Boicote

Sanções contra russos na Europa podem ter ‘efeito reverso’ e minar negociações pós-guerra

Países da UE proíbem entrada de carros russos e atingem inclusive críticos ao Kremlin na guerra da Ucrânia

Rio de Janeiro |
Um manifestante queima seu passaporte russo durante uma manifestação contra a operação militar da Rússia na Ucrânia, em Belgrado, em 6 de março de 2022. - Andrej Isakovic / AFP

Países europeus estão proibindo a entrada de automóveis com placas registradas na Rússia. Nesta semana, Noruega e Bulgária se juntaram à proibição que já havia entrado em vigor em setembro na Lituânia, Letônia, Estônia e Finlândia. A medida estabelece que carros com placas russas deixem os países que adotaram as sanções.

A medida se aplica inclusive àqueles que possuem dupla cidadania. A política restritiva tem gerado controvérsia por atingir indiscriminadamente os cidadãos russos na Europa, inclusive aqueles que condenam a guerra na Ucrânia e são críticos ao governo russo.

A exceção será feita aos cidadãos da União Europeia (UE) que residam permanentemente na Rússia e para os membros das suas famílias, bem como para carros diplomáticos e em casos de emergência humanitária.

As sanções contra automóveis estão ligadas com a política de importações de produtos russos, revisada pela Comissão Europeia no dia 8 de setembro. O órgão emitiu esclarecimentos sobre como os países da UE deveriam aplicar a proibição da importação de bens sancionados da Rússia. Posteriormente, a organização destacou que as autoridades aduaneiras deveriam concentrar-se nos carros importados, enquanto outros artigos, incluindo vestuário, deveriam estar sujeitos a uma proibição "proporcional e razoável".

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Em cada país há um regulamento diferente. As autoridades letãs, por exemplo, declararam que não confiscarão automóveis com matrículas russas que já se encontrem no território da União Europeia. Já no caso da Finlândia foi estabelecido um prazo até 16 de março de 2024 para que os carros com registro russo que já se encontrem no país saiam da Finlândia.

A Rússia, por sua vez, deixou claro que as restrições não ficarão sem resposta. A representante oficial do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, declarou que a chancelaria está estudando medidas de retaliação adequadas. A diplomata também destacou que a proibição dos carros russos é resultado do “fiasco” das sanções do Ocidente.

“No contexto do fiasco cada vez mais evidente da política de sanções anti-russas da UE, os países-membros praticamente já nem escondem mais que gostariam de acertar as contas desse fracasso às custas de todos os cidadãos russos, eles falam diretamente sobre isso. Justamente essas medidas violam as normas do direito internacional fundamentais”, disse Zakharova durante briefing.

A medida serviu para Moscou inflamar a retórica contra o Ocidente. O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, chegou a mencionar que a proibição de carros com placa russa pode ser comparada a uma prática do nazismo. De acordo com ele, os europeus estão perdendo a sua "aparência exterior" e os “restos” da diplomacia e da ética. A porta-voz da chancelaria russa reforçou esta comparação.

“Tudo que se faz com essas tentativas de exercer pressão sobre todo o povo russo está fadado ao fiasco e consideramos a proibição de automóveis privados com números de registro russos como mais uma forma de criar não só uma nova ‘cortina de ferro’ na Europa, mas um verdadeiro renascimento do nazismo em suas ‘neo-formas’”, disse.

No entanto, a divergência não ficou restrita entre os países da Europa e a linha oficial do Kremlin. A decisão repercutiu negativamente inclusive entre representantes da oposição russa. Assim que Letônia, Lituânia e Estônia inicialmente anunciaram a proibição dos carros russos, o Fundo de Combate à Corrupção (FBK), ligado ao oposicionista Alexey Navalny, que está preso na Rússia, apelou às autoridades dos países bálticos com um pedido para reconsiderar a proibição. Segundo a organização, as restrições prejudicam os críticos ao governo russo que são forçados a deixar o país por motivos políticos.

A carta publicada pela presidente do conselho de administração do FBK, Maria Pevchikh, afirma que as restrições impostas desmoralizam a própria ideia das sanções contra Moscou e fornecem novos argumentos para a propaganda russa.

O político oposicionista russo, Maxim Katz, também se dirigiu com um apelo à comissária da UE para a Estabilidade Financeira, Serviços Financeiros e União dos Mercados de Capitais, Mairead McGuinness. Na sua carta, o político observou que as novas restrições contradizem o significado original das sanções, uma vez que se aplicam a todos os russos, e não apenas aos representantes da elite russa.

Katz enfatizou que o transporte privado continua a ser uma das poucas formas de os russos deixarem rapidamente o país em caso de, por exemplo, perseguição política ou mobilização. O político também acredita que os itens importados pelos russos para uso pessoal não trazem renda adicional para a Rússia.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político Ivan Mezyukho, afirma que a elaboração deste tipo de restrição a cidadãos russos tem como premissa um cálculo equivocado, podendo gerar um efeito reverso em relação aos seus objetivos originais. O analista destaca que na “atual turbulência geopolítica” são justamente os países da União Europeia, sobretudo os que fazem fronteira com a Rússia, que têm uma grande presença de cidadãos russos de oposição ao Kremlin, que condenam a operação militar na Ucrânia.

Há uma tentativa de punir os cidadãos da Rússia somente pelo fato de que eles são cidadãos da Federação da Rússia. Mas o efeito será reverso. Na atual turbulência geopolítica, quem é que se encontra fora da Rússia, sobretudo nos países da União Europeia, que tem fronteira com a Rússia? Hoje não são poucos os cidadãos da Rússia de orientação oposicionista que, para a maioria da Rússia, se colocam na posição de traição, ao condenarem a operação militar especial, e foram embora para a Lituânia, Letônia, Estônia e outros países. Essa parcela da população que ficou contra o seu próprio governo, também será perseguida, porque eles têm automóveis com números de registro russos.

“O resultado de tudo isso é que aqueles cidadãos russos que condenaram a operação militar especial da Rússia na Ucrânia, no fim das contas, ainda podem mudar de opinião, porque eles mesmos vão se confrontar com a violação dos seus próprios direitos humanos. Estas sanções em si mesmas contradizem os atos jurídico-normativos dos países da União Europeia, a constituição nacional dos Estados europeus, que fala em direitos humanos, liberdade dos cidadãos. Onde estão esses direitos? Por algum motivo eles não funcionam com cidadãos russos”, argumenta.

A lógica das sanções do Ocidente contra a Rússia se baseia em dois pilares. Primeiro, minar a capacidade econômica do país, e assim impedir o fluxo de dinheiro para a guerra na Ucrânia. Segundo, enfraquecer internamente a legitimidade do governo russo. A aplicação indiscriminada de medidas restritivas contra os cidadãos russos na Europa, no entanto, pode reforçar o apoio ao presidente Vladimir Putin dentro da Rússia.

De acordo com Ivan Mezyukho, o cálculo destas sanções se resume em criar um sentimento de transtorno para os cidadãos russos em relação ao seu próprio governo, em particular o próprio presidente da Rússia, Vladimir Putin. Mas, segundo ele, na prática, esse cálculo de início foi elaborado ineficientemente.

“De saída esse cálculo foi equivocado, porque os elaboradores dessas medidas restritivas não entendem em absoluto a psicologia do cidadão russo médio, estatisticamente falando. Estas sanções, pelo contrário, vão reforçar e unir os cidadãos russos em torno do apoio à operação militar especial”, destaca.

O cientista político aponta também que a proibição de carros russos no território dos países europeus terá como resultado “apenas o crescimento da aprovação de Vladimir Putin dentro da Rússia”. “Isso é paradoxal. Com todas as suas sanções em relação a cada cidadão russo, eles aumentam o nível de legitimidade popular e o nível de apoio eleitoral do presidente Putin dentro da Rússia”, acrescenta.

As mais recentes restrições ligadas aos automóveis se inserem em um amplo processo de isolamento da Rússia em relação ao Ocidente, por conta da guerra na Ucrânia. Logo nos primeiros meses do conflito, o país foi excluído do sistema de transferências bancárias Swift, companhias aéreas ocidentais cancelaram todas as suas operações com a Rússia, bem com muitas outras grandes empresas de diferentes setores.

Em março de 2023, o próprio presidente Vladimir Putin teve um mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra na Ucrânia. A ampliação deste cenário de isolamento mina cada vez mais as perspectivas de negociações para uma resolução da crise.

“Honestamente, é preciso pensar no futuro. Hoje a União Europeia aplica sanções contra automóveis russos, ontem foi em relação a produtos russos, anteontem em relação aos bancos russos, mas no fim das contas, com o fim da operação militar da Rússia na Ucrânia, será preciso negociar. E eu pergunto: como iremos negociar sobre um novo mundo, sobre as mútuas garantias de segurança, se nos são aplicadas tantas sanções e restrições ilegais?”, completa Ivan Mezyukho.

Edição: Leandro Melito