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Projeto em Cuba busca promover a cultura afro da ilha: 'É aquele pedaço da África que ainda está vivo'

Longe dos grandes centros turísticos, o Beyond Roots nasceu na cidade de Guanabacoa

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
Da batida de um tambor até um prato com quiabo: elementos que compõem o imaginário de cultura em Cuba - Beyond Roots Cuba

Em 2016, Adriana Heredia Sánchez, junto com seu marido, José Luis Corredera, fundou o Beyond Roots: um projeto que nasceu com o objetivo de disseminar e promover a cultura afrocubana na ilha. Desde então, a iniciativa cresceu e se tornou um ponto de referência na ilha.  

"A cultura afrocubana está intimamente associada às nossas tradições e à nossa identidade. É aquela herança que veio da África, tendo sido misturada, transformada e evoluída aqui em Cuba", reflete Adriana Heredia Sánchez em conversa com o Brasil de Fato

"Afrocubano é cultura, tradição e identidade. Está latente na música, na dança, nas tradições gastronômicas, em nosso modo de ser. É aquele pedaço da África que ainda está vivo em Cuba e que carregamos com muito orgulho: desde a batida de um tambor até um prato com quiabo; desde a forma de nosso cabelo natural até nossa resiliência como cubanos. São todos elementos que compõem o imaginário de nossa cultura", acrescenta. 

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Quando o projeto nasceu, o turismo na ilha havia crescido significativamente como resultado da flexibilização das sanções contra Cuba pelo governo Obama. Nesse contexto, Adriana Heredia e José Luis começaram a realizar "experiências" vivenciais em que mostravam a cultura e as religiões africanas em suas próprias comunidades. 

"Quando todas essas pessoas começaram a vir, percebemos que muitas pessoas estavam interessadas em aprender sobre a cultura afrodescendente. Por outro lado, também percebemos que havia muitas outras pessoas que tinham muito preconceito com a cultura, principalmente com relação às religiões afrocubanas, que elas associavam a algo negativo e ruim", lembra Adriana. "Mas não havia nada que permitisse uma abordagem que não fosse superficial. Queríamos compartilhar nossa cultura. Queríamos mostrar às pessoas que poderiam ter preconceitos que não havia nada de errado com nossa cultura. E para aqueles que estavam interessados em aprender sobre ela, poder compartilhar de forma vivencial a experiência de mergulhar em nossa realidade cotidiana".

A partir desse momento, as experiências acontecem em Guanabacoa, onde Adriana Heredia Sánchez vive com José Luis Corredera. Uma localidade reconhecida como o centro da cultura afrocubana, um bairro humilde de Havana, longe dos grandes centros turísticos.

A Cidade Embrujada

A santeria começou a ser praticada como uma forma religiosa sincrética no Caribe hispânico por escravos. Suas crenças e tradições estão ligadas ao povo iorubá, um grupo etnolinguístico originário da África Ocidental, que foi traficado para o Caribe e as Américas pelos impérios espanhol e português. 

Durante o período colonial, seus rituais tiveram de ser praticados clandestinamente porque eram perseguidos pelo Estado, que só aceitava a religião católica e condenava qualquer outra expressão religiosa.

Anos mais tarde, embora após a Guerra da Independência de Cuba, em 1898, a nova Constituição tenha consagrado a liberdade de culto, a verdade é que a santeria continuou a ser marginalizada pelos setores católicos que a consideravam bruxaria. A tradição fez com que Guanabacoa ficasse conhecida como "El Pueblo Embrujado" (O Povoado Assombrado) por causa de suas fortes raízes da santeria, religião praticada pelos afrodescendentes da região.

"Sempre dizemos que a experiência transforma de duas maneiras. Ela transforma as pessoas que vêm, mas também nos transforma", afirma Adriana Heredia. 

Quando Adriana fala de "transformação", não se trata apenas de uma mera expressão. A jornada que ela empreendeu com a Beyond Roots não implicou apenas uma mudança na jornada de sua vida. Mas também uma mudança em sua comunidade em Guanabacoa, que foi transformada à medida que ela foi se juntando ao projeto Beyond Roots para realizar os tours. Longe do circuito turístico tradicional, as pessoas abriram as portas de suas casas e cozinhas, compartilhando suas músicas e danças com aqueles que chegavam. E, como em todos os encontros genuínos, o aprendizado começou a ser mútuo. 

"Nós dávamos muitas coisas por certas. Aqui em Cuba conseguimos manter nossas tradições e nossas raízes vivas. Algo que está muito presente em nossas vidas cotidianas. Quando iniciamos o Beyond Roots, no começo pensávamos que muitas comunidades afrodescendentes tinham conseguido fazer mais ou menos o mesmo em seus países. Mas quando começamos a conhecer pessoas de fora que vinham fazer as turnês conosco, começamos a entender que esse não era o caso. De certa forma, esse foi o primeiro choque".

À medida que o projeto avançava, o Beyond Roots foi investigando as razões por trás de muitas das tradições com as quais eles haviam convivido e das quais tinham participado durante toda a vida. Adriana percorreu as casas de sua comunidade em Guanabacoa fazendo entrevistas com os mais velhos, ouvindo suas histórias e aprendendo com seus saberes arraigados. Ela e seu marido ouviam as entrevistas que tinham registrado enquanto preparavam as comidas para as excursões, fazendo anotações sobre fatos ou histórias que não conheciam.

