Análise

Imprensa criminaliza MST mesmo sem CPI apresentar provas

Maior parte dos veículos analisados se refere ao MST com termos negativos e usou a CPI para atacar governo Lula

Brasil de Fato | São Paulo (SP) | |
A pesquisa avaliou como a chamada grande imprensa brasileira cobriu a CPI do MST - Reprodução

 

Treze anos depois de encerrada a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 2010, terminou no último dia 27 de setembro a CPI que investigou novamente os sem-terra. O relator Ricardo Salles (PL-SP) e o presidente da CPI Tenente-Coronel Zucco (Republicanos-RS) perderam força ao longo dos cinco meses de duração da Comissão e não conseguiram prolongá-la o suficiente para votar um relatório final. Mais uma vez, o Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social monitorou a cobertura da imprensa sobre o tema.

Em 2011, fizemos o primeiro “Vozes Silenciadas”, um monitoramento de mídia que depois virou uma série que inclui outros temas. Naquele momento, analisamos a cobertura da CPMI do MST, de 2010, e concluímos que, na cobertura de três jornais impressos (O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo), 59% das matérias mencionavam termos pejorativos para se referir ao MST ou suas ações e 65,7% colocavam o MST num campo negativo de sentidos. No caso da cobertura da CPI de 2023, entre maio e agosto deste ano, o Estadão publicou 110 matérias, sendo que 79 citaram termos negativos sobre o Movimento. A Folha publicou 33 matérias com palavras negativas num universo total de 60 conteúdos. Já O Globo, de um total de 75 publicações, 53 usaram esse tipo de palavra ou expressão, sendo que a principal forma de fazer isso - em todos os veículos - foi através da palavra “invasão” e suas variantes (“invadir”, “invasões”, “invasores”). O termo dá um tom de violência e ilegalidade às ações do MST quando, na verdade, elas são legítimas e estão respaldadas pela definição de função social da propriedade, como explicamos no último tópico deste texto.

Na análise sobre a CPI de 2023, pesquisamos a versão on-line dos impressos O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo; o Jornal Nacional; os portais R7, do Grupo Record, e Agromais, do Grupo Bandeirantes; e a Agência Brasil, veículo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), nos meses de maio a setembro, período que abrange a duração da CPI. Neste texto, trabalhamos com dados preliminares, de maio a agosto. O Jornal Nacional inicialmente foi desconsiderado por não termos acessado quantidade suficiente de matérias para a análise. A revisão dos dados poderá incluir mais matérias, mas os dados já consolidados mostram o quanto alguns problemas da cobertura da CPMI de 2010 se repetem.

No portal R7, de 51 matérias publicadas (algumas apenas no portal, outras também veiculadas na TV Record), foram ouvidas 55 fontes contrárias ao MST e apenas 17 favoráveis. Quarenta matérias usaram termos negativos para se referir ao Movimento ou suas ações.

A situação é diferente na Agência Brasil, o que pode indicar um respiro de independência jornalística na empresa pública com o fim do governo Bolsonaro, mesmo que Lula não tenha sequer retomado a participação social na EBC: ainda não há sinais de convocação do Conselho Curador da empresa, extinto por Michel Temer em 2016. Em 27 matérias publicadas, foram usados termos pejorativos sobre o MST apenas sete vezes, sendo que, em quatro delas, eles foram ditos pelas fontes, não por jornalistas responsáveis pelas matérias. Outro dado que mostra um olhar mais positivo para o Movimento que o da mídia comercial foi que, do total de fontes ouvidas, oito se posicionaram de forma contrária ao MST e 23 de maneira favorável.

Essa não foi a tendência geral da cobertura, como veremos também de forma qualitativa a partir da análise dos editoriais dos jornais impressos. Mas, mesmo com o amplo apoio dos veículos comerciais de grande audiência, o agronegócio também se preocupa em ter sua própria mídia. Nossa análise do Agromais não surpreende: de 31 matérias, 22 usaram termos negativos para se referir ao MST; entre as fontes ouvidas, 31 foram contra o Movimento e só oito foram a favor.

