cúpula acontece poucos dias antes da abertura da 78ª Assembleia Geral da ONU em Nova York, na terça-feira (19). Espera-se que os países reunidos em Havana consigam chegar a um acordo sobre posições comuns a serem defendidas na assembleia.

Embora a Assembleia Geral da ONU não tenha um caráter vinculativo que obrigue os países membros a adotar suas declarações, vários especialistas enfatizam a importância de os 134 países que atualmente compõem o G77 + China coordenarem posições conjuntas como forma de pressionar os países mais poderosos. 

Claudia Marin, do Centro de Pesquisa de Política Internacional de Cuba, observou que "muitos dos países que compõem o G77 + China vêm ganhando enorme peso internacional nas últimas duas décadas, como no caso daqueles que compõem o Brics, e isso significa que os países do Sul Global como um todo têm maior peso em suas demandas". 

No entanto, Marin ressalta em entrevista ao Brasil de Fato que "só será possível construir um sistema internacional mais justo se o peso desses países emergentes puder ser articulado com o número de países do Sul Global por meio de um maior grau de colaboração sul-sul".

Vitória diplomática contra o bloqueio 

A Cúpula dos Chefes de Estado e de Governo do G77 está sendo realizada em Cuba apenas dois dias depois que o presidente dos EUA, Joe Biden, prorrogou por mais um ano a lei que regulamenta o bloqueio contra Cuba. Um ritual que tanto os democratas quanto os republicanos vêm repetindo ano após ano há mais de seis décadas. Cuba é atualmente o único Estado sujeito a restrições comerciais pelos Estados Unidos de acordo com a Lei de Comércio com o Inimigo, embora não seja o único a sofrer sanções unilaterais de Washington. 

Todos os anos, desde 1992, Cuba apresentou um projeto de resolução à Assembleia Geral da ONU sobre a necessidade de suspender o bloqueio dos EUA. Desde então, a maioria dos Estados-membros sempre votou a favor do documento. Este ano, espera-se que a votação se repita. 

De acordo com vários especialistas, o fato de delegações de todo o mundo terem chegado a Havana para participar da cúpula demonstra a enorme capacidade diplomática que Cuba conseguiu construir.

Edição: Thales Schmidt