DEBATE

Dilemas da Humanidade: 'Um modelo de democracia frágil não encontra mecanismos para que o povo seja soberano'

Em Joanesburgo, lideranças populares trouxeram exemplos práticos de como é possível construir uma democracia popular

Brasil de Fato | Joanesburgo (África do Sul) | |
Experiências e desafios para a construção de democracias populares foi o tema de hoje (17) em Joanesburgo - Rafa Stedile

Uma democracia construída a partir da base, da luta diária, e com a unidade da classe trabalhadora. Esses pilares foram o centro do debate nesta terça-feira (17) na Conferência Internacional Dilemas da Humanidade, que acontece em Joanesburgo, na África do Sul.

O principal painel do dia apresentou exemplos práticos de democracia popular e destacou a necessidade de promover o povo como protagonista tanto na revolução quanto na construção do socialismo.

“Um modelo de democracia frágil não defende o povo, não retribui, não encontra mecanismo de devolver e garantir que o povo continue e seja soberano”, afirmou em sua fala Blanca Eekhout, do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV).

Além de Eekhout, participaram da mesa Eugene Puryear, do Partido Socialismo e Liberação dos Estados Unidos; Harleen Kaur, do Instituto Tricontinental na Índia; Jamal Berajaa, da Via Democrática dos Trabalhadores no Marrocos; e Maqapheli Bonono, do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos da África do Sul.


Harleen Kaur: "Somos a força criativa da história" / Rafa Stedile

Movimento camponês na Índia

Harleen Kaur, do Instituto Tricontinental na Índia, destacou que as políticas neoliberais fizeram o custo de produção aumentar ano após ano nas últimas três décadas, o contrário dos rendimentos da população

"Enfrentando o empobrecimento e a desmoralização, os agricultores começaram a cometer suicídio. Perdemos 400 mil agricultores. Esta ameaça existencial forçou os agricultores a saírem às ruas contra o acesso neoliberal do Estado e do instituto de Bretton Woods. As lutas camponesas começaram em diferentes partes do país" colocou em sua fala.

"Esta luta de um ano é um processo de democracia popular diante de vocês. Trabalhadores e camponeses apoiaram-se mutuamente em todo o país nos apelos à greve", completou..

Kaur destacou também que o início da luta camponesa na Índia, em novembro de 2020, também fez com que as mulheres agricultoras começassem a se sentirem parte deste movimento. 

"As mulheres são reconhecidas como um agente importante nesta luta de classes", pontuou. "As pessoas, quando assumem a agência, os papéis de liderança, é uma forma de democracia verdadeira e popular".

A pesquisadora não deixou de destacar os ataques e a perseguição do governo indiano contra os escritórios da News Click e da Tricontinental no país

"Este é um verdadeiro caso de um governo que sabota a liberdade de expressão, a visão alternativa da sua e do povo.Somos as forças criativas da história e estes ataques obrigar-nos-ão a encontrar novas formas criativas de existência, de estarmos juntos nas lutas e de as documentarmos. Continuaremos escrevendo para os movimentos e com os movimentos", afirmou.

Democracia Revolucionária

A venezuelana Blanca Eekhout  trouxe o exemplo da revolução bolivariana para pontuar o conceito de democracia popular.

"Quando nos perguntam, como conseguimos manter a revolução bolivariana por 24 anos sobre os ataques do imperialismo, sobre uma guerra econômica que nos levou a ter 1% dos rendimentos. Resistimos porque o povo é o governo, porque o povo fez uma revolução, porque nossa democracia é revolucionária", colocou a vice-presidenta da Assembleia Nacional venezuelana e Presidenta da Comissão de Construção de Comunas

Segundo Eekhou para que os projetos populares se tornem irreversíveis, é preciso construir instrumentos que permitam dar protagonismo ao povo.

"Essa é uma questão fundamental no que significa uma democracia revolucionária. Não podemos conversar com as elites, fazer alianças, precisamos imediatamente dizer ao povo: sua vontade será respeitada. Vocês são quem tomam a decisão", explicou a venezuelana.

"O comandante Chávez dizia: o povo não é só um conjunto de gente num território. É preciso ter um sentido comum, precisamos ter um projeto comum, imaginar coletivamente para onde vamos, e que todos os sonhos sejam compartilhados", completou.


Blanca Eekhout: “Um povo é um povo quando começa a acreditar em si mesmo” / Rafa Stedile

Democracia de fachada no Marrocos

Jamal Berajaa, da Via Democrática dos Trabalhadores no Marrocos, pontuou que o que aconteceu em seu país não pode ser considerado uma democracia. 

“É uma democracia de fachada que se desenvolveu dentro do parasitismo capitalista. Nós temos um capitalismo dependente dos mercados externos no Marrocos. Está a serviço de monopólios, um sistema que foi formado antes da independência do Marrocos. Não nos tornamos independentes”, afirmou Berajaa.

Ao longo da história, a população marroquina tem sofrido com secas cíclicas e roubo sistemático de suas riquezas e colheitas pelo Makhzen, o regime político liderado pela monarquia.  

“O povo marroquino está se envolvendo na luta, camponeses e trabalhadores juntos. E o governo não sabe fazer outra coisa que não reprimir”, completou a lideranças dos trabalhadores no Marrocos.

“Mais de 80% dos marroquinos boicotam as eleições. Nós não temos democracia e o povo marroquino está consciente disso”, pontuou.


Jamal Berajaa: "Uma máfia dominante, composta por militares, polícias e parlamentares está disseminada por toda a parte" / Rafa Stedile

Conquistas do povo

Para Eugene Puryear, do Partido Socialismo e Liberação dos Estados Unidos, o número de eleitores cai não só porque a ilusão das pessoas no capitalismo está desaparecendo, mas porque as forças neoliberais continuam dizendo que esse é o único sistema viável.

Segundo o escritor e jornalista, uma democracia plena passa pela capacidade do povo de ter o controle direto sobre os recursos.

“Devemos lembrar-nos de não dar demasiado crédito à burguesia. A maior parte do que conhecemos como democracia liberal, liberdade de imprensa e liberdade de expressão, por mais limitada que seja, não foi dada como um presente. Foi tomada pela luta, pelo sangue dos trabalhadores e dos oprimidos que lutavam por representação na sua sociedade”, pontuou Puryear.

Para o norte-americano, a democracia popular e socialista deve contestar toda a hierarquia opressiva que está sendo estabelecida sob o capitalismo. 

“Ela precisa mobilizar e capacitar aqueles que foram mais afetados. Não há democracia se as mulheres e os povos oprimidos não forem verdadeiramente empoderados”, completou Eugene Puryear.


Eugene Puryear: "As crises tem muitas facetas, mas as raízes estão na democracia liberal" / Rafa Stedile

Dilemas

Entre parlamentares, intelectuais e ativistas, a Conferência Internacional Dilemas da Humanidade reúne representantes de 120 organizações de 70 países para trocar experiências e delinear caminhos para enfrentar a crise no neoliberalismo e apontar ações práticas para a construção do socialismo.

“Precisamos rejeitar todas as formas de divergências, qualquer forma de opressão que foi imposta pelo capitalismo”, sintetizou Maqapheli Bonono, do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos da África do Sul.

 

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho