Mudanças

Cuba enfrenta desafio demográfico com nível de envelhecimento mais alto da América Latina

Com uma baixa taxa de natalidade, a ilha enfrenta um enorme desafio demográfico, afirma agência de estatísticas cubana

Habana (Cuba) |
Há anos, as autoridades cubanas vêm experimentando diferentes estratégias para o Estado mitigar os efeitos do envelhecimento da população - Yánder Zamora/EFE

Cuba enfrenta na última década um enorme desafio demográfico. Ano após ano, o número de nascimentos vem diminuindo, enquanto a proporção de pessoas que chegam à velhice aumenta.

Em um relatório publicado este ano, o Escritório Nacional de Estatística e Informação (ONEI) sustenta que o envelhecimento da população é atualmente o principal desafio demográfico de Cuba. Um desafio que tem implicações diretas em áreas como a economia, a saúde e o atendimento à população. 

"O nível de envelhecimento em Cuba é atualmente o mais alto da América Latina e do Caribe", diz Ernesto Chavéz Negrin, pesquisador do Centro de Pesquisas Psicológicas e Sociológicas (CIPS), para o Brasil de Fato. "Atualmente, uma de cada quatro pessoas tem mais de 60 anos de idade e, em 2035, essa proporção está prevista que seja de uma em cada três". 

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Rodeado por cadernos de anotações e publicações do CIPS, Ernesto Chavéz Negrin conversa enquanto consulta um monte de papéis cheios de anotações em letra minúscula. "Geralmente estou adivinhando o que escrevi porque não entendo minha própria caligrafia", brinca.   

Chavéz Negrin talvez seja uma das pessoas que mais acompanhou de perto a questão do envelhecimento da população da ilha. Em 1985, ele escreveu seu primeiro artigo alertando sobre esse fenômeno. Um trabalho pioneiro publicado em uma década em que praticamente ninguém estava prestando atenção ao problema.

"Ao cruzar dados estatísticos, comecei a perceber que, desde 1978, a taxa de fertilidade estava começando a cair abaixo do necessário para a reposição de gerações. Isso significa que houve menos nascimentos do que a quantidade de população no estágio reprodutivo. Caso essa tendência continue no longo prazo, a população primeiro envelhecerá e depois diminuirá em termos absolutos", explica ele. 

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Entretanto, naqueles anos, a questão não recebeu a atenção suficiente. Em meio a uma década marcada por outras urgências.  

"Quando publiquei aquele primeiro artigo, terminava a época conhecida como o Baby Boom. Nos anos imediatamente após a revolução, houve um grande número de nascimentos, portanto, havia um grande número de jovens na ilha na década de 1980. Embora essa fosse uma tendência que ocorria em muitas partes do mundo, acho que aqui ela também foi influenciada pelas expectativas para o futuro que a revolução abriu e que fez com que muitas pessoas quisessem ter filhos", aponta Negrin.

O grande número de jovens na ilha naquele momento, segundo o pesquisador, fez com que muitos pesquisadores não prestassem atenção ao declínio da taxa de natalidade. "Nesse caso, considerou-se que o envelhecimento da população estava muito distante. Ao mesmo tempo, a expectativa de vida estava aumentando. Essa foi uma grande conquista, pois muitas pessoas estavam chegando à velhice, o que é muito bom. Mas o que não começou a acontecer foi o fato de não haver substituição suficiente da geração mais velha."

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Como acontece com qualquer tendência demográfica, as causas não são únicas, ressalta Negrin. Cada geração adota expectativas para desenvolver seus projetos de vida, influenciadas pelas mudanças culturais e econômicas pelas quais passam. 

"Nos últimos 50 anos, houve enormes mudanças na família cubana, algo que também aconteceu em outros países, mas aqui de forma particularmente forte", diz o pesquisador, para quem sua própria história familiar é um exemplo que ilustra a mudança nas aspirações e ideais familiares. 

"Eu tinha 17 tios e 51 primos. Meus avós desejavam ter uma família grande, e até mesmo seu ideal de felicidade estava intimamente ligados a isso. Estamos falando de uma época em que, em termos econômicos, tudo era muito difícil e, de qualquer forma, eles aspiravam ter uma família numerosa. Agora meu neto tem dois tios e um primo. É uma redução enorme em duas gerações."

Com o triunfo da revolução, um número enorme de pessoas historicamente excluídas e sem direitos começou a ser incorporada aos estudos e à vida profissional. Isso foi mudando a sociedade culturalmente. Cada vez mais jovens começaram a dedicar mais e mais anos de suas vidas aos estudos, às carreiras universitárias e à vida profissional.  

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Da mesma forma, desde o início da Revolução, foram feitas importantes conquistas nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Cuba foi o primeiro país do continente a legalizar o direito à interrupção voluntária da gravidez, em 1965. Esses direitos ajudaram as mulheres a entrar na vida profissional e a dedicar mais tempo a atividades que não fossem cuidar de suas famílias. 

Negrin destaca que essa dinâmica foi atrelada a uma queda econômica repentina que teve início no chamado "período especial". Uma crise econômica que afetou profundamente Cuba na década de 1990, após o colapso da União Soviética e do campo socialista. 

A crise do período especial não apenas desmantelou o estado de bem-estar social, que estava sendo construído até aquele momento, mas também isolou Cuba comercial e financeiramente do mundo. Assim, a ilha ficou em condições de profunda vulnerabilidade diante do bloqueio econômico dos EUA, que vem estrangulando a economia cubana há décadas.

"A difícil situação econômica, que é agravada pelo bloqueio, faz com que as pessoas pensem mais sobre o planejamento familiar. Muitas vezes, as famílias estão começando a ter que escolher entre cuidar de parentes mais velhos ou ter filhos. Também há problemas com moradia, é difícil para os jovens casais conseguirem uma casa própria".  

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O envelhecimento da população traz consigo uma série de desafios e problemas de diferentes tipos. Principalmente no desenvolvimento econômico do país. Cada vez mais, o Estado está investindo no cuidado dos idosos - por meio de um sistema de seguridade social - enquanto o desenvolvimento da população economicamente ativa diminui.      

"Em geral, a população jovem cubana não é como outras populações latino-americanas com baixos níveis de educação. Aqui, eles têm expectativas e as realizam para ter acesso a níveis mais altos de educação e ensino superior. Mas nem todos os empregos são técnicos. Alguns trabalhos são bastante elementares e exigem força física. Os chamados países 'desenvolvidos' geralmente aliviam esses problemas ao receberem mão de obra migrante". 

Há anos, as autoridades cubanas vêm experimentando diferentes estratégias para o Estado mitigar os efeitos do envelhecimento da população. Em especial, diferentes esforços relacionados ao cuidado com os idosos e com as crianças.

Um desses esforços são as Casas de Abuelos (Casas de Avós), centros de dia onde os idosos podem ir para comer, fazer exames médicos, realizar atividades recreativas ou simplesmente socializar com pessoas de sua idade. 

"Venho aqui para passar o dia, quase todos os dias", diz Inaury Peña, uma senhora de 76 anos que frequenta uma Casa de Abuelos em Miramar. 

"De manhã, geralmente fazemos atividades físicas e, à tarde, atividades artísticas. Eu sempre quis pintar, mas acabou não acontecendo. Coisas da vida. Mas há alguns anos comecei a me dedicar a isso, fazendo cursos aqui, e comecei a aprender", diz ela, enquanto pede a seus colegas que lhe tragam algumas das pinturas que estão fazendo. 

Apesar das dificuldades pelas quais a ilha está passando, esse tipo de iniciativa estatal e comunitária tem se expandido nos últimos anos. 

Desafios da modernização

Na concorrida esquina de Línea e Paseo em La Habana, uma dezena de aposentados faz fila em frente aos caixas eletrônicos. O recente processo de bancarização em Cuba foi uma modernização necessária para economia do país, mas foi também um desafio para aqueles que sempre fizeram suas transações em dinheiro. Especialmente para os idosos. 

Ao chegar à fila, Marlen Montes pergunta quem é o último e procura um canto com sombra onde possa se refugiar do intenso sol. Acompanhada de seu neto, um jovem de vinte e poucos que imediatamente é solicitado para ajudar por várias pessoas que aguardam na fila. 

"Ele me acompanha toda semana para fazer compras e cuidar da papelada. E sempre que viemos aqui, ele sempre fica ajudando todo mundo", diz Montes rindo, orgulhosa, ao Brasil de Fato.

A imagem se repete por toda Cuba. Longe dos cartões postais para turistas, ao caminhar pelos bairros de Havana, é fácil perceber o envelhecimento da população. Juntamente com as dificuldades da vida cotidiana, em meio à deterioração da situação econômica, também há redes de solidariedade que são tecidas para tentar resolver problemas diários.  

Marlen diz que sua casa é um típico lar cubano, no qual é habitual que três gerações vivam juntas. Viúva há alguns anos, ela mora com a filha, o genro, dois netos e a namorada de um deles. "O jovem casal está tentando construir nos fundos da casa, mas não é fácil por causa dos materiais, que são muito caros ou não estão disponíveis", diz ela. 

Há anos ela está entusiasmada com a ideia de ter um bisneto. Mas sempre que perguntam ao jovem casal quando eles decidirão ser pais, a resposta é a mesma: primeiro eles querem poder se tornar independentes da casa da família. Algo que nem sempre é fácil, mesmo no meio profissional. 

A decisão dos netos de Marlen de postergar o planejamento familiar é algo muito comum entre os jovens de Cuba. Suas preocupações profissionais e cotidianas muitas vezes colocam a ideia de ter filhos em segundo plano. 

 

Edição: Leandro Melito