Um corpo negro num lugar de poder é uma imagem radical que ainda causa estranhamento para muitos brasileiros. Estamos falando do espaço de tomada de decisões, não de uma representatividade protocolar. Pois bem, isso reflete o quanto as profundas marcas da escravização afetaram nossa subjetividade e também como a força do racismo estrutural se sobrepõe às necessidades da nação e do povo brasileiro.
O convite para a curadoria da mostra Juízas Negras para Ontem chegou como uma honrosa missão: contar com os olhares de meus contemporâneos para compor um caleidoscópio de poesias que estampam essa provocativa mensagem nas ruas: "Imagina uma ministra negra no STF". Fui atravessada pelas criações que representam nossa unidade na diversidade – muitas origens, orientações, localidades, linguagens e um só propósito.
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Presente nas ruas do Brasil em muros colados pelos próprios artistas-criadores, a mostra também trouxe as 24 obras em forma de manifesto online, repercutindo estas imagens nas redes sociais.
Confiamos na potência da imaginação negra e apostamos na arte urbana para mobilizar importantes discussões. Esta articulação de criadores negres colaborou para levar às ruas uma discussão acessível sobre participação democrática e as peças importantes do jogo de poder que precisam ser movidas.
Parece óbvio, mas não é. Nós, do movimento negro, precisamos mais uma vez – como ocorreu durante o debate da Lei de Cotas – convencer até mesmo a esquerda que se diz progressista de que essa disputa é por algo a que temos o legítimo direito.
Setembro de 2023 tem sido marcado por ações de movimentos sociais, entidades do direito, figuras públicas e lideranças políticas que demandam do presidente Lula a indicação de uma jurista negra para integrar este órgão-guardião da democracia brasileira, substituindo, então, a atual presidente do Supremo, Rosa Weber, prestes a se aposentar. A reivindicação pelo feito inédito quer garantir diferentes perspectivas nesse espaço, que ainda após 135 anos do fim legal da escravidão, é dominado por uma elite branca e masculinizada.
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Queremos esse debate na boca do povo, práticas ainda colonialistas mantêm intencionalmente a presença de pessoas negras nos espaços de obedecer, nunca de decidir. Ter uma mulher negra no STF é uma questão de Justiça.
A fotógrafa Daisy Serena trouxe Mãe Bernadete Pacífico representando a carta "Justiça" do tarô. A líder quilombola e sacerdotisa de candomblé, teve seu filho assassinado e vinha sofrendo constantes ameaças, já tendo levado ao STF, na figura de Rosa Weber, um apelo por proteção. Mais uma vítima da luta por terras, ela foi assassinada em seu território e na presença dos seus. Os guardiões de um futuro mais justo seguem na mira. Não é sobre o ontem, é sobre ter os olhos nas costas para garantir o futuro.
Simbolicamente, as obras atravessaram o espaço e acessaram as pessoas, revelando a relação entre o lambe como intervenção urbana e a existência negra em qualquer ambiente.
Murais de grande formato amplificaram as mensagens na maior capital do país. Mosaicos compostos pelas obras da mostra tomaram espaço em muros nas cidades de Brasília, Salvador e Cachoeira (BA). Além de projeções realizadas na Biblioteca Nacional, em parceria com a entidade Mulheres Negras Decidem.
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Ocupando a Avenida Paulista, em frente ao Conjunto Nacional, a mostra itinerante de rua levou o acervo “Juízas Negras para Ontem” para uma exposição a céu aberto, fomentando o debate com os visitantes e incentivando a participação no abaixo-assinado em prol da nomeação de uma ministra negra para o STF. A cidade de Belo Horizonte também acolheu uma ação semelhante, realizada na Ocupação Maria do Arraial, em parceria com a Minha BH.
Presentes no marco histórico da mobilização por presença negra no judiciário, as obras acompanharam a manifestação de 20 de setembro na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), em que a Ordem dos Advogados do Brasil - São Paulo (OAB/SP) se uniu à causa e entregou uma carta à Presidência da República pedindo a indicação de uma jurista negra para o STF.
Colhemos avanços, observamos o desconforto daqueles que sempre se colocam como representantes de grupos minorizados, mas quando há a oportunidade, não se dispõem a mover estruturas sociais como o racismo e levantar da cadeira para que uma mulher negra a ocupe: aí também, já é demais. É como disse Sueli Carneiro quando se completaram 5 anos do assassinato de Marielle Franco: o maior medo que esse país tem é de uma consciência negra acontecer de fato e se tornar uma força revolucionária.
Criar novos sentidos, imaginar futuros justos, cultivar sonhos. A presença das nossas subjetividades em uma narrativa conjunta, cavando brechas e ocupando espaços é sobre garantias para todos: de terra, de direitos, da justiça e da democracia. E é para ontem.
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Realizada pelo Instituto Lamparina, a mostra está presente em 15 cidades brasileiras por meio de lambe-lambes e murais de grande formato. A exposição virtual está no instagram @galerialamparina e todas as obras podem ser baixadas no site da mostra, que contém um mapa indicando os locais que receberam as intervenções urbanas.
*Nina Vieira é mãe, artista visual, pesquisadora e gestora cultural. Curadora da mostra Juízas Negras para Ontem e co-idealizadora do coletivo de arte-educação Manifesto Crespo, que discute estética e identidade.
**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas