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'Meu nome é Gal': cinebiografia conta como violência da ditadura atravessou carreira de uma das maiores cantoras do país

Em conversa com o BdF Entrevista, diretora Lô Politi fala sobre o filme, a carreira e a retomada do cinema brasileiro

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Longa estreou nos cinemas brasileiros no último dia 12 de outubro e já ultrapassou a marca de 100 mil espectadores - Stella Carvalho/ Divulgação
Sou favorável a que histórias de protagonistas femininas sejam contadas por cineastas mulheres

A cinebiografia da cantora Gal Costa, Meu nome é Gal estreou nos cinemas brasileiros no último dia 12 de outubro, com exibição em 200 salas. E as bilheterias do longa, até aqui, têm correspondido à potente distribuição que o filme ganhou: em quase duas semanas, mais de 100 mil pessoas já assistiram à película das diretoras Lô Politi e Dandara Ferreira.

O filme conta os primeiros anos artísticos da cantora, que morreu em 9 de novembro do ano passado. Na tela são exibidas sua chegada ao Rio de Janeiro, mais especificamente no Solar da Fossa, onde Gal encontra seus amigos da Bahia: Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia, até o florescer de uma das maiores cantoras do Brasil, com o espetáculo Fatal, em 1971.

O recorte específico do longa culmina também com um dos períodos mais duros do país, com a instauração da ditadura militar e o seu recrudescimento, em 1968. E, para além de todos os artistas que desfilam no longa e a efervescência cultural da época, a repressão se torna um elemento central do filme.

"É um um filme que passa uma mensagem muito forte, de uma galera que lutou profundamente, teve uma coragem enorme, se posicionou fortemente contra um sistema que estava muito errado, e a gente está sempre com uma ameaça de isso voltar", afirma a diretora do longa, Lô Politi.

Politi é a convidada desta semana no BdF Entrevista, e explica que a ditadura militar se tornou um "antagonista" no filme. "A gente apertou a mão nisso durante a montagem. A gente vai colocando esse antagonista desde o começo do filme, um pouquinho, um pouquinho, vai crescendo, crescendo, crescendo e chega na sequência quatro do filme, que é a sequência que faz a Gal ter a sua primeira explosão, que é a sequência do medo".

Para além dos horrores da ditadura, o filme adentra os dilemas de Gal, vivida pela atriz Sophie Charlotte, que vão desde a escolha de seu nome artístico – com a ajuda do empresário Guilherme Araújo (interpretado pelo ator Luís Lobianco) e de sua melhor amiga, Dedé Gadelha (com interpretação de Camila Márdila) – até o reconhecimento nacional e a necessidade de se posicionar como artista frente à barbárie do país.

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Com a parceria de Lô Politi e Dandara Ferreira – que lançou um documentário sobre a cantora em 2017 – o filme é quase em sua totalidade feito por mulheres. Para Politi, o protagonismo feminino é essencial ao contar uma história como essa.

"Eu sou muito favorável que as histórias de protagonistas femininas sejam contadas por cineastas femininas, mulheres, porque eu acho que tem sentido, tem uma outra abordagem", diz. "Quando você faz um filme sobre alguém, mesmo que não seja alguém real, alguém vivo, é um mergulho tamanho ali, que é complicado, mesmo na ficção eu acho difícil".

Na entrevista, Politi ainda fala sobre o espaço das mulheres no audiovisual, a retomada do cinema brasileiro após quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (PL), sua carreira no cinema e como a morte de Gal Costa influenciou a obra. Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Você está nos cinemas com o Meu nome é Gal, filme que você divide a direção com a Dandara Ferreira. É um filme feito por mulheres, para contar parte da história de uma protagonista espetacular, que é a Gal Costa. Para a própria história,  era importante que ela fosse contada a partir da perspectiva feminina?

Lô Politi: Eu acho que sim. Eu sou muito favorável a que as histórias de protagonistas femininas sejam contadas por cineastas femininas, mulheres, porque eu acho que tem sentido, tem uma outra abordagem. Com algumas exceções – e ótimas exceções – eu me incomodo um pouco quando vejo um homem retratar uma mulher, porque tem um viés ali que é complicado. Eu não digo nem que é machista ou misógino, pode não ser, mas é um viés específico, daí eu acho que tem uma certa restrição.

Quando é exatamente isso o objeto do estudo do cineasta, aí eu acho que pode ser interessante. Quando você faz um filme sobre alguém, mesmo que não seja alguém real, alguém vivo, é um mergulho tamanho ali, que é complicado, mesmo na ficção eu acho difícil. Esse é o meu terceiro roteiro de ficção que é filmado, e os meus dois outros protagonistas foram homens, então eu estou falando algo contra mim mesma.

Mas assim, no caso desses dois filmes, é muito importante para o personagem – que são o Jonas e o Sol, os meus filmes anteriores –  que esses personagens masculinos fossem analisados e explorados, a partir de uma visão muito feminina, isso faz parte do conceito do filme. No caso da Gal, isso jamais seria parte do conceito do filme.

Mesmo no caso de cinebiografias, por mais que você trate da realidade, explícita, você tem pontas que precisam ser amarradas. Quando você tem uma personagem feminina, talvez seja importante que essas pontas sejam amarradas por outra mulher, não?

É, não só as pontas amarradas, porque você está falando sobre ficcionalização, quando eu tenho que criar uma história que ela não necessariamente viveu, e se for do ponto de vista feminino é mais fácil, é verdade, você tem toda razão. Porém, mesmo as histórias que a gente sabe que ela viveu, a gente tem um filme que a narrativa é toda construída a partir do movimento interno da personagem.

A gente não vai, como a maioria das cinebiografias, pela carreira, pelos altos e baixos, sucessos e fracassos dessa carreira, a gente não quis fazer um filme assim. A gente vai pelo movimento interno e a carreira vem a reboque, as músicas vêm a reboque disso. Então o movimento interno de uma mulher, é melhor que seja feito por uma mulher.

A Gal, por exemplo – estou falando especialmente de roteiro – é muito diferente de mim como pessoa e como maneira de tratar os conflitos, e eu aprendi muito com a Gal, como mulher. E, obviamente, na Gal do nosso filme tem muito de mim, tem muito da Dandara e tem muito da Sophie, é uma Gal que foi transformada por nós. Acho que tanto o processo de roteiro quanto de atuação, tem uma coisa meio antropofágica, que você come aquela personagem, vai, digere e depois você volta com ela modificada dentro de você.

Isso é muito óbvio no processo do ator, a gente vê sempre isso acontecer, mas com a Sophie... Sophie ficou comendo essa personagem durante seis anos, se alimentando dela o tempo inteiro, dia, tarde e noite. E no roteiro também tem muito essa apropriação daquela personagem. Eu me senti muito tocada, muito impactada por essa mulher que foi a Gal Costa, especialmente a Gal daquele momento, do nosso recorte, que vai de 1966 a 1971, é uma Gal muito jovem, é a Gal do período da Tropicália, em um momento muito intenso fora dela, com muita coisa acontecendo, e coisas muito ricas acontecendo fora do corpo dela, mas o filme explora isso tudo dentro do corpo dela, dentro da mente dela, dentro da alma dela.

Então isso fica mais feminino ainda. Já seria apenas por ser um conceito feminino por si só, ainda mais feito por mulheres, desenvolvido por mulheres, aí acho que a gente conseguiu aprofundar bastante.

A gente vive um momento diferente no cinema, ainda longe de ser equânime, mas as mulheres têm aparecido cada vez com mais frequência nos processos criativos do audiovisual. O que falta para isso se consolidar?

Olha, realmente as mulheres têm ocupado um espaço muito maior no cinema nos últimos anos, e o cinema é um espaço muito, muito machista, muito misógino. Eu trabalho faz tempo nisso, eu entrei no cinema quando praticamente não tinha mulher nenhuma, e foi uma luta absurda, e eu sinto essa luta até hoje. Mas eu vejo, de fato, as equipes técnicas, sobretudo... Você falou da coisa criativa, eu acho mais fácil ter mulheres nas áreas criativas do que na área técnica.

Tem, hoje em dia, um número razoável de mulheres diretoras, mas até muito pouco tempo atrás, tinha quase nenhuma, e agora tem realmente muitas mulheres roteiristas. Tem uma categoria que tem muita mulher no cinema, que é a categoria da montagem e eu acho que a montagem é uma coisa essencialmente feminina, o tipo de sensibilidade que você tem. Tem mulheres na direção de arte, na fotografia também, é um lugar que hoje em dia tem muito mais mulheres. Até três, quatro anos atrás não tinha quase nenhuma...

Eram só homens, né?

Só homem. E na equipe técnica, por exemplo, a gente se surpreendeu muito no nosso filme, quando a gente olhou e viu que boa parte, ou quase toda a equipe de fotografia era de mulheres. A gente teve um diretor de fotografia homem, que é o Pedro Sotero, mas a equipe dele inteira era praticamente de mulheres, tinha um homem só na equipe dele. Eu fiquei feliz porque é um lugar tradicionalmente masculino.

E eu vi também na contrarregragem, que é um trabalho físico, sobe parede, desce parede, abre buraco, faz acontecer, uma coisa muito física mesmo, e tinha três mulheres maravilhosas fazendo com uma competência, com uma beleza, com uma suavidade. Foi muito legal, muito bonito de ver isso.

Falando sobre o filme, como a morte da Gal influenciou o trabalho de vocês nas escolhas, na montagem?

Olha, o filme já estava pronto, na verdade, já estava fechado. A gente tinha um roteiro e era um roteiro que não era de ficção, era um roteiro que não era passível de mudanças, por mais que o evento seja forte, a gente fez um filme fechado. Antes de ser uma cinebiografia, é um filme, então mesmo que a gente quisesse, não poderia mudar, a gente tem um recorte muito específico dessa Gal da juventude.

O que a gente sentiu foi um impacto muito grande, sentiu a responsabilidade crescer muito. Eu senti particularmente o peso do nome da figura de Gal Costa de uma maneira muito maior. De repente, a gente percebeu o quanto a Gal é gigante, o quanto é imensa. Ela já era, mas de repente ela virou um mito, uma coisa realmente inalcançável.

A gente parou um pouco o filme [quando a Gal morreu], mas a gente já estava na finalização. Nós paramos para entender, para digerir, na verdade, porque a gente foi impactada por isso. A gente sentiu falta depois, não de modificar o filme, mas de ter mais da Gal real no filme, porque o nosso filme não tinha nada da Gal real. A Sophie cantava todas as músicas, era uma ficção que terminava em 71, então não tinha nenhum registro da Gal daquele período.

Não é um documentário, então não tinha nem onde entrar isso. Mas a gente sentiu falta de ter a Gal de verdade mais presente, não só como uma extensão da homenagem à ela, porque o filme já é, por si, uma homenagem a Gal, mas a gente sentia a necessidade de estender essa homenagem e de trazer a Gal para as pessoas que vão ver o filme, porque dá vontade de ver a Gal.

A gente acabou trazendo, além dessa homenagem no fim do filme, que é meio tradicional em cinebiografia, a gente fez ela um pouco mais impactante, um pouco maior do que o normal, do que o esperado, e a gente trouxe algumas músicas cantadas por ela, alguns fonogramas com a voz original dela. São poucas, a Sophie continua cantando quase o filme inteiro, mas em três momentos muito específicos, de fonogramas muito conhecidos e que a gente já tem uma certa identificação a gente trouxe a voz da Gal.

Por que vocês fizeram essa opção desse recorte histórico da vida da Gal, que é entre os anos 1960 e o começo dos anos 1970?

Por uma série de motivos. Primeiro, por uma questão cinematográfica mesmo, como dramaturgia. É o momento mais interessante da vida de um personagem, quando tem um conflito, de fato. Ela chegou daquele jeito Gal de ser, super tímida, super para dentro, super introspectiva, em um lugar onde tudo está exigindo muito dos artistas, e as pessoas que ela já conhece estão muito à frente nesse processo. E ela não tinha ferramentas para enfrentar aquilo.

Então, foi um conflito muito forte para ela e ainda mais, principalmente, com a ditadura que botou um medo neles e nela, sobretudo. A gente, de fato, tinha um conflito claro e uma coisa que ela precisava superar claramente. Se a gente fosse para o sucesso da Gal, que é os anos 1980, a gente sai desse lugar. O sucesso não tem nada de interessante, daí é melhor ver o documentário que a Dandara fez, que é brilhante. A gente queria cinema e o cinema está no drama, no conflito, não tem jeito – não precisa ser o gênero drama, mas precisa ter um conflito dramático, precisa ter dramaturgia.

O outro motivo é que esse período é muito interessante, muito rico, o período da Tropicália. É, esteticamente, culturalmente, politicamente e comportamentalmente riquíssimo. Não dá nem pra dizer que isso é um pano de fundo, mas ter isso incorporado no nosso filme, a gente mergulhar nesse universo, com esse conflito da Gal, que existe por causa desse universo e contra o outro fantasma que tem ali, que também está incorporado no filme como um personagem, que é a ditadura, era muito interessante, é um caldo muito bom para dramaturgia.

Eu fiquei surpreso de ver Caetano Veloso, Gilberto Gil e entre tantos outros como Tom Zé, Wally Salomão, que são retratados, obviamente, de maneira intensa, porque eles participaram da carreira da Gal, da história da Gal, também de maneira intensa. É difícil levar dois personagens como Caetano e Gil, com esse peso para as telas e, de alguma maneira, torná-los personagens secundários da trama?

Sim, é um frio na barriga, uma loucura. Eu fiquei em pânico, eu estudei como uma louca, ainda mais porque eu também assino o roteiro, então foram anos de conceituação desse filme e um mergulho muito intenso em tudo o que eu podia, para não ser raso. É uma responsa fenomenal.

Agora, não tem como eles não estarem no filme, obviamente, e a gente lidou com certa naturalidade. A nossa sorte, nesse sentido, é que eles eram muito jovens nesse momento, então eles são muito distantes desse Gil e desse Caetano que a gente vê agora e a gente vê o tempo todo, porque eles estão muito ativos, a Bethânia também e a Gal também estava.

A gente não quis trabalhar, nem os atores queriam, de uma forma mimética, trabalhar com mimesis, a gente não queria que eles imitassem ninguém. De uma certa maneira, todos eles entraram nessa pesquisa muito profunda, para cada um poder ter um estudo muito grande do seu personagem e trazer de volta o seu personagem com sua visão. A gente está falando da Gal da Sophie, do Caetano do Rodrigo, do Gil do Dan, do Wally do George.

Para o Luís Lobianco, que fez o Guilherme Araújo, que era o empresário da Gal e pra Camila Márdila, que fez a Dedé, que é a mulher do Caetano e melhor amiga da Gal, era mais fácil porque eles não tinham referência. Do Guilherme tem referências, mas são muito poucas, da Dedé, não tem quase nada de referência, então eles puderam construir uma coisa muito mais livre.

E eles são condutores do filme, eles têm um peso tão grande quanto o Caetano e o Gil no filme. E eu acho isso bonito porque a gente não caiu nessa esparrela de pegar os famosos, os conhecidos e fazer por aí. O Wally, o Tom Zé e o Rogério Duarte são menores por causa do recorte espacial do filme, porque tem momentos que a gente está no Rio que não tem o Tom Zé, tem momentos que a gente está em São Paulo e que não tem o Wally, mas os outros são todos muito presentes, a gente está, de fato, falando de uma turma.

Então, cada um explorou muito de dentro de si e o trabalho em turma foi muito importante, porque cada um trouxe muita pesquisa sobre si, sobre o seu personagem e sobre os personagem dos outros, e trocou-se muito. Então, a gente viu isso acontecer de uma forma muito natural e orgânica. O Caetano do Rodrigo foi muito impactado pelo Gil do Dan, ou pelo Wally do George. Essa troca fez com que cada um ficasse, de fato, único.

Alguns com semelhanças muito maiores aos seus retratados, aos seus personagens do que outros. Então, você vê o Rodrigo Lélis, ele tem uma semelhança enorme com o Caetano e ele não tinha. Quando começou o filme, quando ele chegou, ele não tinha nada de Caetano. A Dandara tinha conhecido ele antes, no [Teatro] Vila Velha e ele era louro, nada a ver, uma energia completamente diferente. E ele foi se transformando no Caetano de uma maneira que agora você olha para o filme, você vê o Caetano o tempo todo, sendo que aquele nariz é totalmente diferente do Caetano, o olho é diferente do Caetano.

E aí tem o Gil, por exemplo, que é o Dan, que não se parece com o Gil. Eles não têm uma semelhança física muito forte, mas o Dan puxou um Gil de dentro dele, com um astral do Gil, com a vibe do Gil, com a energia do Gil, que as pessoas nem sabem que existia. Porque o Gil de hoje, que a gente vê, é um buda, quase.

Uma entidade, né?

É uma entidade, exatamente, obrigada pela palavra. O Gil daquele momento, com aquela energia, com aquela faca no dente, a gente nem tem essa essa referência, e o Dan foi lá e achou. Foi muito bonito ver esse processo.

E esse recorte do filme, como você falou, ele também é atravessado, do começo ao fim, pela ditadura militar. Há uma relação direta da ditadura com a violência, inclusive, que vai marcando os personagens. Muito menos como uma ideia, um conceito, mas muito mais, pela violência.

Sim, a ideia era essa mesmo, a gente apertou até a mão nisso durante a montagem, porque acho que a ditadura funciona um pouco como antagonista da personagem mesmo. A gente acabou costurando a ditadura no filme como se constrói um antagonista. A gente vai colocando esse antagonista desde o começo do filme, um pouquinho, um pouquinho, vai crescendo, crescendo, crescendo e chega na sequência quatro do filme, que é a sequência que faz ela ter a primeira explosão para fora, que é a sequência do medo, que a ditadura vai chegando perto dela.

Ela vai ficando com mais medo, mais medo, ela vê a violência na rua, vê os meninos se envolvendo de uma maneira ali que ela morre de medo nas passeatas e tal, ela vê o Caetano ser massacrado, super agredido pela plateia, no Festival [Internacional da Canção] com Proibido Proibir, por uma plateia dividida entre esquerda e direita, e os dois lados atacavam, a esquerda atacava também o Caetano, eram tempos muito loucos.

A própria Gal foi ficando com mais medo ainda, até que aquela violência entra dentro de casa e tem lá um estudante machucado violentamente. É quando ela decide que tem que se posicionar, de fato, que estava sendo cobrado dela esse tempo todo, mas ela estava nesse conflito interno. E aí ela vai pro Divino Maravilhoso com uma potência, com uma agressividade que ela nunca teve antes e depois nunca teve também.

Foi naquele momento que ela se colocou com aquela agressividade antiviolência, que cria uma reação à violência e ela não aguentou o tranco. Porque foi tão difícil furar aquela bolha, sair para fora daquele jeito, que ela caiu de cama, ficou deprimida durante muito tempo. E aí tem aquela sequência que você viu, dela sair desse lugar e tal.

A Tropicália é um movimento que, de fato, aconteceu bastante por causa da ditadura, é um movimento contracultural no mundo. É um movimento que queria colocar a guitarra elétrica, que queria trazer o mundo para dentro do Brasil, porque tinha uma resistência muito grande, culturalmente, às coisas que vinham de fora. Então, tem uma geleia geral aí que a Tropicália traz que não é só na política, é também no comportamento, é também no social e sobretudo na cultura.

Só que a ditadura faz isso chegar num lugar extremo, de necessidade de reação e de posicionamento. Esse caldo que eu estava te falando, que torna esse período muito interessante, é a junção dessas coisas muito fortes: a contracultura, uma revolução cultural, e a contraviolência contra o sistema. Isso junto é um caldo muito forte e muito violento, de fato. Então a Gal tinha que reagir e só uma coisa tão forte, tão intensa, para conseguir tirar a Gal daquele lugar que ela não conseguia sair.

Isso foi muito intencional e a gente apertou ainda mais isso na montagem, porque tem uma parte que você viu que são de imagens de arquivo e tal. A gente acabou apertando mais isso porque a gente sentiu essa força que precisava ter no filme, essa força antagonista.

A gente sabe que tudo é político, mas o teu cinema tem bebido bastante nos contextos políticos do Brasil. Você também fez o Alvorada, que assina com a Anna Muylaert, que traz os bastidores do golpe contra a presidenta Dilma. Foi uma escolha ou os caminhos foram te levando até esse lugar?

O Alvorada Dilma foi um filme de emergência, não foi um filme planejado. A gente se deu conta do que estava acontecendo e que a Dilma não tinha voz, simplesmente ela estava isolada dentro do Palácio da Alvorada e o mundo caindo, acontecendo um trilhão de coisas lá no Congresso, o Brasil em chamas e ninguém sabia o que estava acontecendo com a Dilma lá dentro.

Não à toa, várias mulheres se levantaram neste momento, não é só o nosso filme que retrata isso, tem o filme da Petra [Costa], tem o filme da Guta [Ramos], são mulheres que falaram "opa, estamos sendo caladas novamente, a gente precisa fazer alguma coisa". E a gente foi. Eu considero o Alvorada, em todos os sentidos, uma exceção na minha vida, porque eu sou muito da ficção, eu tenho os meus três outros filmes – e agora meu quarto filme de ficção que eu estou terminando de escrever agora e devo filmar no ano que vem – num caminho muito específico da ficção.

Como você tem enxergado essa retomada do cinema brasileiro? Eu conversei há algumas semanas atrás com o Kleber Mendonça e ele falava que a colheita feita em 2019 e 2020, quando vários filmes foram premiados, ele e o Karim [Aïounz], principalmente, começou muito antes, ainda em 2014, 2015. No meio disso a gente teve um golpe e quatro anos de total desprezo pela cultura. O que esperar do cinema brasileiro daqui em diante?

É, eu acho está é mais uma retomada. Não é o primeiro baque do cinema brasileiro, mas acho que esse foi um dos mais profundos, porque acho que ele nunca tinha sido, antes, totalmente silenciado. O cinema foi apagado completamente e o que tinha antes. Tivemos um desmanche mesmo.

Agora eu estou sentindo um ar de renovação enorme, só que o trabalho é muito, muito, muito grande para reconstruir. É rápido de destruir e é muito lento para reconstruir. A gente teve, de alguma maneira, uma sorte – que não dá pra dizer sorte, porque o que fez isso acontecer foi uma coisa de azar – mas a gente tem a lei Aldir Blanc, a gente tem a lei Paulo Gustavo, que está de fato injetando bastante recurso no audiovisual agora.

Então, eu acho que tem uma possibilidade de uma retomada muito forte e, normalmente, quando a tempestade é muito grande, o sol brilha mais forte depois. Eu acho que vai vir coisa boa e estou sentindo nesse filme da Gal, em todas as entrevistas, em todas as pré-estreias, nas redes sociais, que as pessoas estão ávidas para ver um filme alegre, para ver um filme bonito, para ir ao cinema.

A gente teve uma pré-estreia aqui em São Paulo, com seis salas lotadas e metade do público teve que ir para casa, não deu para entrar. Foi chato por um lado, mas foi incrível, porque você vê que as pessoas estavam ávidas para ver o filme. E é um um filme que passa uma mensagem muito forte, de uma galera que lutou profundamente, teve uma coragem enorme, se posicionou fortemente contra o sistema, que estava muito errado, e a gente está sempre com uma ameaça de isso voltar. A gente tem que se posicionar.

É muito bom ver essa galera, que teve esse esse posicionamento, com alegria, com música, com cor. Embora tenha sido muito complicado, morreu muita gente, foi muito impactante, foi muito violento, eles se impuseram de uma maneira muito rica. Acho que isso é muito inspirador para a gente, para as novas gerações que não conhecem essas pessoas. E assim, gente, Gal Costa é um ídolo, Caetano Veloso, é um ídolo. E não é um ídolo mitológico, uma entidade, é um cara que quase mataram por fazer o que ele fez, que resultou, simplesmente, numa revolução cultural, política e comportamental no Brasil.

Edição: Thalita Pires