Quando observadas questões mais aprofundadas, como matérias que mencionam as bandeiras de luta e causas do Movimento, o Agromais, evidentemente, impõe um pesado silenciamento: apenas três matérias fazem essa menção. Porém, nesse caso, a imprensa comercial que se diz isenta tem posicionamento semelhante ou até pior: no caso do R7, foram apenas duas matérias que citaram as bandeiras e as causas do MST, de um total de 51. A Agência Brasil, mais uma vez, destoa dessa linha: 11 matérias não citam causas e bandeiras de luta, enquanto 16 o fazem. Ainda assim, os números mostram que mesmo numa cobertura que traz uma perspectiva mais aprofundada e respeitosa sobre o MST, o jornalismo tem dificuldade de enxergar outros modos de produção de alimentos, de relação com a terra e de vida diferentes do modelo do agronegócio.

Segundo Bruno Bassi, coordenador do dossiê “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, do projeto De olho nos ruralistas – Observatório do agronegócio no Brasil, por causa dos interesses de classe, parte da imprensa tem “um viés conservador no que diz respeito à luta pela terra”. Para ele, vem daí a insistência “no uso do termo ‘invasão’, ao invés de ‘ocupação’. Tratam os movimentos de luta pela terra, em especial os camponeses, como bandidos, ainda que nos últimos dez anos essa narrativa tenha mudado um pouco, especialmente em relação ao MST, por conta das ações de conexão campo/cidade do Movimento”. Mas ele acredita também que o atual contexto do jornalismo, “na disputa com as redes sociais, na necessidade de uma linguagem cada vez mais simplificada, não suporta toda a complexidade que muitas vezes esses casos carregam”.

Editoriais dos jornais impressos

Os editoriais são espaços privilegiados de compreensão do posicionamento político-ideológico (ou linha editorial) dos veículos de comunicação. Famoso pelo “Uma escolha muito difícil”, texto em que se posicionava contra o então candidato à presidência Jair Bolsonaro (na época, filiado ao PSL-RJ), mas não defendia a candidatura do hoje ministro da Fazenda Fernando Haddad (PT-SP), o Estadão foi o veículo que mais publicou editoriais sobre o MST no período analisado. Foram três em maio, dois em junho e um em agosto. O Globo publicou um editorial em agosto e um em setembro. Já a Folha de S. Paulo não publicou nenhum editorial no período analisado.

O editorial do Estadão de 16 de maio traz o título “Com o MST, Lula quer vingança” e como subtítulo: “No terceiro mandato presidencial, petista já nem sequer tenta disfarçar que o MST será um dos instrumentos de sua vendeta pessoal contra um Brasil que não se deixa enrolar por sua lábia”. Esse foi apenas o primeiro da série que traz como enfoque criticar o governo federal.

No dia 20 de maio, o título do editorial foi “CPI é coisa de governo fraco”, enquanto, no dia 27 do mesmo mês, o Estadão publicou editorial intitulado “Lula ‘perdido’ da Silva”, em que inclui a relação do MST no rol de equívocos do presidente: “Enquanto claudica na articulação para formar uma base de apoio no Legislativo consistente o bastante para aprovar projetos realmente importantes para o Brasil, Lula se perde entre questões distantes das prioridades do País, como a guerra na Ucrânia, sua rixa pessoal contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, suas agressões aos empresários do agronegócio, sobretudo os paulistas, e os endossos aos arruaceiros do MST”.

Em junho, o jornal cobrou proximidade do governo Lula com o agronegócio e que se afastasse do MST. No dia 2 de agosto, quando já era perceptível o fracasso da CPI em tentar associar o Movimento a ações criminosas, o Estadão publicou editorial intitulado “O MST não toma jeito”. E prosseguiu: “Nova invasão da Embrapa mostra que o bando de Stédile faz do emprego da força bruta um instrumento de ação política. Lula que arque com o desgaste de sua associação com a delinquência”.

A escolha foi a mesma do jornal O Globo: focar nas “invasões” quando a CPI tinha se mostrado infrutífera. O editorial de  O Globo de 2 de agosto tem como título “Governo não deve ceder à chantagem promovida pelo MST com invasões”, enquanto o do dia 1º de setembro é intitulado “Recorde de invasões mostra oportunismo do MST sob Lula”. O texto afirma ainda que “Movimento aproveita governo de partido próximo para tentar reconquistar espaço político”.

A estratégia também é a mesma dos parlamentares proponentes da CPI e opositores a Lula: associar o governo federal ao MST de forma negativa. A imprensa seguir essa linha não é uma novidade. Em 2010, no período da CPMI que coincidiu com as eleições para a presidência da República, a então candidata Dilma Rousseff era acusada de ter aceitado - embora não tenha vestido - um boné do MST. Ainda longe da popularidade que atingiu hoje, o acessório era usado para prejudicar a campanha petista. Não à toa, naquele período, as eleições foram o tema principal em 32,2% da cobertura sobre o MST.

Violência política de gênero

Além dos elementos relacionados ao MST, à reforma agrária e ao governo Lula, também se destacaram na CPI os ataques misóginos sofridos especialmente pela deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP). Ter o microfone desligado ou ouvir comentários machistas e gordofóbicos foram atitudes comuns praticadas contra Sâmia quando ela incomodava Ricardo Salles (PL-SP) e Coronel Zucco (Republicanos-RS).

“Foi uma forma de tentar me silenciar diante dos argumentos que eu trazia na CPI. Porque eles recorreram para a violência política de gênero à medida em que eu fazia questões de ordem ou nas minhas falas eu apontava os crimes e contradições deles, que eram os proponentes da CPI. A partir disso, tentaram me silenciar me ofendendo, cortando meu microfone, interrompendo a minha fala, tentando fazer chacota comigo nas redes sociais, estimulando a base social deles para vir para cima de mim numa tentativa de silenciamento”, analisa Sâmia.

A forma como a imprensa fez a cobertura sobre o tema, embora às vezes mencionasse que se tratava de violência política de gênero, por vezes reduzia os episódios a “bate-bocas”, dando a impressão de que atitudes agressivas vinham de ambos os lados. Um exemplo foi a matéria publicada em O Globo no dia 12 de julho, intitulada “Em barraco durante CPI do MST, deputado bolsonarista associa mulheres a 'responsáveis por procriação'”. Além de o termo “barraco” ser absolutamente inadequado para representar o acontecimento, a deputada sequer foi ouvida pela reportagem.

Sâmia Bomfim, porém, reforça que nem toda a imprensa teve essa visão. E, mesmo a parte que “tentou secundarizar o que é violência política de gênero, como se fosse tudo parte de um comportamento agressivo, indecoroso, inadequado de ambas as partes, no parlamento que deveria ser sagrado e bem comportado” não obteve sucesso. “Ao contrário, acredito que tenha ficado bem evidente para a sociedade que se tratou sim de violência política de gênero e houve um repúdio forte à postura de Salles e dos demais que cometeram esse tipo de prática na CPI”, completou.

Os invasores

Os “verdadeiros invasores” recebem pouquíssimo espaço na cobertura. Segundo Bruno Bassi, coordenador do dossiê “Os Invasores”, “existe, no Brasil, não só uma bancada ruralista, mas um sistema político ruralista”. Ele explica que “boa parte dos nossos ciclos econômicos estiveram ligados a uma produção primária do campo e, de alguma forma, parte dessas oligarquias ainda se veem representadas”. Sâmia Bomfim acrescenta como indicativo da importância e do poder dos ruralistas a articulação da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e também o peso que o agronegócio tem no Produto Interno Bruto (PIB) do país. “O Brasil é um país agroexportador. Então aqueles que vocalizam a vontade do mercado elogiam o agronegócio em função disso”, conclui.

Nesse contexto, é de se esperar que a imprensa comercial de maior audiência não tenha uma postura crítica em relação ao agronegócio, a despeito do resultado de pesquisas feitas com informações confiáveis levantadas e analisadas por especialistas. Segundo Bassi, o dossiê “Os invasores” construiu “uma base de dados a partir do cruzamento de três fontes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), onde identificou fazendas que possuíam sobreposições em terras indígenas definidas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em suas mais diversas etapas de demarcação”.

Como um dos resultados, foram identificadas 1692 propriedades com sobreposição. Porém, a situação é ainda pior e desconhecida, já que o Incra possui defasagem de dados, com destaque para alguns estados, como o Pará. Ainda assim, essa foi a melhor base de dados para ser acessada. “Ela está conectada ao registro de matrícula cartorial, então significa que são terras com algum tipo de lastro. Claro que aí você vai ter terras griladas, com fraude, porém são terras lastreadas em documentos. A partir disso, a gente trabalhou com uma equipe de dois geógrafos, um especialista em Direito, uma historiadora, jornalistas e outros pesquisadores de diversas áreas do conhecimento”, contou Bassi.

O fato de ter diferentes pesquisadores poderia chancelar a pesquisa a ser mais abordada pela imprensa, visto que, para o jornalismo, especialistas são fontes de alto grau de confiabilidade. O caso, então, demonstra como esses especialistas são escolhidos de acordo com interesses ideológicos e de classe, sendo este o papel do discurso das pessoas consideradas autorizadas a falar, especialmente quando acionam um lugar de “isenção” e “verdade”, imputado muitas vezes a pesquisadores.

Fecundar o chão

“O Movimento Sem Terra está organizado em 24 estados nas cinco regiões do país. No total, são cerca de 450 mil famílias que conquistaram a terra por meio da luta e organização dos trabalhadores rurais”. Criado em janeiro de 1984, ou seja, com quase 40 anos de luta, assim se define o MST em seu próprio site. Ao longo desse tempo, o Movimento angariou apoio internacional, com a presença de Comitês de Amigos em 12 países.

Organizado através de diferentes setoriais, como de comunicação, cultura, LGBT e educação, o Movimento dá bastante relevância para este último. Como disse o líder do MST João Pedro Stédile, em sessão da CPI do dia 15 de agosto, “para ser militante do MST, tem que estudar”. Assim, além das escolas itinerantes, organizadas para garantir a formação das crianças acampadas, o Movimento também incentiva que seus militantes façam desde alfabetização a cursos de graduação e de pós-graduação.

Porém, essas são informações que costumam estar ausentes do noticiário. Segundo Ana Chã, do Coletivo de Cultura do MST, “a gente tem uma leitura de que a imprensa silencia praticamente tudo em relação ao Movimento. Em geral, ela não nos apresenta como produtores de alimentos saudáveis. Quando aborda esse aspecto, usa termos como ‘agricultura familiar’ ou atribui essa produção de alimentos saudáveis ao agronegócio, nunca ao MST ou à reforma agrária”. Vale lembrar que o Movimento doou 7 mil toneladas de alimentos durante a pandemia do novo coronavírus, mas ainda assim, os jornais não trazem essa memória positiva à tona no período da CPI.

“Por outro lado, a imprensa silencia o fato de que ocupação de terra não é crime”, ressaltou Ana Chã. De acordo com João Pedro Stédile em sessão da CPI, “invasão de terra é crime como fazem os fazendeiros do Mato Grosso do Sul invadindo terra indigena. O que o MST faz é ocupação de terra como forma de pressionar para que se cumpra a Constituição”. De fato, o que Stédile afirma está na Carta Magna. No artigo 184 do capítulo “Da política agrícola e fundiária e da reforma agrária”, consta que “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”. O artigo 186 define o que seria a “função social”: “I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.

Além do silêncio sobre a legalidade das ações do MST, boa parte da imprensa brasileira também ignora o que talvez seja o principal: “a reforma agrária como modo de vida, o campo como lugar bom para viver”, como afirma Ana Chã. Autora do livro “Agronegócio e indústria cultural”, ela lembra que o slogan que diz que “o agro é pop, o agro é tudo, significa que se o agro é tudo, não há necessidade da reforma agrária”. Por fim, a imprensa não divulga o apoio que a sociedade dá ao MST. Mas Ana Chã acredita que esse apoio se fortalece: “As pessoas estão frequentando nossos armazéns do campo [lojas em espaços urbanos com produtos da reforma agrária] e conhecendo o Movimento como ator político e produtor de alimentos. Colocam o boné e nos defendem, como no caso da CPI”.

 

* Mônica Mourão é jornalista, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e integrante do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social

 

** A série Vozes Silenciadas – Quem quer calar a luta dos sem-terra? é produzida pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Coordenação: Mônica Mourão. Pesquisa: Alex Pegna Hercog e Eduardo Amorim. Colaboração: Olívia Bandeira e Pedro Vilaça

*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho