Senado

Servidores da Funai pressionam por votação de PL que regulamenta porte de arma para fiscais

Lei de criação da autarquia prevê poder de polícia ambiental, mas ponto carece de detalhamento para aplicação

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Trabalho de agentes da Funai na Amazônia envolve deslocamento permanente pela mata - João Laet/AFP

Após a emboscada que atingiu agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e terminou com um servidor da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) baleado na última segunda-feira (4), no Pará, servidores do órgão indigenista fortaleceram o coro pela aprovação da proposta que regulamenta o porte de arma para a categoria durante ações de fiscalização. O texto está em análise na Comissão de Segurança Pública do Senado (CSP) e conta com parecer favorável do relator, o senador Fabiano Contarato (PT-ES), mas teve a votação adiada no último dia 28 por falta de acordo.

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A medida foi formulada pela comissão externa que investigou as causas do aumento da violência na região Norte contra grupos considerados mais vulneráveis, como quilombolas e indígenas.

O colegiado também buscou fiscalizar as medidas tomadas pelo poder público diante do sumiço e da morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, que foram assassinados em 2022 durante viagem ao Vale do Javari, área indígena localizada no Amazonas. Pereira era servidor de carreira da Funai e por isso o caso ajudou a embalar o debate sobre o porte de armas para agentes em serviço.

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O servidor do órgão Juan Scalia, um dos sócios-fundadores da entidade Indigenistas Associados (INA), sublinha que a discussão sobre o assunto é bem anterior: a Lei nº 5.371/1967, que criou a Funai, prevê para a autarquia “poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção” das comunidades tradicionais. Como a medida nunca foi regulamentada, a categoria tenta agora fazer discussão avançar no Congresso.  

O texto tramita como Projeto de Lei (PL) 2326/2022 e adiciona essa autorização a um dos trechos do Estatuto do Desarmamento, a Lei 10.826/2003.

A proposta prevê que, para ter direito e utilizar arma de fogo durante as fiscalizações, o usuário precisa comprovar capacidade técnica e psicológica para manusear o artefato, seguindo o regulamento do estatuto. A ideia também é que a liberação fique restrita aos trabalhadores que atuam em áreas diretas de fiscalização.

A Funai tem pouco mais de 2.900 servidores. Juan Scalia estima que o porte de armas atingisse entre 10% e 15% desse contingente. O servidor vê o projeto como um elemento importante para ajudar a categoria a cumprir o seu papel institucional de proteção dos povos indígenas.

Segundo o INA, a autarquia responde por 11 coordenações que trabalham com proteção etnoambiental em diferentes pontos do país. São cerca de 40 bases de proteção, além de postos de vigilância e outras estruturas de apoio que ajudam a proteger povos isolados ou de recente contato, por exemplo.  

“Há lugares remotos na Amazônia onde o primeiro sinal do Estado brasileiro durante uma crise é o da Funai. Nas áreas indígenas de fronteira, onde temos algumas bases de proteção, regiões muito vulneráveis do ponto de vista do tráfico de drogas e da ascensão de facções criminosas e sobretudo onde tem indígenas isoladas, a Funai é sempre a primeira a chegar”, afirma Scalia, destacando que os índices de violência saltaram exponencialmente nos últimos anos, o que ampliou os riscos para os fiscais.

Esse aspecto também foi lembrado no relatório aprovado pela comissão que estudou o tema no Senado. O documento é assinado pelo presidente do colegiado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), e pelo relator, Nelsinho Trad (PSD-MS). Os dois citam dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e registram que, entre 2016 e 2020, houve cerca de 300% de salto no número de assassinatos e ameaças em áreas indígenas. Via de regra, tais ocorrências se relacionam com a disputa pela terra, que costumeiramente envolve grandes fazendeiros, empresários e seus capangas.

“Tem algo muito complexo, que é o garimpo. É o que ocorre na área do povo Yanomami, por exemplo”, cita Scalia, ao lembrar da crise humanitária que veio à tona no começo do ano. Em junho de 2022, o PL 2326 foi defendido pelo então procurador-geral da República, Augusto Aras, como uma das ações emergenciais a serem adotadas na região do Vale do Javari.

Riscos

Dados compilados pelo INA lembram que três agentes públicos que atuavam na Funai foram assassinados nos últimos anos, entre eles Bruno Pereira. Outros episódios também chamam a atenção. É o caso de uma ocorrência registrada em novembro de 2019 contra a Base Etnoambiental do Ituí-Itacoaí, na região do Vale do Javari. Após criminosos atacarem o local a tiros, trabalhadores da Funai tiveram que se retirar do lugar.


Indigenista Bruno Pereira (à esquerda) e do jornalista Dom Phillips, ambos assassinados no Vale do Javari, região amazônica / Reprodução

A engenheira florestal Bianca Ferreira conheceu esse tipo de violência na pele. Ex-servidora da Funai, ela atuou no órgão entre 2018 e novembro de 2022, mas decidiu abrir mão do emprego público pouco depois de viver uma situação aterrorizante com um grupo de outras três agentes públicas da autarquia durante um trabalho no rio Solimões, no Amazonas. A ocorrência se deu no primeiro semestre do ano passado.

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“A gente tinha saído bem cedo da comunidade pra não passar pelo Solimões no entardecer ou anoitecer, mas nossa voadeira [tipo de embarcação] foi parada em pleno rio por volta das 10 horas da manhã, quando não tinha uma alma passando, muito menos sinal de internet nem nada. Nós fomos parados aos tiros e eram esses chamados ‘piratas do Solimões’”, conta a engenheira, ao mencionar que se deparou com um grupo de cerca de 15 pessoas armadas “até os dentes com fuzil”.

“Renderam a gente, pularam dentro da voadeira, colocaram fuzil na cabeça da pessoa que estava pilotando a embarcação. Eu só pensei nas minhas duas filhas e na minha mãe, em como elas ficariam se eu morresse ali porque nem seguro de vida a gente tinha, apesar de trabalhar nessa situação. Pensei que não iriam nem achar os nossos corpos depois porque é o crime organizado: eles somem com os corpos.  E ali é um rio cheio de jacaré e piranha”, narra, ao reviver os momentos de tensão.


Os agentes da Funai e da PRF foram surpreendidos com disparos de arma de fogo por volta das 19h desta segunda-feira (4) / Divulgação

A engenheira conta que o episódio amplificou todos os receios que já cercavam o trabalho. “Na ocasião, nós ficamos de braços levantados, até que a situação se resolveu e eles levaram o estoque de combustíveis. Deixaram só a quantidade pra gente chegar na cidade. Eu me senti abandonada e depois pensei ‘não vou ficar pagando pra ver se eu morro na próxima expedição’. Então, achei melhor voltar a trabalhar na sociedade civil organizada.”

Diante das experiências que viveu na Funai e especialmente do episódio na Amazônia, Bianca Ferreira acredita que o PL 2326 seria fundamental para garantir mais segurança aos fiscais.

“Sempre estranhei a Funai ter uma área do tamanho que tem pra cuidar – são 13% do território brasileiro em termos de fiscalização – e não regulamentar nem o porte de arma dos seus servidores que ficam nas bases nem o poder de polícia dos que vão fiscalizar”, afirma.

Cenário

Juan Scalia conta que, no Senado, os servidores organizados têm buscado diálogo inclusive com parlamentares mais conservadores para tentar acelerar o PL. O senador Flavio Bolsonaro (PL-RJ), por exemplo, pediu vista para analisar o texto. “A gente chegou até a falar com ele, que disse que seria contraditório pregar [a política do] armamento e não votar com a gente. Isso foi semana passada, mas a gente não sabe o que pode acontecer, claro. Com o pessoal mais ligado ao agro o nosso receio é maior, pois eles podem votar de forma contrária, como o Esperidião Amin (PP-SC), talvez o Heinze (PP-RS). Estamos tentando conversar com eles, mas ainda não sabemos o que vai acontecer.”

Scalia afirma que a ideia do movimento pró-PL é tentar emplacar a votação do texto até o final do ano na comissão. O grupo aguarda o relator, Fabiano Contarato, retornar da viagem à Conferência do Clima das Nações Unidas, nos Emirados Árabes, para dar sequência às articulações pré-votação.

Edição: Rebeca Cavalcante