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"À medida que fomos conhecendo as pessoas que vinham dos Estados Unidos - que é de onde vêm a maioria dos nossos clientes - começamos a perceber que muitas vezes elas não tinham conhecimento das tradições da herança africana e da diáspora africana. Muitos afro-americanos vêm buscando se reconectar com essa herança, com suas raízes, com essa história que muitas vezes foi escondida deles. Isso é algo muito bonito e emocionante. Foi uma grande aprendizagem. Percebemos que uma grande parte de nossa identidade, que conseguimos preservar em Cuba por meio de nossa cultura e religião, nem sempre as comunidades afrodescendentes de outros lugares conseguiram manter da mesma forma", reflete.

Adriana fala com um sorriso. Ela tenta controlar o estremecimento em sua voz causado pela emoção. Está convencida de que é essencial "saber de onde viemos para chegar aonde queremos", uma frase que ela repete como um mantra.        

"É muito emocionante ver como as pessoas vêm aqui tentando se reconectar com suas raízes. E observar, nas visitas que fazemos, como em uma casa onde os recebemos, como essas pessoas ouvem e veem coisas que começam a ser familiares para elas. Imagens, símbolos, objetos ou até mesmo práticas de que se lembram de quando eram crianças - na casa dos avós -, mas que muitas vezes eram escondidas delas". 

A expansão dos movimentos e lutas antirracistas na última década, como o Black Life Matters nos EUA, possibilitou uma transformação cultural que revalorizou positivamente as tradições e identidades negras em uma escala massiva nos Estados Unidos. Isso ampliou a busca e o reencontro das novas gerações com suas tradições africanas, muitas vezes interrompidas. Adriana ressalta que o Beyond Roots conseguiu se conectar com essas buscas e, por isso, recebeu tantas pessoas interessadas em suas experiências.

Uma pitadinha da África na ilha 

Pouco depois do início, o Beyond Roots começou a preparar pequenas surpresas para as pessoas que participaram das experiências. Pequenos presentes feitos pela comunidade para que os visitantes levassem para suas casas como lembranças para amigos e familiares. Mas o rápido aumento das visitas provocou a necessidade de aumentar a escala do que era produzido. 

"Começamos fazendo uma loja portátil. Identificamos e entramos em contato com talentos locais para que pudéssemos ter algo que as pessoas pudessem comprar e levar consigo. Algo que tivesse uma referência ao que estávamos fazendo ou mostrando aqui, ligado à cultura afrocubana", lembra Adriana. 

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O sucesso da iniciativa permitiu que também começassem a criar produtos para as pessoas em Cuba. Produtos que destacam a estética e a identidade que o Beyond Roots pretendia promover.

"Lembro-me de quando todo esse turismo das comunidades afro dos EUA começou a chegar, foi muito impressionante para nós também. Ver a estética com a qual chegavam. As cores de suas roupas e seus penteados com o cabelo afro natural causaram um impacto muito positivo sobre nós. Ver outros modelos de beleza, que destacavam o orgulho de suas características afro, para nós, especialmente as mulheres que sempre carregaram mandatos muito fortes de como deveríamos nos apresentar, foi algo muito positivo", acrescenta.

A venda de lembranças para turistas por meio da loja portátil não só permitiu que o Beyond Roots começasse a vender produtos para as pessoas de sua comunidade, mas também possibilitou a abertura de uma loja física em Habana Vieja. Em 2019, eles abriram a primeira loja onde vendem produtos feitos em Cuba ligados à estética e à temática afro.

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"Queríamos que as pessoas das comunidades daqui pudessem ter acesso a coisas como essas. Era muito difícil encontrar produtos na ilha que valorizassem a estética afro, desde joias ou roupas até produtos naturais para o cabelo afro. Vender os produtos aos turistas não só nos permitiu abrir essa loja, mas também nos permitiu ter um sistema de reciclagem. A venda de produtos para turistas subvenciona a venda dos produtos para que os cubanos possam ter acesso a produtos de qualidade a baixo custo", acrescenta Adriana.

Não é moda, é comunidade

A abertura da loja tornou o Beyond Roots famoso em toda Havana. Ela se tornou um ponto de encontro para as comunidades afrocubanas que se reuniam na loja para trocar experiências. Começaram a organizar eventos, treinamentos, workshops, palestras e conferências. E, no final de 2022, abriram um salão de beleza para tratamento de cabelos afro.

"Desde que éramos meninas, os cânones de beleza, de como uma mulher deve ser, sempre nos disseram que tínhamos de mudar nossas imagens. Nossas mães geralmente passavam horas tentando alisar nossos cabelos. Até que começamos a nos perguntar: por que tenho de continuar mudando a minha aparência natural para me encaixar em um cânone de beleza que foi instalado na minha cabeça desde que eu era menina? Não se trata de julgar as pessoas que nos criaram - o que é muito importante, porque elas também eram vulneráveis às influências com as quais foram criadas -, mas de aceitar quem somos. E ver que isso é lindo".

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Edição: Thales Schmidt